Atendendo a pedidos apresentados pelo PSB e a Rede, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que a Procuradoria-Geral da República (PGR) apure se a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) ajudou a defesa do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) na investigação em que o filho do presidente é suspeito de desvio de salários de assessores quando era deputado estadual.
Cármen Lúcia também determinou que a PGR informe em até 30 dias as ações adotadas para elucidação dos fatos. A ministra afirmou que “não se pode desconhecer a seriedade do quadro descrito”.
Segundo a ministra, “os fatos descritos [por reportagem da revista Época] (…), pelo menos em tese, podem configurar atos penal e administrativamente relevantes (prevaricação, advocacia administrativa, violação de sigilo funcional, crime de responsabilidade e improbidade administrativa)”.
“Há que se esclarecer, pelos órgãos competentes, se ‘não institucionalmente’ também não foi produzido algum documento daquela natureza e quais os interesses e interessados”, afirmou.
O despacho acontece depois que a revista Época publicou, na semana passada, que a defesa de Flávio teria recebido relatórios da Abin para ajudá-lo na tentativa de anular a investigação que tem ele como alvo central.
Os relatórios apontam a existência de um suposto esquema criminoso na Receita para fornecer dados de Flávio que embasassem o inquérito da rachadinha. A autenticidade e a procedência dos documentos foram confirmadas à Época pela defesa do senador. De acordo com a revista, os relatórios da Abin foram enviados em setembro, por WhatsApp, a Flávio, que os repassou aos seus advogados.
O procurador-Geral da República, Augusto Aras, chegou a dizer, na última terça-feira (15), que pediu informações à Abin sobre os supostos relatórios feitos para a defesa de Flávio. Aras afirmou que as suspeitas são graves, mas que ainda não há elementos que justifiquem uma investigação formal. A situação, agora, com a determinação de Carmén Lúcia, é outra e a apuração terá que ser desencadeada.
Os supostos “elementos” de Aras são muito mais graves para a ministra.
O episódio já recebeu a alcunha de “Abingate”, numa referência ao processo conhecido como Watergate que derrubou um presidente norte-americano há mais de 40 anos atrás.
A decisão da ministra ajuda a lançar luz sobre um outro episódio político: a renhida disputa pela presidência da Câmara dos Deputados.
Talvez em nenhum período recente um presidente da República se envolveu tanto na contenda pela definição de quem comandará a Câmara a partir do dia 2 de fevereiro de 2021.
A razão é muito simples.
O presidente da Câmara dos Deputados, além de ter o poder de determinar a pauta da casa legislativa, é peça fundamental em eventual abertura de processo para apurar crime de responsabilidade praticado pelo presidente da República.
Especialistas na matéria entendem que, configurado o conluio da Abin com o filho do presidente, não haverá dúvida sobre a caracterização do crime de responsabilidade e na abertura de processo de impeachment, cuja tramitação se inicia exatamente na Câmara Federal a partir da decisão de seu presidente.
Nesse cenário, entende-se porque Bolsonaro joga todas as suas cartas nessa disputa, escalando o deputado Arthur Lira (PP) como seu candidato, embora tenham surgido rumores de outras articulações caso a primeira não prospere.
As negociatas para atingir tal objetivo, denunciadas cinicamente por Bolsonaro desde a época em que era ainda candidato à Presidência como a “velha política”, passaram a comandar as ações do presidente, seja na distribuição de cargos ou na liberação de emendas parlamentares.
O vale-tudo começou e se explica pela gravidade das denúncias, cuja apuração, agora, foi determinada pela ministra da Suprema Corte, como também se justifica, ao menos para Bolsonaro, diante de uma questão de vida ou morte para o atual mandato presidencial.
A frente ampla de partidos que acaba de se formar para não permitir a anexação da Câmara dos Deputados ao Palácio do Planalto foi a primeira resposta a essa tentativa funesta de macular a independência do Poder Legislativo, movida pelo desespero, e cuja motivação indica que, dificilmente, dará certo.
(MC)