
Segundo funcionário da empresa italiana, a Enel “trabalha com essas intermediárias para delegar o trabalho sujo”
Empresas ligadas à Enel estão sendo acusadas de grilar terras para a geração de energia eólica, num processo cunhado por especialistas como “grilagem verde”. Sob a justificativa de produzir energia renovável, essas empresas conseguem acessar vastas extensões de terras públicas brasileiras. A denúncia foi feita pelo Intercept Brasil em colaboração com outros veículos de jornalismo investigativo e de mídia especializada em meio ambiente e energia.
Com base em um estudo da revista Nature sobre a apropriação em massa de terras públicas no Brasil, a reportagem revela que a companhia, com sede na Itália, e com várias subsidiárias no Brasil, lidera a prática e é a maior proprietária estrangeira de projetos de energia renovável em território nacional.
“Com táticas muitas vezes agressivas e que se aproveitam do fato de muitos agricultores não terem registro oficial de suas terras, essas companhias incorporam as terras de pequenos agricultores e, depois, arrendam essas áreas para a Enel construir seus parques eólicos ou de energia solar – ou seja, investir em energia verde”, cita trecho da reportagem após meses de investigação.
Em um pequeno município da Bahia, a 450 km de Salvador, cerca de 80 turbinas eólicas cercam uma propriedade, antes isoladas, onde moradores praticavam a agricultura e a pecuária, atividades inviáveis hoje depois da presença ostensiva da Enel na área. “No tempo que eu fui criada aqui, aqui era isolado, muito isolado mesmo”, conta Diana Silva, que cresceu no local.
“Um labirinto de estradas liga as torres para que as vans possam circular. Linhas de transmissão serpenteiam de um canto a outro do campo”, cita o Intercept. “Nos últimos anos, a região deixou de ser uma paisagem isolada e se tornou um grande parque eólico cujo investimento superou os R$ 2 bilhões”, continua a reportagem.
O parque pertence à Enel. Diana e mais de uma dezena de moradores da região afirmam que a multinacional e uma outra empresa, a Maestro Holding de Energia, tomaram suas terras para instalar turbinas.
“Descobrimos vários possíveis casos de grilagem por parte de empresas que prestam serviço para a Enel, conhecidas como intermediárias ou desenvolvedoras”, cita o Intercept.
O texto frisa que a multinacional parece não estar diretamente envolvida nessas práticas. Todavia, o fato de suas operações dependerem diretamente dessas negociações suscita dúvidas sobre sua cumplicidade, avaliam especialistas. Em nota ao Intercept, a Enel diz que “segue rigorosamente as determinações legais (e) a regulação do setor”. Ainda, “que obedece a todos os requisitos ambientais, atuando em linha com as melhores práticas de mercado”.
“A Enel não realiza aquisição de terras no Brasil, de acordo com as leis brasileiras”, continua a nota. Segundo a companhia, as áreas onde a empresa instala aerogeradores ou painéis solares seriam propriedades privadas. “Com a devida comprovação de regularidade do ponto de vista fundiário”. Ou seja, com matrícula registrada no Cartório de Registro de Imóveis, alega. “São firmados contratos com os respectivos proprietários que autorizam a utilização do terreno para a implantação de projetos de geração renovável, mediante remuneração”, diz.
Vários processos judiciais foram localizados no curso da investigação. Uns movidos por pessoas contra empresas de construção que buscam terras para arrendar para a Enel; outros, iniciados pela própria multinacional europeia contra moradores das áreas atingidas por seus projetos.
Daniel Carneiro, advogado que representa os moradores do município baiano, diz que as ações das empresas são uma forma de grilagem. A Enel e a Maestro Holding negam as acusações.
Uma advogada que atuou para a Enel como consultora jurídica durante quase cinco anos disse que as intermediárias compartilhavam apenas parte das informações sobre como trabalham com a Enel. Segundo ela, apesar de ser atribuído a todas às empresas envolvidas no processo o trabalho de verificar se as áreas não apresentam problemas fundiários, na prática, isso às vezes não acontecia. Por medida de segurança, a profissional não teve o nome revelado.
Outro funcionário ainda vinculado à multinacional italiana disse que “a Enel sabe perfeitamente bem o que está acontecendo”. E que, “na verdade, trabalha com essas intermediárias para delegar o trabalho sujo”, disse o empregado, que também prefere não ser identificado.
Lideranças dos povos originários e autoridades ouvidos pela reportagem concordam que a diversificação de fontes energéticas é necessária para o enfrentamento da crise climática. Porém, concordaram que sua implantação deve considerar as realidades sociais e políticas das pessoas que moram nas áreas atingidas.
“Não somos contra o desenvolvimento”. Mas, “a gente quer o desenvolvimento com envolvimento, onde o povo seja escutado, o povo participe”, disse uma liderança quilombola do Piauí. “Esse é (o) desenvolvimento que a gente defende”, completou.
A Bahia e o Piauí, estados visitados pela reportagem do Intercept, estão entre os focos da expansão de energia eólica no país pela Enel.
Em 2023, a Enel Américas anunciou seu plano estratégico para o continente, prevendo um aumento dos investimentos no Brasil para a produção de energia eólica e solar na cifra de US$3,7 bilhões (R$ 21 bilhões) – 45% a mais que o previsto anteriormente.
“À medida que a Enel continua a se expandir para novos territórios — com mais de 100 turbinas eólicas em construção— o futuro dessas comunidades parece sombrio”, cita a reportagem.