EDUARDO COSTA (*)
O noticiário de hoje, terça-feira (2) (dia de Iemanjá/Oxumaré), traz ótimas notícias para os brasileiros: anuncia resultados de fase III da vacina russa, a Sputnik V, nome do produto do Instituto Gamaleya. Destaque para a eficácia geral de 91,6% e de 91,8% para os maiores de 60 anos. No entanto, a divulgação de uma instituição estatal russa não segue o que a mídia ocidental no paraíso das multinacionais dos medicamentos exige que façam – um carnaval midiático! Não houve uma coletiva de imprensa ou releases internacionais difundidos pela Reuters ou Associated Press, sempre encomendados por suas íntimas relações com as empresas (cerca de 30% do faturamento da big pharma é utilizado em propaganda).
Simplesmente os resultados apareceram no Lancet online de hoje (1) , já comentados por um dos pareceristas (2) . E os resultados de eficácia são muito bons, o estudo bem planejado e descrito também; não deu trabalho para os revisores.
No entanto, nesse mês passado soubemos não apenas que a Argentina estava usando essa vacina, como veladas ou abertas críticas a seu Governo por isso. E, ainda, que o representante dela no Brasil, a União Química (cremos associada ao Tecpar) tinha feito um pedido de autorização à ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para realizar os testes de fase III no Brasil – o que foi negado por falta de papéis.
Recentemente, comentei a sessão da diretoria da ANVISA do dia 17 de janeiro (3). Naquele show dominava a incongruente razão (?) do bolsonarismo tentando atrasar o uso da vacina “chinesa” com argumentos “técnicos”. Mas aqui, hoje, gostaria de adicionar que minha visão crítica, àquele evento, tem também um tanto a ver com o modo como se comportava em certas ocasiões antes desse governo. De fato, já havia um embate entre questões de política sanitária e posições tecnocráticas. A ANVISA não pode ser um órgão burocrático em situações emergenciais. Ela deve procurar ajudar a orientar o proponente, ao invés de se concentrar em verificar prazos, pedir papéis ou fazer visitas onde diz sim ou não a instalações. Ainda que tenha bons técnicos, para os propósitos da inovação tecnológica, ela só se tornou satisfatória graças a um dos maiores técnicos do Brasil em regulação farmacêutica, o competente Norberto Rech (4) , afastado há alguns anos.
Nessa linha, seria absurda a exigência de uma fase III típica da Sputnik no país. É improcedente que precise ter estudo no Brasil para que possa ser importada ou produzida, como tem circulado. Qualquer dispositivo legal que porventura exista deve ser revogado ad nutum. Independente da situação emergencial de hoje. Visitas a instalações, controle de qualidade ao chegar? – sim, de acordo. Mas é inaceitável que um imunizante eficaz deixe de ser utilizado, ou se crie embaraço a sua aplicação, por seus estudos clínicos não terem sido realizados no Brasil. E, além disso, seria anti-ético arrolar voluntários que tomassem placebo em meio a uma epidemia.
A reação pública da ANVISA hoje a esse anúncio só piora sua imagem de querer criar dificuldades. Diz ela que esse estudo não se aplicaria à vacina solicitada à ela para a mídia nacional e mundial, que usará isso contra a vacina russa. Mas a verdade não é assim. Essa vacina pode ser produzida tanto na forma líquida como liofilizada, com imunogenicidade muito semelhante, a liofilização é uma grande possibilidade adicional. O teste clínico de fase III publicado hoje foi com a vacina líquida. Certamente veremos sem alarde os resultados comparativos entre ambas breve, mas não precisamos esperar. Então é só autorizar para essa, ah, mas os papéis? Sim a União Química deve estar juntando tudo.
Supondo que os dados da Sputnik V ainda não tivessem sido publicados, ainda assim haveria a considerar para a sua liberação emergencial, o estudo comparativo apenas com outra das vacinas, como a Coronavac, de tecnologia mais sedimentada, para mostrar que se encontra dentro do mesmo patamar de eficácia e de reatogenicidade. Enfim um delineamento que pode ser usado para a eventual discussão e aplicação futura para similares biológicos, o que sinalizei em “live” recente como debatedor de G. Vecina, organizador da ANVISA, e publiquei em artigo de 14 de agosto pp sobre a Vacina Russa(5), e que urge que seja feito para não ficarmos a mercê dos preços praticados pela bigpharma. Dele extraio um trecho: …
“Creio que esse episódio e o questionamento sobre a realização da fase 3 com grupo placebo pede uma reflexão. Trata-se de avaliar melhor dois aspectos éticos dos estudos na situação pandêmica. De um lado riscos de uso largo de produto que já se sabe imunogênico em quem não está doente, embora esteja à risco mediano de adoecer. De outro lado a questão de não usar (ou protelar) um produto disponível em grupos de alto risco de adoecer. (…)
De outro lado, a melhor estratégia para um país que tem ainda uma incidência alta da doença seria estudos comparativos entre as vacinas disponíveis concomitantes. Mas aí, a cooperação proclamada para fazê-la um bem global seria bem mais profunda e racional.”
Às vésperas do Carnaval suspenso, a vacina russa pede passagem!
(*) Eduardo de Azeredo Costa é médico-sanitarista e PhD em Epidemiologia
1 – https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)00234-8/fulltext
2 – https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)00191-4/fulltext
3 – www.brasil247.com/blog/habemus-vacchina…
4 – Norberto Rech é professor de Ciências Farmacêuticas da Universidade Federal de Santa Catarina e foi assessor da direção da ANVISA
5 – https://horadopovo.com.br/a-vacina-russa/