Segundo o Ministério Público de Minas Gerais, mineradora sabia de risco de rompimento desde 2017 e mantinha a Mina Córrego do Feijão em uma lista de barragens em ‘situação inaceitável de segurança’
O Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) e a Polícia Civil do estado (PC-MG) apresentaram à 2ª Vara Criminal de Brumadinho, na terça-feira (21), a denúncia de 16 executivos, gerentes da mineradora Vale e da empresa de consultoria alemã Tüv Süd, por homicídios dolosos duplamente qualificados e por diversos crimes ambientais em decorrência do rompimento da Barragem I, na Mina Córrego do Feijão, no dia 25 de janeiro de 2019.
O crime deixou 270 pessoas mortas, entre funcionários da Vale e de empresas terceirizadas, moradores do município e visitantes, além de deixar um rastro de destruição por toda a região. O principal denunciado pela morte das 270 vítimas foi Fabio Schvartsman, que ocupava a presidência da mineradora à época do crime. Segundo a denúncia do MP-MG, a diretoria a Vale detinha conhecimento sobre a situação caótica da barragem, ocultou as informações e colocou seus funcionários e a população em risco ao manter a estrutura em funcionamento.
As Vale S.A. e a Tüv Süd Bureau de Projetos e Consultoria Ltda. também foram denunciadas pelos mesmos crimes ambientais.
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CAIXA-PRETA
De acordo com o MP-MG e a Polícia Civil, com a conclusão das investigações, ficou demonstrada a existência de uma promíscua relação entre as duas corporações denunciadas, no sentido de esconder do Poder Público, sociedade, acionistas e investidores a inaceitável situação de segurança de várias das barragens de mineração mantidas pela Vale. Para o MP, a Vale possuía “um profundo e amplo conhecimento” sobre a situação da barragem.
“Com o apoio da Tüv Süd, a Vale operava uma caixa-preta com o objetivo de manter uma falsa imagem de segurança da empresa de mineração, que buscava, a qualquer custo, evitar impactos a sua reputação e, consequentemente, alcançar a liderança mundial em valor de mercado”, diz o documento.
Segundo as investigações, ao menos desde 2017, a Barragem I da Mina Córrego do Feijão já apresentava situação crítica para riscos geotécnicos. Em 2018, outras anomalias se seguiram, aprofundando a situação de emergência da barragem. Os principais modos de falha com análises de estabilidade em valores inaceitáveis de segurança eram erosão interna e liquefação, ambas relacionadas com problemas de drenagem interna da barragem.
Na denúncia, os promotores de Justiça descrevem práticas e instrumentos de gestão de informação da Vale, que foram relevantes para o amplo conhecimento interno do risco geotécnico inaceitável e intolerável calculado para a Barragem I e para diversas outras barragens da mineradora. Citam como exemplos, os sistemas computacionais Geotec (Sistema de Gerenciamento de Recursos Geotécnicos) e GRG (Gestão de Risco Geotécnico), que permitiam, ao mesmo tempo, a produção de conhecimento (estatísticas e análises gráficas) sobre a situação global das barragens e o conhecimento profundo das peculiaridades do dia a dia de cada estrutura.
Outro exemplo de produção e compartilhamento de informações eram os Painéis Independentes de Especialistas para Segurança e Gestão de Riscos de Estruturas Geotécnicas (Piesem), que reuniam especialistas externos e as equipes técnicas da Vale e de empresas contratadas (consultores e auditores externos) para debater sobre temas críticos e definir parâmetros de análises técnicas e de tolerabilidade aos riscos. Ao final de cada Piesem, os especialistas consolidavam um relatório final, que circulava internamente, contendo todas as informações relevantes para tomada de decisão da alta cúpula.
No Piesem de junho de 2018 (seis meses antes do rompimento), a Barragem I ocupava a oitava posição no “Ranking de Barragens em Situação Inaceitável”, que foi chamado na apresentação de “TOP 10 – Probabilidade”. As 10 barragens listadas eram consideradas com probabilidade de falha acima do limite aceitável a partir de resultados de estudos da própria Vale. Contraditoriamente, no mesmo mês do evento, a equipe técnica da Tüv Süd emitiu Declaração de Condição de Estabilidade (DCE) da Barragem I. A reiterada contradição, constatada também em outras barragens, foi, inclusive, apontada no relatório final do Piesem de julho de 2018, que concluiu que, “mesmo com o resultado das análises não drenadas de estabilidade indicando fatores de segurança mais baixos, as declarações de estabilidade foram emitidas”.
“A situação inaceitável de segurança geotécnica da Barragem I da Mina Córrego do Feijão era plena e profundamente conhecida pelos denunciados, os quais concorreram para a omissão na adoção de medidas conhecidas e disponíveis de transparência, segurança e emergência, assumindo, desta forma, o risco de produzir os resultados decorrentes do rompimento”.
PLANO DE AÇÕES EMERGENCIAIS
Os promotores de Justiça argumentam que, tendo conhecimento do risco de um rompimento, os denunciados tinham o dever de tomar as medidas de segurança necessárias, como o acionamento do Plano de Ações Emergenciais para Barragens de Mineração (PAEBM), mas preferiram arriscar para não gerar impactos na reputação da Vale e no valor de suas ações.
A denúncia aponta ainda uma relação de pressão, conluio, recompensas e conflito de interesses entre a Vale e a Tüv Süd. A empresa alemã, ao mesmo tempo que emitia DCEs como auditora externa – da qual se exige independência – atuava como consultora interna da Vale, assessorando tecnicamente para a tomada de decisões e ficando a sua equipe técnica sujeita a orientação e interferência direta do corpo técnico da Vale.
Além da relevância dos valores dos contratos de consultoria interna, que eram bastante superiores aos valores dos contratos de auditoria externa, o conluio com a Vale representou uma oportunidade de ampliação exponencial das atividades da Tüv Süd no Brasil. Em razão da duplicidade de posições técnicas, mais do que a emissão de DCEs falsas, a Tüv Süd assumiu o protagonismo da análise e gestão técnica dos graves riscos geotécnicos conhecidos e calculados da Barragem I, aderindo e norteando o risco proibido assumido pela Vale.
“Em um contexto de divisão de tarefas, os denunciados concorreram de forma determinante para a omissão penalmente relevante quanto aos deveres de providenciar medidas de transparência, segurança e emergência, que, caso tivessem sido adotadas, impediriam que os resultados mortes e danos ambientais ocorressem da forma e na proporção em que ocorreram. Escolheram apostar alto, evitando os impactos reputacionais imediatos e, consequentemente, assumindo riscos gravíssimos de rompimento, de morte e de extenso dano ambiental, riscos estes que, apesar de proibidos e altamente prováveis, não eram certos ou necessariamente imediatos.”
Denunciados:
Além das duas empresas, 11 indiciados e denunciados ocupavam, à época do evento criminoso, os seguintes cargos na Vale:
1. Fabio Schvartsman (diretor-presidente);
2. Silmar Magalhães Silva (diretor do Corredor Sudeste);
3. Lúcio Flavo Gallon Cavalli (diretor de Planejamento e Desenvolvimento de Ferrosos e Carvão);
4. Joaquim Pedro de Toledo (gerente-executivo de Planejamento, Programação e Gestão do Corredor Sudeste);
5. Alexandre de Paula Campanha (gerente-executivo de Governança em Geotecnia e Fechamento de Mina);
6. Renzo Albieri Guimarães de Carvalho (gerente operacional de Geotecnia do Corredor Sudeste);
7. Marilene Christina Oliveira Lopes de Assis Araújo (gerente de Gestão de Estruturas Geotécnicas);
8. César Augusto Paulino Grandchamp (especialista técnico em
Geotecnia do Corredor Sudeste);
9. Cristina Heloíza da Silva Malheiros (engenheira sênior junto à Gerência de
Geotecnia Operacional);
10. Washington Pirete da Silva (engenheiro especialista da Gerência Executiva de Governança em Geotecnia e Fechamento de Mina);
11. Felipe Figueiredo Rocha (engenheiro civil, atuava na Gerência de Gestão de Estruturas Geotécnicas).
Da Tüv Süd, empresa alemã responsável pelo laudo que atestou a segurança da barragem, cinco pessoas foram indiciadas e denunciadas:
1. Chris-Peter Meier (gerente-geral da empresa);
2. Arsênio Negro Júnior (consultor técnico);
3. André Jum Yassuda (consultor técnico);
4. Makoto Namba (coordenador);
5. Marlísio Oliveira Cecílio Júnior (especialista técnico).
ACUSAÇÕES
As 16 pessoas são acusadas pelo crime de homicídio duplamente qualificado (art. 121, § 2º, incisos III e IV do Código Penal), por 270 vezes. Conforme a conclusão das investigações, os crimes foram praticados através de meio que resultou perigo comum, já que um número indeterminado de pessoas foi exposto ao risco de ser atingido pelo violento fluxo de lama.
Além disso, concluiu-se que os crimes foram praticados mediante recurso que impossibilitou ou dificultou a defesa das vítimas, tendo em vista que o rompimento da barragem ocorreu de forma abrupta e violenta, tornando impossível ou difícil a fuga de centenas de pessoas que foram surpreendidas em poucos segundos pelo impacto do fluxo da lama, além do salvamento de outras centenas de vítimas que estavam na trajetória da massa de rejeitos.
Todos os acusados também responderão pela prática de crimes ambientais contra a fauna (artigo 29, caput e § 1º, inciso II, e § 4º, incisos V e VI, do artigo 33, caput, Lei n.º 9.605/1998); crimes contra a flora (artigo 38, caput, do artigo 38-A, caput, do artigo 40, caput e do artigo 48, combinados com o artigo 53, inciso I, da Lei n.º 9.605/1998); e crime de poluição (artigo 54, § 2º, inciso III, da Lei n.º 9.605/1998).
REJEITOS
O rompimento da Barragem I ocasionou o vazamento de aproximadamente 9,7 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração em forma de lama, destruindo, durante seu fluxo, parcelas de comunidades, acessos, áreas revestidas por florestas, áreas utilizadas para cultivos e, de modo geral, assolando tudo aquilo que se encontrava em sua trajetória, até alcançar a confluência do ribeirão Ferro-Carvão com o rio Paraopeba, a aproximadamente 9 quilômetros da barragem.
De acordo com as investigações, em razão do rompimento e da onda de rejeito que se seguiu, os denunciados deram causa à morte de espécimes da fauna silvestre, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente; destruição de ninhos, abrigos ou criadouros naturais; perecimento de espécimes da fauna aquática; destruição de florestas consideradas de preservação permanente e vegetação secundária do Bioma Mata Atlântica; dano direto ou indireto às unidades de conservação e às áreas circundantes; poluição de diversas naturezas em níveis que resultaram em danos à saúde humana, mortandade de animais e destruição significativa da flora; poluição hídrica que tornou necessária a interrupção do abastecimento público de água de comunidades da região.
1 ANO DE INVESTIGAÇÃO
Durante quase um ano, promotores de Justiça e delegados de Polícia coletaram e produziram milhares de documentos, que instruem 85 volumes de Procedimento Investigatório Criminal e Inquérito Policial. No curso das diligências, foram ouvidas 183 pessoas, entre investigados, testemunhas e vítimas sobreviventes. Foram, ainda, cumpridos 23 mandados de busca e apreensão e analisados 94 dispositivos eletrônicos, que continham quase 6 milhões de arquivos digitais, os quais representam o volume de 4.711 GB, quase quase 5 terabytes de material.
Para a análise dos milhões de arquivos eletrônicos copiados dos equipamentos apreendidos, foi empenhada equipe de 10 policiais militares do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco). Os órgãos técnico-científicos do MPMG e da PCMG promoveram profundos estudos interdisciplinares de variados aspectos do rompimento da Barragem I e suas consequências humanitárias e ambientais.
Assinam a denúncia os promotores de Justiça William Garcia Pinto Coelho, Ana Tereza Ribeiro Salles Giacomini, Francisco Chaves Generoso, Paula Ayres Lima, Fabrício José Fonseca Pinto, Leandro Wili e Wagner Marteleto Filho.
O relatório final da investigação conjunta é assinado pelos promotores de Justiça citados e pelos delegados da Polícia Civil Bruno Tasca Cabral, Eduardo Vieira Figueiredo e Luiz Otávio Braga Paulon.
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