EDUARDO DE AZEREDO COSTA
É possível que as pessoas estejam preocupadas e mesmo confusas com o noticiário sobre vacinas contra o novo coronavírus pandêmico (SARS-Cov-2) nesse contexto de uma corrida onde a colaboração e a disputa andam juntas e marcam a linha de uma ética que precisa, no mínimo, realçar as diferenças onde se escondem a competição ideológica e a escaramuça comercial global.
Esse momento ímpar na história, em que vários produtos em teste estão em fases muito semelhantes de desenvolvimento, favorece comparações tanto tecnológicas como mercadológicas. Um dos alvos dessa corrida é a validação da OMS, a qual precisa se equilibrar para prestigiar a todas que ofereçam a expectativa de eficácia e segurança razoáveis, pressionada constantemente por interesses estratégicos e comerciais de empresas, governos e blocos econômicos, inclusive por meio de cientistas, de técnicos e da mídia mundial dos mesmos.
Assim, num esforço de neutralidade ou imparcialidade, propomos esclarecer aspectos de vacinas em fase mais desenvolvida de estudos clínico-epidemiológicos (fase 3] que podem ser divididas em quatro grupos, segundo características de produção do antígeno, isto é, a fração imunogênica que identifica o SARS-Cov-2 como agente etiológico da COVID-19.
1 – Vacina de vírus inativado:
O vírus é cultivado em células de laboratório há muito estudadas (que já servem de cultivo para outros vírus vacinais) sofrem o tratamento para inativação, isto é não se replicarão mais. Esse tipo de vacina tem sido muito seguro, não há possibilidade de produzir uma infecção, podendo ser aplicada em gestantes e mesmo em pessoas imunodeprimidas. A vacina contra a raiva é a mais antiga desse tipo (inicialmente cultivada em cérebro de carneiros e depois em camundongos, foi descontinuada quase cem anos depois por efeitos adversos de resíduos de tecido nervoso). No caso de vacinas bacterianas se utiliza um adjuvante para aumentar a resposta imunitária e se usa mais de uma dose (difteria, tétano, coqueluche) como reforço. Pode ser repetida muitas vezes e em espaços de tempo variáveis. As reações adversas costumam ser locais ou alérgicas.
A primeira vacina contra a Covid-19 a completar as fases 1 e 2 e publicar seus resultados foi a da Sinovac (empresa chinesa), que usa como adjuvante o alúmen. Os resultados preliminares do teste de fase 3, que se realiza no Brasil, em acordo com o Instituto Butantã de São Paulo, foram muito bons em relação à segurança inclusive em idosos. Ela está sendo testada com duas doses e intervalo curto, exatamente por sua segurança e para maior e mais duradoura resposta imunogênica.
O Instituto Butantã anunciou de início que não haverá royalties a pagar para que receba a tecnologia de produção. Espera poder entregar para o Ministério da Saúde 60 milhões de doses, a partir de dezembro.
2 – Vacina que utiliza um outro microorganismo (vetor) para “expressar” o antígeno vacinal:
São vacinas em que, por engenharia genética, modifica-se um agente que produzirá o antígeno. São conhecidas como recombinantes, sendo a mais usada, hoje, a da hepatite B. (Uma bactéria ou um fungo é modificado para tanto.)
Em princípio, precisam de mais de uma dose para reforçar a imunidade também.
Recentemente, a partir de esforços para produzir uma vacina contra o vírus Ebola e outra para a MERS (sindrome respiratória do Oriente Médio), foram usados vírus respiratórios humanos benignos (adenovírus do resfriado comum) para expressar os antígenos virais do SARS-Cov-2. Os vírus que foram bem sucedidos para a produção dessas vacinas foram os conhecidos como Ad5 e Ad26. O adenovírus usado é inativado, tornando-se não replicante. Há algumas vacinas em fase 3 de estudos com essa tecnologia:
A – A vacina da CanSino (estatal chinesa), utiliza o Ad5 como vetor. Resultados das fases 1 e 2 publicados, estando em desenvolvimento a fase 3 em vários países. Resultados preliminares mostram ser segura e de imunogenicidade alta. Utilizará também duas doses. A empresa patenteou o processo.
B – As vacinas da Jonhson&Jonhson e da Pfizer utilizam o Ad26 como vetor. Ainda não conhecemos resultados preliminares de fase 3, que estão sendo realizados em vários países.
C – A chamada vacina russa, é do Instituto Gamaleya. Utiliza na primeira dose o antígeno obtido com o Ad5 ou Ad26 de vetor e na segunda dose com o Ad que não foi aplicado na inoculação inicial, o que produziria uma imunidade maior e mais duradoura. Os resultados da fase 1 e 2, agora já publicados, segundo comentaristas da John Hopkins, publicados na Lancet, coloca desafios a outras vacinas. Um deles é que a vacina foi produzida não só na forma líquida, como liofilizada, que permite utilização em condições de conservação mais precárias dos países tropicais mais pobres (Aliás, os cientistas soviéticos produziram a primeira vacina liofilizada da história, contra a varíola, que permitiu sua erradicação no mundo na década de 1970). Estudos de fase 3 em processo.
Apenas por recordação histórica importante a vacina da varíola foi obtida usando um outro vírus, o da doença de gado bovino, chamado de vacínia, a partir da observação de que ordenhadores de vaca que pegavam a enfermidade não adoeciam de varíola. A imunidade é, portanto, cruzada. Era transferida braço a braço inicialmente e depois produzida a partir de escarificações com o vírus em bezerros, com subsequente tratamento. Hoje é produzida em ovos.
3 – A vacina em desenvolvimento mais conhecida no Brasil e possivelmente na Europa pelo apoio que teve, usa um adenovírus não replicante também, porém, não humano, de chimpanzé (ChAdOx1).
É a dita de Oxford, cujo processo produtivo (essa tecnologia ainda não teve nenhuma vacina aprovada comercialmente) foi desenvolvido em parceria com a biofarmacêutica britânica AstraZenica.
O Governo brasileiro, tomando por base a capacidade produtiva de Biomanguinhos/Fiocruz, adquiriu antecipadamente (antes do início da fase 3) 30 milhões de doses e a tecnologia de produção por 128 milhões de euros, que deveriam estar disponíveis para aplicação em janeiro e dezembro. Outros 70 milhões de doses seriam adquiridos ao longo de 2021 por mais 180 milhões de euros. Recentemente, o estudo de fase 3 dessa vacina foi interrompido por precaução, pelo surgimento de um caso grave neurológico em uma das pessoas na qual foi aplicada. Essa vacina anteriormente já teve seu estudo suspenso por problemas de efeitos adversos.
(Há outra possibilidade para a produção da vacina com outros vetores virais: usar o vírus vivo, isto é, replicante, o que significaria que infectaria a pessoa inoculada e no seu organismo produziria o antígeno viral da COVID-19).
4 – O último grupo se refere às que modificam a estrutura do vírus, reforçando sua capacidade de produzir os anticorpos específicos.
Seriam vacinas do tipo mDNA ou mRNA, “m” representando “mensageiro”. Esse tipo de vacina, que a Moderna, americana, propõe para a Covid-19, ainda não foi aprovada por entidades reguladoras de qualquer país. Porém, já cumpriu as fases 1 e 2 de testes clínicos.
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Há ainda outras vacinas adiantadas menos comentadas no Brasil, inclusive mais duas chinesas. Desconhecemos se alguma usa o SARS-Cov-2 atenuado, método de vacinas virais como a da febre amarela e do sarampo, que dão longa imunidade com dose única. Outras vacinas em pesquisa são as chamadas ocas, isto é utilizam apenas a capa do vírus ou peptídeos da mesma (VLP).
Ainda assim, nenhuma delas, a não ser que uma mutação viral atenue de maneira importante o SARS-Cov-2 circulante, eliminará isoladamente a Covid-19 do Brasil de imediato.
Primeiro, porque as quantidades necessárias farão estender o período a mais de um ano para imunizar a todos os grupos de idade e, segundo, porque a vigilância epidemiológica e uso da vacina na contenção de surtos a cargo do SUS precisará ser eficiente.
11de setembro de 2020.
Referências:
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