ALESSANDRA SCANGARELLI BRITES*
Em outubro 2023, o Japão lançou novamente o seu controverso plano de despejar a água radioativa purificada, resultado do acidente nuclear em Fukushima, no oceano Pacífico. A decisão tem provocado protestos por parte dos países vizinhos, ativistas e cientistas. A Tokyo Electric Power (TEPCO), operadora da central nuclear de Fukushima-Daiichi, foi a responsável por realizar o processo de purificação da água radioativa, dizendo ter eliminado os elementos mais nocivos aos organismos, exceto o trítio.
Ela foi também a empresa que estabeleceu o plano de despejo que recebeu o aval da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU). Apesar da presença da AIEA, muitos especialistas continuam reticentes sobre a dose aumentada do trítio após a água radioativa ser despejada no oceano, assim como há dúvidas se os demais elementos foram realmente eliminados, já que, segundo fontes entrevistadas e pesquisadas pela Intertelas, todo o processo não teve a transparência necessária para deixar todas as partes, que foram impactadas pela decisão japonesa, tranquilas.
Conforme o especialista, pesquisador e professor associado do Departamento de Oceanografia Física, Química e Geológica do Instituto Oceanográfico (IO) da Universidade de São Paulo (USP), Rubens Cesar Lopes Figueira, o maior problema do Trítio, que é um isótopo de hidrogênio, não é a sua ingestão e sim a dose. De acordo com ele, este tem uma meia vida biológica pequena, mas é difícil de ser eliminado e terá a sua dose aumentada, quando o material for jogado ao mar.
“Porém, os japoneses trabalharam com a noção de diluição do Trítio no Pacífico, já que o tamanho do oceano ajudaria no processo de eliminação. Eles ainda disseram que eliminaram, com o processo de purificação da água, os outros isótopos mais nocivos ao organismo humano, como o Césio -137 e o Plutônio -239. Ao levar em conta o contexto do Japão, não sei se existiriam outras saídas para o país. Se existissem, de repente, seriam caras demais, e o aval da Agência Internacional de Energia Atômica da ONU consolidou ainda mais esta decisão deles. Contudo, a maior preocupação dos países vizinhos é: os mesmos responsáveis por Fukushima, são os mesmos que estão fazendo os relatórios de fiscalização e que estão liberando este material no oceano”, explicou o especialista.
Figueira ainda acrescentou que, para além da dose aumentada do Trítio, existe a dúvida quanto aos reais níveis dos demais elementos que estão sendo despejados no mar. “O correto seria ter uma fiscalização independente, com a participação de equipes dos países vizinhos, para que qualquer dúvida fosse desfeita. Uma boa ação seria um fórum para discutir esse tipo de liberação, porque, de qualquer maneira, trata-se de uma dose dada aos organismos que vão ser consumidos. Aquela é uma região que é fronteiriça com outros países, como a China, a Coreia e outros. A grande dúvida é se essa água está, realmente, totalmente limpa. Por isso, eu recomendaria constante monitoramento para todos que compartilham aquela área”, disse.
O professor ainda esclareceu que a falta de transparência é um dos maiores problemas relacionado à radioatividade. “A partir do momento em que eu não permito que outros façam esta fiscalização, isso pode ser um indicativo de que há um problema. Por que não chamam os países vizinhos para acompanhar todo o processo de purificação e liberação deste material radioativo? Quando há uma contaminação, é responsabilidade de todos, no mundo, informar claramente e deixar que outros façam as análises também. Agora, se eu sou produtor, seja da indústria química que for, eu mesmo faço as análises do material, e eu mesmo libero, quero apenas tornar o processo mais fácil para mim. Aos demais grupos sociais e países resta apenas esperar que o meu relatório seja confiável e monitorar a situação. E junto a isso, podemos pensar no lobby das empresas de energia nuclear. Portanto, a preocupação da China, assim como de outros países é justificável”, concluiu.
Na mesma linha, em agosto deste ano, o médico costarriquenho, copresidente da Associação Internacional de Médicos para a Prevenção da Guerra Nuclear (Prêmio Nobel da Paz em 1985) e membro da Campanha Internacional para a Abolição de Armas Nucleares (ICAN) (Prêmio Nobel da Paz em 2017), Carlos Umaña, em entrevista à jornalista Milagros Asto Sánchez, publicada pelo jornal peruano El Comércio, um dos tradicionais jornais do país, há várias questões que nem a TEPCO, nem o órgão nuclear da ONU conseguiram responder. O ativista lembrou que um fórum organizado pelas ilhas do Pacífico, onde um painel independente de cientistas foi contratado, levantou sérias dúvidas sobre o lançamento das águas de Fukushima no mar. “Por exemplo, poucos tanques contendo essa água radioativa foram amostrados, coisas como o lodo deixado no tanque ou vários outros pontos em relação à contaminação ambiental não foram levados em consideração”, afirmou o especialista.
Umaña ainda contesta a falta de disposição dos japoneses para eliminar as dúvidas dos opositores ao plano e a participação da AIEA na questão. “O Japão não mudou em nada a sua posição e o problema é que estão amparados pela AIEA, que não é imparcial porque é uma organização nuclear, que promove a energia nuclear. Embora o Fórum das Ilhas do Pacífico tenha encomendado um estudo independente a cinco cientistas e várias outras organizações científicas tenham recomendado contra este despejo, o Japão insiste que não tem consequências”, explicou o também médico.
Para ele, os efeitos da radiação no mar foram subestimados, já que os isótopos não foram medidos adequadamente. Umaña ainda enfatizou que a contaminação transcenderá a fronteira marítima do Japão e se estenderá a todas as áreas do Pacífico, incluindo também o continente americano. “Sobre o acidente de Fukushima se fala que já existem alimentos contaminados por radiação. E essa contaminação radioativa se traduz em maior incidência de doenças como câncer, doenças crônicas como artrite, doenças cardiovasculares e, além disso, maior possibilidade de malformações congênitas”, ressaltou.
O ativista ainda argumentou que considera tratar-se de riscos que não estão sendo levados em conta e questionou o rigor dos estudos realizados para a concretização do plano japonês. Conforme outros especialistas consultados pelo jornal peruano, é difícil falar dos riscos na população porque a radiação não é suficientemente elevada. Porém, o nível de radiação nas populações de peixes da região pode ser medido, o que nos permitiria extrapolar a possibilidade de doenças que ocorrem devido a esta radiação.
“Há muitas preocupações em relação a estes relatórios que não são cientificamente aprofundados e quando falamos de radiação e da contaminação isso tem que ser muito preciso e não está acontecendo neste caso”, afirmou à jornalista Sanchez. Ele ainda finalizou a entrevista com um alerta: “O oceano Pacífico é vasto, por isso não é esperada uma poluição muito elevada. Contudo, com o acidente de Fukushima, já foram detectados níveis de radiação nas costas da Califórnia. Se esta contaminação continuar, pode haver maior teor de radiação no Oceano Pacífico que acabe afetando as costas dos EUA e também da América Latina”, enfatizou Umaña.
Para Ronnie Lins, consultor brasileiro da Academia Chinesa Contemporânea, neste contexto de desequilíbrio ambiental, as medidas que o Japão adotou são nocivas e vão contra a lógica de como se deve proceder. “Trata-se de uma questão complexa e que não houve a transparência que deveria haver. Era preciso fazer uma consulta com os demais países para averiguar, de forma conjunta, o impacto que isso poderia ter tanto no meio ambiente, como também na economia da região”, salientou.
*Esta matéria foi originalmente publicada pela Revista Intertelas sob o título Especialistas alertam para a falta de transparência do plano Japão em despejar material radioativo no oceano Pacífico