Aos 46 anos do golpe que afastou e assassinou o presidente chileno Salvador Allende, que foi sucedido pela ditadura sanguinária de Augusto Pinochet, republicamos matéria do diretor de redação do HP, Carlos Lopes, originalmente divulgada por este jornal em 16 de setembro de 2003, relatando os acontecimentos daqueles trágicos dias
Eleito presidente e ratificado pelo Congresso – o que, de acordo com a Constituição chilena, equivalia ao nosso segundo turno – Salvador Allende tomou posse no dia 3 de novembro de 1970.
No mesmo dia, Henry Kissinger, coordenador do “Conselho de Segurança Nacional” de Nixon, confeccionou um memorando com três detalhados planos de sabotagem contra o Chile e seu governo. Kissinger dirigiu seu memorando ao vice-presidente e aos secretários de Estado e da Defesa. Mas não a Nixon. E não há nele uma palavra sobre às ações da CIA, que ele, pessoalmente, como veremos, controlava. Por quê?
MEMORANDO REPUGNANTE
O repugnante memorando de Kissinger pode ser encontrado, assim como milhares de outros documentos – 16.000 ao todo – sobre o golpe no Chile, no “National Security Archive”, site da Universidade George Washington. Quanto às omissões de Kissinger, elas são inteligíveis depois de percorrer outros documentos desclassificados da categoria de “secretos”.
Em 15 de setembro de 1970 – dois meses, portanto, antes da posse de Allende – o diretor da CIA, Richard Helms, resumiu, em algumas anotações manuscritas (fac-símile acima), uma reunião que tivera com Nixon. A íntegra (com a pontuação – ou falta dela – de Helms) é a seguinte: “1 em 10 chances talvez, mas salvar o Chile! valor do gasto não preocupar-se não envolvimento da embaixada $10.000.000 disponíveis, mais se necessário trabalhar ‘full-time´ – os melhores homens que nós temos plano de jogo fazer a economia gritar 48 horas para o plano de ação”.
“VISÃO DA AGÊNCIA”
Segundo um memorando (“assunto: gênese da operação FUBELT”) de uma reunião da cúpula da CIA no dia seguinte, “…O Diretor disse que o presidente Nixon tinha decidido que um regime de Allende no Chile não era aceitável para os EUA. O presidente pede à Agência que impeça Allende de chegar ao poder ou [caso chegue] para derrubá-lo. O presidente autorizou US$ 10 milhões para este propósito, se necessário”. E revela que Helms teria um encontro na sexta-feira, 18 de setembro, com Kissinger “para passar a ele a visão da Agência de como esta missão deve ser cumprida”.
Kissinger não enviou o memorando a Nixon, porque este sabia de tudo o que estava nele – e de muito mais: da ação da CIA, a quem tinha ordenado que começasse o terrorismo. Quanto a Kissinger, era ele quem mandava diretamente nas atividades da CIA no Chile, tal como mostra um “memorando de conversação” de 15 de outubro de 1970, de uma reunião entre Kissinger, o general Haig (Chefe da Junta de Estado Maior) e Thomas Karamessiness, chefe de divisão da CIA escolhido para “coordenar o projeto”. Eles discutem sobre o fracasso de uma operação encoberta denominada “Track II”, para impedir Allende de assumir. Comentam a falta de apoio, dentro do exército chileno, a um de seus fantoches, general Roberto Viaux.
Todo o início do memorando está tarjado em preto – os documentos sobre o Chile foram, quase todos os já liberados, tarjados de preto nos pontos mais reveladores dos crimes.
AÇÕES CLANDESTINAS
E não é à toa: Viaux, outros traidores, a CIA e Kissinger achavam – em boa parte, com razão – que não encontravam apoio no exército para um golpe por causa da influência patriótica e democrática de seu comandante, general René Schneider. Assim, Kissinger e a CIA decidiram assassiná-lo.
Em 16 de outubro, o mesmo Thomas Karamessiness que reuniu-se com Kissinger transmite suas (de Kissinger) ordens ao chefe da CIA no Chile: “Está firme e continua a política de derrubar Allende por um golpe [Allende não tinha tomado posse]. Seria muito preferível ter isto feito antes de 24 de outubro [dia em que o Congresso decidiria entre Allende e o segundo colocado na eleição popular] mas os esforços com relação a isso continuarão vigorosamente além dessa data. É imperativo que essas ações sejam implementadas clandestinamente e com a segurança de que a mão americana seja bem escondida”. O telegrama conclui com a recomendação de “novas atividades que incluam propaganda, operações negras, colocar na berlinda [operações de] inteligência ou desinformação, contatos pessoais, ou qualquer outra coisa que sua imaginação possa fazer surgir e que permita a você tocar para a frente nosso [palavra tarjada] objetivo de maneira segura”.
Dois dias depois – 18 de outubro – três telegramas entre o posto da CIA no Chile e a sede referem-se a um contato com um grupo e ao fornecimento de “oito a dez granadas de gás e três pistolas 45 ‘estéreis’ (sem número de série), com 500 balas cada uma” para sequestrar o comandante do exército, general René Schneider. A resposta, do mesmo dia, comunica o horário de chegada das amas em Santiago no dia seguinte.
Três dias depois – e dois dias antes da votação do Congresso que confirmaria a eleição de Allende –, a 22 de outubro, o general René Schneider foi assassinado pelo grupo de Viaux. Mas a avaliação da CIA estava errada: o general que o sucedeu, Carlos Pratts, mostrou-se um firme continuador de Schneider. Foi preciso três anos para derrubá-lo e substituí-lo por Pinochet. Após o assassinato de Allende e o golpe, Pratts foi morto na Argentina. O crime, como testemunhou o ex-agente Michael Townley, foi tramado pela CIA.
SABOTAGEM ECONÔMICA
Quinze dias após a posse de Allende e de Kissinger ter enviado o seu memorando sobre a sabotagem ao Chile, a CIA confeccionou um relatório, dando conta das operações encobertas até então, e constituindo uma força-tarefa para atuar dentro do Chile, estabelecendo articulação com o adido militar americano no país. A sabotagem econômica e o terrorismo foram desencadeados em larga escala, antes e, sobretudo, depois do golpe, com o assassinato de 10 mil pessoas.
Após o golpe, o FBI foi organizar a DINA, a sinistra polícia política de Pinochet. Foram o FBI e a CIA que organizaram a chamada “Operação Condor”, isto é, o sequestro, tortura e morte de patriotas e democratas latino-americanos asilados em outros países. Tudo isso pode ser encontrado, ou ser deduzido, nos documentos”.
Por exemplo, um documento encontrado nos arquivos da DIA (Defense Intelligence Agency) – a agência de terrorismo conjunta das forças armadas dos EUA – é uma biografia detalhada (e com vários trechos tarjados de preto) de Pinochet. A data do papel é agosto de 1973 – um mês antes do golpe.
CARLOS LOPES