Em suas alegações finais no processo sobre a propina das obras no sítio de Atibaia – um calhamaço de 1.643 páginas, assinado por 10 advogados – o ex-presidente Lula queixa-se de que a juíza Gabriela Hardt, que responde no momento pela 13ª Vara Federal de Curitiba, teve “conduta agressiva” com ele.
Para que o leitor tenha uma ideia precisa das queixas de Lula, o trecho de suas alegações a que nos referimos é o seguinte:
“… importante frisar ainda lamentável episódio, o qual é decorrência direta da postura desse juízo e da horrorosa e ilegal espetacularização dada aos processos relacionados ao Defendente, o que também constata, no ponto, ser em mesma medida este Juízo carecedor da imparcialidade objetiva.
“Não apenas a conduta da aludida julgadora foi absolutamente agressiva e padecente de razoabilidade com o Defendente – para não dizer incompatível com respeito que é devido à figura do Ex-Presidente da República – alguns dias após o interrogatório, a midiática frase aqui proferida estampava a camiseta da esposa do antagonista político do Defendente, hoje primeira dama da República” (Luís Inácio Lula da Silva, Alegações finais na forma de memoriais, pp. 116-117, grifos no original).
Não procede a queixa de Lula.
O episódio a que se refere é o seguinte, no início de seu interrogatório no caso do sítio:
JUÍZA HARDT: Senhor Luiz Inácio Lula da Silva, eu vou chamá-lo de ex-presidente? Você prefere como?
LULA: Doutora, se você puder falar um pouquinho mais alto, para mim seria bom.
JUÍZA HARDT: Posso chamá-lo de ex-presidente?
LULA: Pode.
JUÍZA HARDT: Então, o senhor sabe do que está sendo acusado nesse processo, não é?
LULA: Não. Não sei. Gostaria de pedir… Se a senhora pudesse me explicar, qual é a acusação?
JUÍZA HARDT: O senhor tem dois conjuntos de acusação. Os primeiros… A primeira parte da acusação diz respeito à corrupção, que o senhor teria recebido vantagens indevidas da Odebrecht e da OAS, relacionadas aos contratos que elas têm com a Petrobras. E um segundo conjunto de atos, que seriam atos de lavagem de dinheiro relacionados à reforma do sítio em benefício ao senhor e à sua família, que foram feitas, num primeiro momento, pelo Bumlai, num segundo momento, pela Odebrecht e, num terceiro momento, pela OAS. Um resumo muito sintético seria esse.
LULA: Não. Eu imagino que a acusação que pesava sobre mim é que eu era dono de um sítio em Atibaia.
JUÍZA HARDT: Não, não é isso que acontece. É ser beneficiário de reformas que foram feitas. A acusação passa pela relação de o senhor ser dono do sítio, mas a acusação imputada é de o senhor ser beneficiário das reformas que foram feitas por essas entre essas pessoas que eu lhe falei, Bumlai, Odebrecht e OAS.
LULA: Doutora, eu só queria perguntar, para o meu esclarecimento, porque eu estou disposto a responder toda e qualquer pergunta. Eu sou dono do sítio ou não?
JUÍZA HARDT: Isso é o senhor que tem que responder, doutor, e eu não estou sendo interrogada nesse momento.
LULA: Quem tem que responder é quem me acusou.
JUÍZA HARDT: Doutor… Senhor ex-presidente, isso é um interrogatório e, se o senhor começar nesse tom comigo, a gente vai ter problema. Então, vamos começar de novo. Eu sou a juíza do caso, eu vou fazer as perguntas que eu preciso para que o caso seja esclarecido, para que eu possa sentenciá-lo, ou algum colega possa sentenciá-lo. Então, num primeiro momento, eu quero dizer que o senhor tem todo o direito de ficar em silêncio, mas nesse momento eu conduzo o ato.
ADVOGADO DE LULA: Pela ordem, Meritíssima Juíza. Nos termos do que dispõe a Constituição e as leis de processo penal, a Excelência bem sabe, o interrogatório é o ato em que o acusado exerce a autodefesa. Tem que ter a mais absoluta liberdade para expor os fatos e indagar a respeito do que está sendo acusado.
JUÍZA HARDT: Eu vou interromper o áudio nesse momento. Eu posso fazer as perguntas ao seu cliente? O senhor orientou ele do que está sendo acusado nesse processo? Ele está apto a ser interrogado ou o senhor precisa sair dessa sala e conversar com ele e ele retornar?
ADVOGADO DE LULA: Absolutamente não. Eu só quero que ele tenha a liberdade de, nas formas da Constituição e da lei, responder da forma como ele acha adequado.
JUÍZA HARDT: Ele responde respondendo, não fazendo perguntas ao juízo ou à acusação. O senhor se sente apto a ser interrogado neste momento, senhor ex-presidente?
LULA: Eu me sinto apto e me sinto desconfortável.
JUÍZA HARDT: Se o senhor se sente desconfortável, o senhor pode ficar em silêncio. Como eu ia dizer, o silêncio do senhor não será usado em prejuízo à sua defesa. Se o senhor quiser responder as perguntas que primeiro eu vou lhe fazer, depois o órgão do Ministério Público e depois as defesas, o senhor pode responder.
LULA: Quando é que eu posso falar, doutora?
JUÍZA HARDT: O senhor pode falar e o senhor pode responder quando eu perguntar no começo.
LULA: Mas, pelo que eu sei, é meu tempo de falar.
JUÍZA HARDT: Não. É o tempo de responder às minhas perguntas. Não vou responder interrogatório nem questionamentos aqui. Está claro? Está claro que eu não vou ser interrogada?
LULA: Eu não imaginei que fosse assim, doutora.
JUÍZA HARDT: Eu também não.
LULA: Como eu sou vítima de uma mentira, há muito tempo, eu imaginei que agora…
JUÍZA HARDT: Eu também não imaginava. Então vamos começar com as perguntas. Eu já fiz o resumo da acusação e vou fazer perguntas. O senhor fica em silêncio ou o senhor responde. Sr. Cristiano Zanin, eu não lhe concedi a palavra. Eu vou fazer perguntas.
Em seguida, a juíza começou a fazer as perguntas – e Lula começou a responder.
A juíza, portanto, não foi agressiva. Apenas colocou ordem na casa, quer dizer, no juízo pelo qual é responsável.
Além disso, Lula reclamar da agressividade de uma mulher – com quase metade da sua idade – é coisa algo esquisita. Sobretudo para alguém que jamais se destacou pela suavidade.
Lula, por sinal, não compareceu perante à juíza Hardt como ex-presidente, embora assim tenha sido tratado pela juíza. Lula foi à 13ª Vara como réu – aliás, um réu que está preso, condenado, em outro processo, por duas instâncias da Justiça e por quatro juízes diferentes, pelo mesmo tipo de crime de que está sendo acusado no processo do sítio de Atibaia.
Quanto à mulher de Bolsonaro ter usado uma camiseta com a frase da juíza Hardt (“se o senhor começar nesse tom comigo, a gente vai ter problema”), o que isso tem a ver com o caso – ou com a performance da juíza?
Na verdade, essa é a novidade da defesa de Lula: a tese de que ele seria inocente porque Sérgio Moro, o antigo juiz do processo, aceitou ser ministro de Bolsonaro; ou, em versão modificada, Lula seria inocente porque Michelle Bolsonaro usou uma camiseta com a frase da juíza Hardt.
No entanto, nada disso faz algo além de fugir das provas – que, nesse caso, são mais volumosas e mais contundentes do que no caso do triplex.
C.L.
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