Além de contrariar a política do governo, os críticos dos decretos argumentam que mudanças nesse sentido só podem ser feitas por meio de projeto de lei. São vários projetos de decreto legislativo que buscam sustar a obsessão armamentista do presidente da República
O Senado se movimenta para derrubar os quatro decretos do presidente Jair Bolsonaro que flexibilizaram o acesso a armas e munições no país.
Os senadores decidiram pautar, para quinta-feira (8), projetos que revertem esses atos presidenciais. Se não forem anuladas, as novas normas editadas por Bolsonaro entram em vigor na próxima semana.
Todos foram assinados por Bolsonaro em fevereiro e entram em vigor no próximo dia 12. Um desses, aumenta de quatro para seis o número máximo de armas que um cidadão pode possuir. A possibilidade é aceita desde que a pessoa seja portadora do Certificado de Registro de Arma de Fogo. Após passar pelo Senado, a derrubada dos decretos ainda vai depender da Câmara dos Deputados.
A quantidade sobe para oito no caso de profissionais da segurança pública, como policiais. Além disso, o governo passou a permitir explicitamente o porte simultâneo, ou seja, a autorização para uso fora de casa, de duas armas por pessoa. Antes, a quantidade não estava especificada. Tal flexibilização é boa para a milícia, que terá acesso facilitado a mais armas.
BOLSONARO EXORBITOU
Além de contrariar a política do governo, os críticos dos decretos argumentam que mudanças nesse sentido só podem ser feitas por meio projeto de lei, com aprovação do Congresso Nacional, em razão do Estatuto do Desarmamento.
“Tais inovações podem gerar condições ainda mais propícias para a atuação das milícias no Brasil”, afirmou o líder do PT no Senado, Paulo Rocha (PA), na justificativa de um dos projetos pautados. “Não podemos esperar mais. Os decretos estão na última semana passível de deliberação”, afirmou o líder da minoria na Casa, Jean Paul Prates (PT-RN).
Em 2019, no primeiro ano do governo, o Senado derrubou decreto de Bolsonaro que flexibilizava as regras para o porte de armas no Brasil. Antes que a proposta fosse analisada pela Câmara, o Executivo recuou e anulou a própria mudança, enviando na sequência projetos de lei sobre o tema. Essas propostas, porém, não andaram no Congresso. Com a troca dos presidentes da Câmara e do Senado, em fevereiro, Bolsonaro manifestou expectativa em avançar com a flexibilização de armas.
REAÇÃO DOS SENADORES
Publicados na noite de 12 de fevereiro, os quatro decretos editados por Bolsonaro para desburocratizar e ampliar o acesso a armas de fogo provocaram expressiva reação contrária de senadores. Foram apresentados 14 PDL (projetos de decreto legislativo) para sustar os decretos do Executivo.
Com o objetivo de regulamentar o Estatuto do Desarmamento, as novas normas — cujo prazo de 60 dias para entrar em vigor completa-se no dia 12 — permitem que profissionais autorizados, além de colecionadores, atiradores e caçadores (CAC), possam comprar mais armas e munições; modificam os critérios para análise do pedido de concessão de porte; e reduz a lista de artefatos classificados como PCE (Produtos Controlados pelo Exército), entre outras medidas.
Na ocasião da publicação dos decretos, o Palácio do Planalto esclareceu em que “o pacote de alterações dos decretos de armas compreende um conjunto de medidas que, em última análise, visam materializar o direito que as pessoas autorizadas pela lei têm à aquisição e ao porte de armas de fogo e ao exercício da atividade de colecionador, atirador e caçador, nos espaços e limites permitidos pela lei”.
SUSTAÇÃO DOS DECRETOS
Contra os quatro decretos, o PDL 69/21, do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), em sua justificação, atribui a Bolsonaro o uso de meio ilegal e inconstitucional para realizar sua “obsessão em tentar eliminar qualquer regra que restrinja o acesso às armas no Brasil”.
Expressando apoio a manifestações de indignação de ONG (organizações não governamentais) desarmamentistas, o parlamentar questionou a legalidade de vários pontos dos decretos, incluindo o que confere validade nacional ao documento de porte de armas — o Estatuto do Desarmamento, conforme frisou, estabelece que a autorização poderá ser concedida com eficácia territorial limitada. Da mesma forma, Randolfe entende que os atiradores receberam, na prática, a concessão de “porte velado”, numa “inovação que cria direito e extrapola o suposto poder regulamentar do decreto”.
“O governo federal decidiu que sua prioridade é continuar com o desmonte da já combalida política de controle de armas e munições do Brasil. Isso não só tem efeitos letais para o país que mais mata com armas de fogo no mundo, como reforça possíveis ameaças à democracia e à segurança da coletividade”, definiu, ao cobrar do Congresso uma reação contra a edição de decretos que esvaziam a legislação vigente.
ESTATUTO REDUZIU NÚMERO DE MORTES VIOLENTAS
Por meio do PDL 73/21, o senador Fabiano Contarato (Rede-ES) também questionou a legalidade das normas presidenciais, afirmou que é “consensual” o entendimento de que o Estatuto do Desarmamento reduziu o número de mortes violentas no Brasil, vinculou o aumento de armas legais em circulação ao abastecimento do crime organizado e associou a coincidência da publicação dos decretos com a divulgação de estatísticas que apontam aumento de 5% no número de homicídios no Brasil em 2020.
“O momento da publicação desses decretos não poderia ser pior. Às vésperas do carnaval, buscou-se evitar o debate público sobre os impactos das mudanças propostas. Em meio a uma pandemia que já vitimou mais de 240 mil brasileiros”, lamentou.
Contarato explicou pela rede social seu projeto de decreto legislativo contra os decretos presidenciais, argumentando que “mais armas geram mais insegurança e violência. O que o País precisa é de vacina! É de cuidado com a saúde da população e de políticas de combate ao coronavírus.” Ele complementou: “Desde 2019, cresceu o número de armas circulando no Brasil. Há, hoje, mais de 1,15 milhão de armas nas mãos de cidadãos, um crescimento de 65% em relação a dezembro de 2018, quando havia pouco menos de 700 mil armas legais em circulação. Política armamentista não!”
RESPEITO AO ESTATUTO DO DESARMAMENTO
Autor do PDL 55/21 e outros três projetos de sustação dos decretos, o senador Paulo Rocha lembrou que, independentemente das “convicções pessoais” de Bolsonaro a favor das armas de fogo, “não é possível a edição de norma visando aumentar o armamento da população enquanto vigora em nosso ordenamento lei instituindo o Estatuto do Desarmamento.”
Paulo Rocha acrescentou que, já em 2019, Bolsonaro teria extrapolado seu poder regulamentar ao editar outro decreto de flexibilização do porte de armas. Na época, o decreto foi rejeitado pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado e revogado pelo próprio governo por meio de nova norma.
Em termos semelhantes, por meio do PDL 58/21, o senador paraense denunciou o esvaziamento do poder do Exército na fiscalização de produtos controlados, entre os quais citou prensas para recarga de munições e miras telescópicas: “As alterações promovidas nos aproximam de episódios trágicos da história de outros países, tais como o atentado à escola em Columbine ou o assassinato do então presidente Kennedy por um sniper (atirador de elite), ambos nos Estados Unidos”, avaliou. Paulo Rocha ainda apresentou os PDL 57/21 e 74/21 sobre o tema.
DECRETOS CONTRARIAM VOCAÇÃO NACIONAL
A senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) — que também propôs os PDL 63/21, 62/21 e 64/21 — definiu, em seu PDL 59/21, a natureza do decreto como contrária à vocação nacional, traidora da democracia e “a favor da morte como condutora da relação entre as pessoas”.
Ela rejeitou o argumento de que a iniciativa possa aumentar a segurança dos cidadãos e associou a ampliação do porte legal de armas aos interesses econômicos do crime organizado “que certamente encontrará uma nova fronteira rentável para suas atividades ilícitas”.
Além dos PDL, Eliziane Gama anunciou em rede social a apresentação do PRS (Projeto de Resolução) 12/21, que cria a Frente Parlamentar pelo Desarmamento: “Vamos propor um amplo debate com a sociedade civil, órgãos de segurança e parlamentares para mostrar que liberar armas não é solução para garantir segurança ao cidadão.”
Eliziane também apresentou o PL 479/21, com o objetivo de proibir doações a campanhas eleitorais por pessoas físicas vinculadas à indústria e comércio de armas e munições e associações de tiro.
“FLAGRANTE CONFLITO DE INTERESSES”
O senador Rogério Carvalho (PT-SE), em seu PDL 65/21, afirma que o decreto relativiza proteção estabelecida pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), além de configurar “flagrante conflito de interesses” ao permitir a comprovação de capacidade para manuseio de arma de fogo por declaração de associações ou federações de tiro.
No PDL 64/21, também de sua autoria, o parlamentar manifesta preocupação com os termos do decreto que, segundo ele, ignoram “todos os problemas que enfrentamos no Brasil com a letalidade policial” e “podem gerar condições ainda mais propícias para a atuação das milícias”. Rogério Carvalho ainda tratou da sustação do decreto no PDL 66/21.
“MENOS ARMAS, MAIS VACINA”
O senador Humberto Costa (PT-PE), que clamou por “menos armas, mais vacina” pelo Twitter, anunciou que recorreria ao Ministério Público Federal contra os decretos de flexibilização de armas.
O senador Renan Calheiros (MDB-AL) comunicou pelo Twitter seu apoio “para frear a banalização dar armas”, frisando que “a sociedade quer vacina, não armas”.
AÇÕES NO STF
Quatro partidos ingressaram no STF (Supremo Tribunal Federal) contra os decretos armamentistas de Bolsonaro.
O PSB ajuizou, na Corte Suprema, a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 6.675. Rede (ADI 6.676), PT (ADI 6.677) e PSol (ADI 6.680) argumentaram que as normas alteraram significativamente o Estatuto do Desarmamento, o que só poderia ser feito por meio de lei ordinária, e incentivam a criação de milícias armadas.
Entre vários pontos, os decretos 10.627/21, 10.628/21, 10.629/21 e 10.630/21 retiram do Exército a fiscalização da aquisição e do registro de alguns armamentos, máquinas para recarga de munições e acessórios, aumentam o limite máximo para a aquisição de armas de uso permitido pela população civil e autorizam as pessoas que têm porte a conduzir simultaneamente até duas armas.
M. V.