Em seu discurso, Chico fez uma bela homenagem ao seu pai e aproveitou para dedicar o prêmio aos artistas brasileiros que foram “humilhados e ofendidos” pelo fascismo
Chico Buarque de Holanda recebeu nesta segunda-feira (24) das mãos do presidente Lula o Prêmio Camões, em uma cerimônia realizada no Palácio de Queluz, no município de Sintra, distrito de Lisboa. O prêmio foi concedido em 2019, mas não pôde ser entregue pela recusa do governo fascista de Jair Bolsonaro em assinar o diploma.
Em seu discurso, Lula se disse honrado em participar da cerimônia. “Se hoje estamos aqui para fazer esse gesto de reparação e celebração da obra do Chico, é porque a democracia venceu no Brasil”, afirmou o presidente.
Assista a cerimônia
“É uma satisfação corrigir um dos maiores absurdos cometidos contra a cultura. O prêmio Camões deveria ter sido entregue a Chico Buarque em 2019 e não foi. Sabemos por quê”. “O ataque à cultura em todas as suas formas” foi parte de “um projeto que a extrema-direita” tentou implementar no Brasil “nos últimos quatro anos”, denunciou.
“A vasta contribuição da obra de Chico Buarque vai além de seus inegáveis aportes à riqueza literária da língua portuguesa e mostra que arte e cultura estão entrelaçados com a política e com nossos ideais de liberdade e democracia”, disse Lula.
“Ao expressar a beleza de tantos heróis quase anônimos de nossos povos, Chico não nos deixou esquecer a força inquebrantável que vem da expressão popular de nossas culturas únicas, mas compartilhadas. O estreitamento de nosso intercâmbio cultural deve ainda ser aprofundado”, acrescentou o presidente.
“Chico, em seu cancioneiro, em suas peças de teatro e em seus romances, nunca deixou de fazer da língua portuguesa instrumento de transmissão de nossas culturas e de nossas lutas. Na literatura, Chico fez de sua obra uma declaração de amor à língua portuguesa”, disse Lula.
“A obra de Camões marca o início da grande epopeia da língua portuguesa. A obra de nosso Chico Buarque, produzida nesse mesmo idioma, acompanha toda a história recente do Brasil, com especial atenção ao destino político e cultural de nossos países-irmãos”, destacou.
“Não podemos esquecer que o obscurantismo e a negação das artes também foram uma marca do totalitarismo e das ditaduras que censuraram o próprio Chico no Brasil e em Portugal. Esse prêmio é uma resposta do talento contra o censura, do engenho contra a força bruta”, denunciou.
Em seu discurso, Chico Buarque de Holanda fez uma bela homenagem ao seu pai, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, e aproveitou para dedicar o prêmio aos artistas brasileiros que foram “humilhados e ofendidos” durante os últimos 4 anos de “estupidez e obscurantismo” do governo de Jair Bolsonaro.
“No que se refere ao meu país, quatro anos de governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil e em toda a parte”, disse Chico.
Leia o discurso de Chico Buarque na íntegra
“Ao receber este prêmio penso no meu pai, o historiador e sociólogo Sergio Buarque de Holanda, de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa. Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária.
Mais tarde, quando me bandeei para a música popular, não se aborreceu, longe disso, pois gostava de samba, tocava um pouco de piano e era amigo próximo de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua. Posso imaginar meu pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá no meu posto, a receber o Prêmio Camões com muito mais propriedade. Meu pai também contribuiu para a minha formação política, ele que durante a ditadura do Estado Novo militou na Esquerda Democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro.
No fim dos anos sessenta, retirou-se da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em solidariedade a colegas cassados pela ditadura militar. Mais para o fim da vida, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática no nosso país, nem muito menos pressupor que um dia cairíamos num fosso sob muitos aspectos mais profundo.
“O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco. Recuando no tempo em busca das minhas origens, recentemente vim a saber que tive por duodecavós paternos o casal Shemtov ben Abraham, batizado como Diogo Pires, e Orovida Fidalgo, oriundos da comunidade barcelense. A exemplo de tantos cristãos-novos portugueses, sua prole exilou-se no Nordeste brasileiro do século XVI.
Assim, enquanto descendente de judeus sefarditas perseguidos pela Inquisição, pode ser que algum dia eu também alcance o direito à cidadania portuguesa a modo de reparação histórica. Já morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência, mas é sempre bom saber que tenho uma porta entreaberta em Portugal, onde mais ou menos sinto-me em casa e esmero-me nas colocações pronominais. Conheci Lisboa, Coimbra e Porto em 1966, ao lado de João Cabral de Melo Neto, quando aqui foi encenado seu poema Morte e Vida Severina com músicas minhas, ele, um poeta consagrado e eu, um atrevido estudante de arquitetura. O grande João Cabral, primeiro brasileiro a receber o Prêmio Camões, sabidamente não gostava de música, e não sei se chegou a folhear algum livro meu.
“Escrevi um primeiro romance, Estorvo, em 1990, e publicá-lo foi para mim como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação. Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, hoje meus colegas de Prêmio Camões. De vários autores aqui premiados fui amigo, e de outras e outros – do Brasil, de Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde — sou leitor e admirador. Mas por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim.
“Valeu a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos. Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se me haviam esquecido, ou, quem sabe, se prêmios também são perecíveis, têm prazo de validade. Quatro anos, com uma pandemia no meio, davam às vezes a impressão de que um tempo bem mais longo havia transcorrido. No que se refere ao meu país, quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele Governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda parte. Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-Presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso Presidente Lula. Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo.
“Muito obrigado!”
Leia o discurso de Lula na íntegra
O convite para participar, aqui em Portugal, da cerimônia de entrega do prêmio Camões ao querido Chico Buarque é motivo de grande honra e de imensa alegria.
Hoje, para mim, é uma satisfação corrigir um dos maiores absurdos cometidos contra a cultura brasileira nos últimos tempos. Digo isso porque esse prêmio deveria ter sido entregue em 2019 e não foi.
Todos nós sabemos por quê. O ataque à cultura, em todas as suas formas, foi uma dimensão importante do projeto que a extrema direita tentou implementar no Brasil.
Se hoje estamos aqui para fazer esse gesto de reparação e celebração da obra do Chico, é porque a democracia venceu no Brasil.
Não podemos esquecer que o obscurantismo e a negação das artes também foram uma marca do totalitarismo e das ditaduras que censuraram o próprio Chico no Brasil e em Portugal. Esse prêmio é uma resposta do talento contra o censura, do engenho contra a força bruta. Um prêmio escolhido por unanimidade por jurados de Portugal, do Brasil, de Angola e Moçambique. Um prêmio da língua portuguesa que nos une mesmo quando barreiras geográficas ou fronteiras nos separam.
Hoje já é outro dia.
Meus caros amigos e amigas,
A obra de Camões marca o início da grande epopeia da língua portuguesa, que hoje floresce nos nove países que a utilizam oficialmente. A obra de nosso Chico Buarque, produzida nesse mesmo idioma, acompanha toda a história recente do Brasil, com especial atenção ao destino político e cultural de nossos países-irmãos.
Chico transformou em patrimônio literário comum os amores de nossos povos, as alegrias de nossos carnavais, as belezas de nossos fados e sambas, as lutas obstinadas de nossas cidadãs e cidadãos pela conquista da liberdade e da democracia.
Em seu cancioneiro, em suas peças de teatro e em seus romances, o autor hoje homenageado nunca deixou de fazer da língua portuguesa instrumento de transmissão de nossas culturas e de nossas lutas.
Na literatura, Chico fez de sua obra uma declaração de amor à língua portuguesa, mesmo quando ousou transformar o idioma húngaro em um dos personagens centrais do romance “Budapeste” – que José Saramago saudou com estas palavras:
“Chico Buarque ousou muito, escreveu cruzando um abismo sobre um arame e chegou ao outro lado. Não creio enganar-me dizendo que algo novo aconteceu no Brasil com este livro”.
Na obra de Chico Buarque, o passado, o presente e o futuro de nossas nações sempre estiveram vinculados. Foi assim que ele decidiu revisitar nossa história, na peça Calabar, para nos mostrar, por meio deste personagem luso-brasileiro, quantas vezes em nosso destino se fizeram de traidores, heróis; de heróis, condenados; e da justiça, arbítrio.
Quando Brasil e Portugal atravessavam violentos regimes ditatoriais, foi assim que Chico jogou luz sobre a festa da redemocratização portuguesa, fazendo com que guardássemos, “teimosos e renitentes”, um velho cravo como esperança para nós mesmos. Um cheirinho de alecrim.
E foi assim que Chico também festejou a independência política de nossos irmãos e irmãs africanos.
Minhas caras amigas e amigos,
Chico conseguiu sintetizar as paixões e os desejos de tantas Joanas e Joões, de tantas Teresas e Josés Costas, de tantas Genis e Pedros pedreiros, de tantos guris e mambembes de nossa gente. Transformou o cotidiano em poesia extraordinárias.
Mas a vasta contribuição da obra de Chico Buarque vai além de seus inegáveis aportes à riqueza literária da língua portuguesa e mostra que arte e cultura estão entrelaçados com a política e com nossos ideais de liberdade e democracia.
Ao expressar a beleza de tantos heróis quase anônimos de nossos povos, Chico não nos deixou esquecer a força inquebrantável que vem da expressão popular de nossas culturas únicas, mas compartilhadas. O estreitamento de nosso intercâmbio cultural, que deve ainda ser aprofundado, só poderá enriquecer as tradições e expressões de nossos povos.
Não posso deixar, portanto, de agradecer, aos organizadores deste prêmio literário (a Fundação Biblioteca Nacional do Brasil e a Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas de Portugal) e a todos aqueles que têm contribuído para aproximação de nossas sociedades e para o fortalecimento de nossos valores e aspirações comuns.
Como nosso autor homenageado, tenho a convicção de que é desejo de todos nós que, na celebração das nossas democracias e da nossa valiosa produção cultural, possamos nos tornar, todos, uma imensa unidade alicerçada na nossa rica diversidade.
A unidade na diversidade que Chico Buarque sonhou na bela canção em parceria com Ruy Guerra: um “Fado Tropical”, onde o rio Amazonas desagua no Tejo, brotam avencas na Caatinga e alecrins no Canavial, e se misturam guitarras, sanfonas, jasmins, coqueiros, fontes, sardinhas e mandiocas. Tudo num suave azulejo, como somente a sensibilidade desse gênio da língua portuguesa é capaz de criar.
Meus parabéns, querido Chico.
Eu vinha pensando em dizer uma coisa para você ao terminar a minha fala. Quando eu nasci, ainda era muito pequeno, eu queria ser cantor, eu queria escrever peças de teatro e eu queria, sabe, fazer tudo o que você faz, inclusive escrever romances.
Aí falei para minha mãe que eu queria ser tudo isso. Ela falou: “Não, meu filho, você não pode ser, porque já nasceu um menino dois anos mais velho do que você chamado Chico Buarque, que vai ser o mais importante”.
E eu há 75 anos falei para minha mãe: “E eu, o que vou ser?” Ela falou: “Se prepare que você vai ser presidente”. E aqui estou eu, presidente da República, e o Chico representando a cultura viva do nosso país.
Parabéns, companheiro Chico Buarque, por receber merecidamente o prestigioso prêmio Camões. Você, mais do que ninguém, merece.
E que queria aproveitar e prestar homenagem ao Raduan Nassar, que foi o último a receber e que queria vir nessa festa e não pôde vir porque está doente.
Muito obrigado!