Artigo publicado na Revista Lancet, aponta a falta de um plano nacional para utilizar os mais de 286 mil agentes comunitários do país na luta contra a Covid
Em um artigo publicado na The Lancet – uma das principais revistas científicas do mundo -, pesquisadores brasileiros da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de S. Paulo (FAPESP), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), da Universidade de York e London School of Economics alertam para a negligência com que Bolsonaro tratou os agentes comunitários de saúde e o papel que eles podem desenvolver na pandemia da Covid-19.
Segundo a professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Gabriela Lotta, que integra o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) apoiado pela FAPES e participou do estudo, “já em março, pesquisadores do Imperial College London apontaram o Brasil como forte candidato a dar uma boa resposta à pandemia. De acordo com eles, o enfrentamento com base nas ações, estrutura e na capilaridade dos agentes comunitários poderia servir de exemplo para outros países. Mas não foi o que aconteceu. Não houve um plano nacional e os agentes comunitários só passaram a ser considerados trabalhadores essenciais para o controle da doença agora em julho. Como nem sequer eram considerados profissionais de saúde, não receberam equipamento de proteção individual, para citar um exemplo”, afirmou.
O Brasil conta com mais de 286 mil agentes comunitários de saúde integrados ao programa nacional de atenção básica à saúde. Esses profissionais formam uma estrutura altamente capacitada, capaz de atender 75% da população, a parcela mais carente, que vem sendo mais impactada pela pandemia de Covid-19.
“Esse profissional existe em vários países do mundo, mas a aposta dos pesquisadores ingleses no Brasil se dava pelo fato de termos sido um dos primeiros a adotar os agentes comunitários de saúde como parte integrante de uma equipe dentro de uma unidade básica de saúde, que faz parte da política pública nacional do Sistema Único de Saúde. Na maioria dos países eles são profissionais desconectados do sistema de saúde, ligados a organizações da sociedade civil, por exemplo”, afirmou a professora em entrevista à Agência FAPESP.
DECISÃO
Para Gabriela, a diferença estrutural com que a atenção básica a saúde funciona no Brasil, facilita a ação dos agentes comunitários durante a pandemia em território nacional. “Desde que eles tivessem equipamento de proteção disponível, treinamento, decisão governamental, suporte e reconhecimento da sua importância”, afirmou a professora.
Entre as funções que podem ser exercidas pelos agentes comunitários durante a pandemia, a pesquisadora destaca funções essenciais como o rastreamento de contato de pessoas infectadas, a disseminação da informação, atuação no combate às fake news e controle do isolamento de casos confirmados.
“Parte do trabalho deles já era entrar em contato com a população para monitorar a necessidade de atendimento de saúde. Alguns pouquíssimos municípios brasileiros e os vários países que tiveram rastreamento o fizeram por meio de agentes comunitários de saúde”, diz.
“Eles já têm um trabalho de educação em saúde, são moradores das comunidades onde atuam e têm certa legitimidade com a população. Portanto, levar informação sobre medidas de higiene, uso de máscara e como fazer o isolamento teria, inclusive, efeito no combate às fake news. Alguns poucos municípios usaram carros de som com agentes comunitários informando a população sobre a necessidade desses cuidados”, explica Gabriela.
Para Gabriela, esses trabalhadores podem monitorar, por teleatendimento, doentes em isolamento residencial, desde que a prefeitura oferecesse termômetros e oxímetros, auxiliando assim na avaliação sobre a necessidade e o momento ideal para hospitalizá-los.
Os agentes também podem atual nas barreiras sanitárias estabelecidas na entrada das cidades, aponta a pesquisadora. “Principalmente em municípios turísticos, a epidemia foi levada por visitantes que estavam infectados e não apresentavam sintomas. Alguns municípios fizeram experiências interessantes que poderiam ser disseminadas ao colocar os agentes comunitários para medir a temperatura das pessoas na entrada das cidades e também informar a esses visitantes sobre a pandemia. Para isso, claro, eles teriam que receber os equipamentos de proteção e apoio da prefeitura. Certamente essas medidas aparentemente simples – já que temos a estrutura – e tão essenciais teriam impacto positivo na contenção do espalhamento do vírus”, explicou.
COORDENAÇÃO NACIONAL
A pesquisadora ainda aponta que a falta de coordenação nacional na atuação contra a Covid-19 mostra o subaproveitamento, nos municípios, dos agentes comunitários. Isso porque, embora eles atuem junto ao poder municipal, toda a determinação sobre recursos e funcionalidades ligadas aos agentes comunitários de saúde pertencem ao governo federal.
“Existe uma desigualdade enorme entre os municípios brasileiros e aqueles que não têm recursos para decidir sozinhos que estratégias devem executar ficam de mãos atadas. Pois o plano é nacional e parte relevante do repasse de recursos para os agentes comunitários é federal também. Cabe ao município executar. Claro que, se uma cidade tiver recursos, ela pode usá-los, mas as normativas principais são do governo federal. É ele que define se os agentes comunitários são profissionais de saúde ou não, e se é preciso pagar adicional de insalubridade. Isso tudo é decisão nacional”, explicou.
Durante os quatro primeiros meses de pandemia, os agentes comunitários de saúde não receberam treinamento nem equipamentos de proteção individual. Somente com a lei 14.023/2020, sancionada em 21 de julho, o trabalhou dos agentes comunitários de saúde passou a ser considerado essencial durante a pandemia.
“Como não houve um plano nacional e eles nem sequer eram considerados profissionais de saúde, apenas 9% receberam treinamento para controle de infecções e equipamentos de proteção individual (EPIs). Os sindicatos estimam cerca de 100 agentes mortos por COVID-19. Mas é possível que esse número seja, pelo menos, três vezes maior”, denuncia Lotta.
Segundo o Conselho Federal de Enfermagem, o Brasil está em primeiro lugar no ranking mundial de mortes de profissionais da enfermagem por Covid-19. “Embora tardia, a lei é bem-vinda e a expectativa é boa caso ela venha a ser implementada. Pelo menos agora os agentes comunitários têm um instrumento legal definindo que eles só podem trabalhar caso haja equipamento de proteção. Antes disso, eles não tinham sequer como exigir proteção. Estavam muito vulneráveis”, afirmou a professora.
A lei, por si só, não resolve a questão dos agentes comunitários, nem a sua inserção no combate à pandemia, “embora contribua muito, não necessariamente vai virar uma política melhor”. Gabriela destaca a necessidade do governo federal tomar a frente. “O município sozinho, mesmo com a lei aprovada, não tem como priorizar os agentes comunitários no combate à pandemia sem a definição de um plano estratégico e a destinação de recursos”.
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