“Grupos privados monopolizam os ganhos, em detrimento do país. O modelo energético poderia ser uma plataforma através da qual dinamizaríamos a economia e resolveríamos as nossas mazelas sociais. A privatização da Eletrobras vai piorar ainda mais a situação”, advertiu o professor da USP
Reproduzimos a seguir a entrevista concedida pelo engenheiro e pesquisador Ildo Sauer, professor titular do Instituto de Energia da USP e ex-diretor da área de negócios de Gás e Energia da Petrobrás, uma das maiores autoridades do país na questão energética, ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, do Rio Grande do Sul. O professor Ildo fala aos universitários gaúchos sobre a crise brasileira do setor elétrico, as perspectivas de novas fontes de energia e a intenção do governo Bolsonaro de privatizar e Eletrobras.
Segundo o professor Ildo Sauer, o setor elétrico brasileiro vive uma crise desde os anos 1990, quando foram feitas reformas no governo Fernando Henrique Cardoso, depois agravadas nos governos petistas. “A crise que vivemos permanentemente no setor elétrico não é uma crise de falta de recursos humanos ou de recursos naturais – temos potencial eólico, solar fotovoltaico e hidráulico remanescente para suprir mais do que três vezes a demanda de energia prevista”.
O problema, adverte, consiste na transformação do setor energético numa “plataforma de transferência de excedente econômico”. Ele explica: “Nós chegamos a esse ponto de crise por causa da conjunção de interesses: contratamos as usinas erradas, operadas de maneira desesperada entre 2010 e 2015, impondo um custo elevado”.
Sauer também comenta a proposta de privatização da Eletrobras e os “jabutis” incluídos na Medida Provisória – MP 1.031/2021, aprovada recentemente na Câmara dos Deputados, a expansão da energia fotovoltaica no Brasil e os desafios acerca da busca de “um novo modelo” para equilibrar o boom da fotovoltaica no país.
“Não se trata de taxar o sol; os sistemas têm custos. Para o sistema fotovoltaico ter confiabilidade, ele precisa estar interconectado. Para estar interconectado, é preciso uma rede de distribuição, e ela tem custos. Mas é possível – e essa é a notícia mais importante – equilibrar tarifas e preços. É possível criar incentivos para que a fotovoltaica seja expandida nas regiões onde traga mais benefícios”, assegura.
Confira a entrevista na íntegra
IHU On-Line – Em 2021, o Brasil voltou a sofrer uma nova crise energética. Como o senhor analisa o quadro atual?
Ildo Sauer – Primeiramente, não chega a ser surpresa, porque estamos vivendo uma instabilidade do setor energético por mais de duas décadas e meia. A partir das reformas liberais dos anos 1990, tentadas no governo Collor e concretizadas nos governos FHC, criou-se a lei das concessões do setor elétrico para fazer a transição do modelo estruturado em torno da liderança da Eletrobras com a participação das empresas distribuidoras regionais de grande porte: Furnas, Chesf, EletroSul, EletroNorte, Eletronuclear, e de menor porte. Também houve a participação de Itaipu e das grandes estatais estaduais, principalmente a Companhia Energética de São Paulo – Cesp, a Companhia Energética de Minas Gerais – Cemig, a Companhia Paranaense de Energia – Copel e a Companhia Estadual de Energia Elétrica – CEEE, no Rio Grande do Sul. Esse era o quadro em 1995 e essas empresas tinham uma certa hegemonia regional. A EletroNorte era a mais recente das empresas e tinha como obrigação desenvolver os recursos energéticos da região Norte; a Chesf, no Nordeste; Furnas, no Centro-Oeste e Sudeste; e a EletroSul, nos três estados do Sul.
A criação da Eletrobras ocorreu no governo João Goulart, mas foi proposta por Getúlio Vargas. Entretanto, houve oposição das grandes forças econômicas que já estavam aqui há mais de meio século, como a Light e a Amforp, que se opuseram à criação da Eletrobras porque queriam atuar de forma privada. O governo militar manteve a ideia da Eletrobras porque o golpe veio logo depois da criação da empresa, em 1962. Eu conversei com o ministro de Minas e Energia do então governo [Humberto de Alencar] Castelo Branco, anos atrás, quando ele estava atuando no Rio de Janeiro como consultor. Ele disse que a intenção à época era fazer uma espécie de Petrobras da energia elétrica, mas os ministros [Otávio Gouveia de] Bulhões e Roberto Campos disseram que não havia dinheiro e propuseram a montagem de um esquema flexível para que os estados que dispunham de capitais, como São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná, pudessem aportar.
Estamos vivendo uma instabilidade do setor energético por mais de duas décadas e meia
Assim, criou-se esse consórcio nacional que conduziu o sistema energético brasileiro em paralelo com a Petrobras. Ele foi criado para dar conta das duas grandes vertentes energéticas que emergiram da segunda fase da Revolução Industrial: o processo de urbanização e o de industrialização no mundo inteiro, especialmente no Brasil. Já a partir do segundo governo Getúlio Vargas, mas também no primeiro, não se podia prescindir do aporte energético, ao lado do aço, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, das siderúrgicas, da Vale do Rio do Doce e de todos esses empreendimentos que, de uma forma ou de outra, foram precursores do que a China seguiu muitos anos depois, ironicamente: a coordenação pública. Quer dizer, ironicamente não, porque esse modelo estava dando certo aqui, mesmo no governo militar, e deu certo lá.
A desestabilização desse sistema, que funcionou – e que teve lá seus problemas, evidentemente –, por um sistema orientado exclusivamente pela liberalização e competição de mercado, criação e verticalização de mercado, com ênfase para o mercado na distribuição e na geração [de energia], com monopólios regulados, em geral com capital privado e com a muleta estatal do lado para sustentá-los na transmissão e distribuição [da energia], iniciou nos anos 1990.
MODELO ENERGÉTICO BASEADO NA PRIVATIZAÇÃO DOS MERCADOS
O novo modelo entrou em vigor a partir de 1995 – essa é uma longa história que não vou tratar aqui, mas que tem a ver com a liberalização mundial iniciada com [Augusto] Pinochet, no Chile, adaptada por [Margaret] Thatcher, na Inglaterra, e assumida por [Ronald] Reagan, nos EUA, e exposta pelo Consenso de Washington a todos os países em desenvolvimento, com privatizações e mercados.
No Brasil, o setor elétrico brasileiro foi reformado no governo FHC, que prometia tarifas mais baixas e qualidade de energia. Mas esse modelo culminou no racionamento em 2001, na explosão tarifária e na incapacidade de expandir a oferta, abortando a onda de crescimento iniciada no final dos anos 1990. O racionamento de energia levou a uma recessão econômica elétrica. Esse crescimento foi retomado no governo [Lula] que foi eleito em grande parte por causa do fracasso muito visível do sistema de ultraliberalização do governo FHC. A população respondeu elegendo outra alternativa, que acabou não sendo muito outra – essa é a tragédia e por isso estamos em crise permanente no setor. Escrevi um artigo sobre isso que estou relatando, sobre a gênese e a permanência da crise do setor elétrico no Brasil.
O setor elétrico brasileiro foi reformado no governo FHC, que prometia tarifas mais baixas e qualidade de energia. Mas esse modelo culminou no racionamento em 2001, na explosão tarifária e na incapacidade de expandir a oferta
IHU On-Line – Hoje vivemos uma outra onda dessa mesma crise?
Ildo Sauer – Na verdade a situação é um pouco mais sofisticada no seguinte sentido: houve uma desverticalização naquele tempo. No mundo inteiro havia monopólios regionais [de energia] e as empresas eram obrigadas a gerar ou comprar [energia] das vizinhanças, transmitir e distribuir a energia elétrica, que era regulada pelo custo do serviço. A mudança não foi somente a privatização, mas a lógica econômica por trás do sistema: a criação de mercados competitivos que, segundo os especialistas, levaria a preços mais baixos e a grande oferta. Isso não aconteceu na Colômbia, não aconteceu na Califórnia – primeiro grande experimento mundial –, e o Brasil e a Argentina, assim como todos os outros países, tiveram racionamentos [de energia] e as tarifas explodiram. Isso porque, na hora em que se cria um mercado competitivo na geração [de energia], todo mundo vende pelo custo marginal. Isto é, o custo da usina mais cara vai refletir o preço que todo mundo vai ter que pagar pela energia gerada.
REORGANIZAÇÃO DO SETOR ELÉTRICO
Na transmissão e distribuição, o elevado custo do capital fez com que esses monopólios tivessem um retorno econômico com a segurança que não teriam em outros segmentos. No setor distribuidor mudou não só o fato da transferência da propriedade, mas a forma de coordenar, planejar e também – e o principal é isto – a forma de organizar o setor. Não é somente a privatização que está em jogo: são as oportunidades de grandes ganhos, inclusive no Brasil. Aqui, criou-se uma espécie de cassino do chamado mercado de comercialização, onde os grandes consumidores, nos anos 2004 e 2005, se apropriaram da energia estatal.
A promessa do governo eleito em 2002 era realmente mudar o sistema. Havia uma proposta elaborada por professores e pesquisadores, como nós, da Universidade de São Paulo – USP, e os pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, liderados por Luiz Pinguelli Rosa. Essa proposta abriria espaço para a competição nas ofertas, mas manteria uma coordenação pública para o sistema de consumo, exceto para aqueles poucos que eram consumidores livres, de grande porte, e que queriam contratar sua própria energia. A grande mudança que estava prevista é que esse grupo majoritário organizaria a compra de toda a energia: água e vento seriam patrimônio público, e o combustível seria comprado coletivamente, quando necessário, para dar suporte. Mas isso não foi implementado. Assim como nos anos 1950 e 1960, os interesses do capital privado prevaleceram. De maneira muito clara, isso se repetiu, embora os mecanismos não fossem exatamente os mesmos, mas se expressaram as mesmas forças para colocar o setor elétrico, assim como o energético de modo geral, num modelo sem o qual a população e a economia não conseguem se desenvolver, porque não é pensável um mundo sem energia elétrica e sem saneamento. Esses setores são intensivos em capital, são indústrias de redes complexas, e o consumo é um conjunto, mas os custos podem ser bem mais baixos quando organizados em redes únicas.
Esses setores viram uma oportunidade na dependência fundamental do setor residencial, que não é majoritário no consumo de energia elétrica, do setor industrial e econômico em geral, do comércio, dos serviços e da agricultura, inclusive da eletrificação rural, fundamental para o desenvolvimento e aumento da produtividade. A produtividade social do sistema econômico e da incorporação do trabalho depende da existência desse aporte – isso ficou muito claro a partir da segunda fase da Revolução Industrial. A primeira fase da Revolução Industrial foi a era do vapor, quando também ficou claro que a apropriação da energia aumentava a produtividade. O setor econômico que dele se apropriava tinha enormes benefícios. Essa dependência construída ao longo de um século da sociedade em relação ao setor energético foi transformada em plataforma de extração do excedente econômico. Esses grupos econômicos que fazem a predação junto com os órgãos de governo, o Estado, o Congresso Nacional, as instituições criadas em oposição à regulação leve, continuam os mesmos.
Temos potencial eólico, solar fotovoltaico e hidráulico remanescente para suprir mais do que três vezes a demanda de energia prevista
Para substituir aquilo que antes era um consórcio liderado pela Eletrobras sob os auspícios do Ministério de Minas e Energia, foi criada a Empresa de Pesquisa Energética – EPE, no governo Lula, para fazer estudos “neutros” em relação ao interesse das empresas estatais. Os envolvidos argumentavam que era preciso ter um “organismo de Estado livre dos governos de plantão”. O grande temor deles era que um governo “populista” chegasse ao poder e passasse a zelar de maneira definitiva pelo interesse público coletivo. Esse é o conflito que está na base de tudo. Por isso, a crise que vivemos permanentemente nos anos 1990 no setor elétrico não é uma crise de falta de recursos humanos, de recursos naturais – temos potencial eólico, solar fotovoltaico e hidráulico remanescente que dá para suprir mais do que três vezes a demanda de energia prevista.
O consumo médio no padrão europeu hoje é de cerca de 6 megawatts/hora por habitante/ano. No Brasil, gastamos a metade disso, entre 2,5 e 3 megawatts. Não faltam recursos energéticos, capacidade tecnológica e capacidade humana.
A crise não está no setor energético em si, mas na estrutura política do sistema
CRISE POLÍTICA
O que tem acontecido permanentemente é esse conflito. Por isso, digo que a crise não está no setor energético em si, mas na estrutura política do sistema, que foi reformada no governo FHC e não foi, como prometido, reajustada e reorganizada a partir do interesse público no governo da Frente Brasil Popular. A senhora [Dilma] Rousseff fez uma metamorfose em palavras e a mais eloquente foi esta: criou uma empresa de planejamento para legitimar os interesses dos grandes grupos econômicos, que querem vender usinas a carvão importado, a óleo combustível, vender energia de gás natural. Isso porque é muito mais rentável para esses segmentos organizar esses negócios visto que a sociedade brasileira e o sistema econômico estão dependentes do setor energético. Essas empresas conseguiram um benefício colateral nesse imenso descalabro criado nessas duas décadas e meia: a energia se tornou tão cara que novas alternativas se viabilizaram. Por exemplo, a energia eólica e a fotovoltaica acabaram emergindo – claro que com uma força muito maior no exterior, especialmente na China e parcialmente na Califórnia e na Europa –, de tal modo que a eólica se tornou uma fonte importante, e o Brasil hoje detém um potencial eólico três vezes maior do que o potencial hidráulico.
IHU On-Line – Dada essa anomalia que o senhor relata na gestão política do setor energético, há risco de um novo apagão ou racionamento?
Ildo Sauer – O quadro atual é o seguinte: de fato, a hidrologia, no Sudeste, neste período de 2021, é a mais drástica já registrada; é pior que a de 1954, que antes tinha sido a mais drástica, e pior que a de 2001.
A diferença entre a situação de 2001 e a de hoje é que agora temos dois fatores relevantes. O primeiro é que a economia está estagnada e em recessão por causa da pandemia, mas com o controle da pandemia na China – que enfrentou a situação de outra maneira e retomou seu crescimento econômico –, nos EUA – que praticamente resolveram a situação da pandemia e a economia está em recuperação – e na Europa – que, em grande parte, está com a pandemia sob algum controle e em condições de retomar a economia –, é possível que a economia brasileira volte a crescer, já que o Brasil se tornou um país agrário e exportador, principalmente de produtos primários, de minérios e produtos agrícolas.
A hidrologia, no Sudeste, neste período de 2021, é a mais drástica já registrada
RACIONAMENTO
A primeira condição para saber se vai haver racionamento ou não é saber qual será o consumo de energia elétrica e o segundo é saber qual será o aporte, mesmo que muito baixo, ou seja, quanto abaixo da média será a hidrologia daqui para frente. Além disso, é preciso saber quanto a energia eólica vai compensar a hidrologia, porque os estudos que temos realizado mostram claramente que toda vez que enfrentamos um período de hidrologia mais crítico, o regime de ventos, até pela natureza da dissipação da energia na atmosfera, tende a ter maiores aportes. Então, a disponibilidade eólica no Nordeste aumenta, muito embora ela hoje represente 10% da capacidade hidráulica brasileira – temos um pouco mais de 15 mil megawatts de usinas eólicas em operação e cerca de 120 mil megawatts de usinas hidráulicas; é uma desproporção.
RAZÃO DA CRISE
A outra grande diferença em relação a 2001 é o fato de que há uma base térmica, que talvez evite o racionamento neste ano – isso é possível –, mas que é ao mesmo tempo um grande tormento. De onde vem a base térmica? Do Programa Prioritário de Termelétricas iniciado no governo FHC. Esse programa, que era para ser inteiramente privado e incentivado pelo preço especulativo no mercado atacadista, acabou não se concretizando até 2001 e entramos em racionamento. A Petrobras herdou esse conjunto de investimentos problemáticos – e, por acaso, eu estava na instituição à época, como diretor de Gás e Energia.
Nós colocamos em funcionamento cerca de 5 mil megawatts de termelétricas que eram parcerias da Petrobras com vários grupos especulativos. No governo Lula, organizaram leilões de compra de energia com base no critério índice-custo-benefício, que nada mais é do que uma previsão de quanta energia seria necessária nos próximos anos e qual é o custo anual da capacidade disponibilizada para atender a demanda. A capacidade tem a ver com a potência e a energia tem a ver com o tempo que se usa essa potência: equivalente ao carro, em que a potência – que é dada em cavalos, para subir uma ladeira –, tem a capacidade de força, e a energia é quanto combustível tem no tanque, ou seja, por quanto tempo é possível operar.
Pois bem, qual é a falácia do modelo de leilões organizados pela senhora Rousseff? Estimou-se que as termelétricas operariam poucas horas durante o ano. Como o custo de capital das usinas térmicas varia de metade para 1/3 do custo das usinas eólicas, fotovoltaicas e hidráulicas, tiveram o desplante de contratar usinas cujo custo do combustível é R$ 1.200 por megawatt/hora. É claro que se a usina operar 100 horas por ano, o custo anual será pequeno. Mas não foi isso o que aconteceu.
O modelo energético poderia ser a plataforma pelo meio da qual dinamizaríamos a economia e resolveríamos as nossas mazelas sociais
Havia a opção de contratar usina eólica e fotovoltaica, e ocorreram leilões, até 2019, nos quais a energia inteira, capital mais o combustível, que é gratuito por enquanto, custava menos de R$ 100 – cerca de R$ 80 o megawatt/hora. Hoje, o custo está em torno de R$ 200 por causa do câmbio – grande parte da energia eólica e fotovoltaica está vinculada ao dólar, como grande parte das commodities. Então, ficou muito claro, de 2012 a 2015, na outra crise elétrica, que nós operamos usinas térmicas com um custo entre R$ 200 e 1.100 por megawatt/hora, e foram gastos, somente para este combustível, cerca de R$ 112 bilhões. Se tivessem usado esse valor para a contratação de usinas eólicas e fotovoltaicas, nesses leilões realizados entre 2005 e 2010, teríamos construído cerca de 20 mil megawatts de usinas eólicas e cerca de 50 mil megawatts de fotovoltaicas ou uma combinação entre ambas, e a crise não teria existido.
Mas queimamos esse dinheiro, aumentou-se a conta para a população brasileira, e quem ganhou com isso foram os empreendedores, por mera incompetência e queima de dinheiro público. Alguns ganharam pouco ou muito, relativamente, mas o sistema inteiro perdeu muito, porque essa foi uma opção errada, simplesmente. Havia opções melhores.
Agora, estão repetindo isso: na Medida Provisória que quer privatizar a Eletrobras está embutido um “jabuti” para obrigar a contratação de usinas a gás, pequenas centrais hidrelétricas e de biomassa. Também querem prorrogar o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica – Proinfa, que foi um “jabuti” inventado por empresários no governo FHC, com o apoio do Congresso Nacional, que votou unanimemente a favor do Proinfa. Esses interesses conseguiram se organizar no Congresso, como se organizam novamente hoje; são os mesmos que estão lá. Eles têm assessores jurídicos e base parlamentar para impor essas soluções. O Proinfa foi contratado não com base na opção mais competitiva, mas com base na licença ambiental mais antiga que já estava dada quando a lei foi criada. Mas os vencedores estavam declarados quando o Proinfa foi aprovado.
COMBINAÇÃO DE ENERGIA EÓLICA E FOTOVOLTAICA
Agora, esses mesmos interesses estão organizados para impor outra solução. Eles dizem que é muito mais barato comprar energia ilimitada a R$ 350 por megawatt/hora, como parece que consta na MP, do que operar usinas a R$ 1.200 por megawatt/hora. Esquecem simplesmente de dizer que as usinas fotovoltaica e eólica têm um custo muito menor. A grande conversa deles é dizer que as usinas eólica e fotovoltaica não têm potência, ou como alguém, de maneira muito ingênua ou por ignorância, disse que “vento não se estoca”. Sim, se estoca tanto vento quanto sol. Onde? No reservatório das hidrelétricas.
Estudos do nosso Centro de Análise, Planejamento e Desenvolvimento de Recursos Energéticos – CPLEN, num artigo que publicamos na semana passada em uma revista internacional, mostram qual é a contribuição de potência das usinas eólica e fotovoltaica para atender a carga. Isso porque o problema do sistema energético elétrico é duplo: atender a potência máxima e ter estoque de energia para chegar ao fim do ano com orçamento. Mostramos que as usinas fotovoltaica e eólica, além de pouparem água dos reservatórios, quando combinadas estocasticamente, também garantem potência, ao contrário do que dizem muitos especialistas que, na verdade, estão defendendo interesses.
Chegamos a esse ponto de crise por causa da conjunção de interesses: contratamos as usinas erradas, operadas de maneira desesperada entre 2010 e 2015, impondo um custo elevado
NOVO ERRO
Nós chegamos a esse ponto de crise por causa da conjunção de interesses: contratamos as usinas erradas, operadas de maneira desesperada entre 2010 e 2015, impondo um custo elevado. Agora, querem replicar o novo modelo e, por causa do erro anterior, querem cometer mais um erro. Mas não são erros – esta é uma forma de dizer de quem faz análises –, são interesses.
Essa situação é absurda por duas razões. Primeiro, porque onera de maneira desnecessária a economia brasileira, a torna menos competitiva, em nome de gerar benefícios para os grupos econômicos que implantam essas soluções e impõem um ônus enorme à economia. Eles ganham alguma coisa, mas o todo perde muito.
Por que fazer energia com o dobro do custo se podemos fazer com a metade? Só para atender aos interesses que operam no Congresso Nacional. Existem bancadas de parlamentares que estão entranhados nos ministérios da Economia e de Minas e Energia para fazer estudos e divulgá-los.
Grande parte dos meios de comunicação vende à população a versão de que nós não podemos mais depender do clima, ou diz que a população foi jogada à mercê do clima. Não foi. O clima tem comportamento mapeado e conseguimos fazer modelos de comportamento dele em escala global. Todas as previsões de mudanças climáticas são possíveis porque mapeamos o comportamento do clima, das forças naturais, da dissipação da energia e do equilíbrio termodinâmico da atmosfera do planeta a longo prazo. Temos modelos de escala global, local e regional que permitem fazer previsões mínimas e máximas do comportamento climático. Então, o erro foi ter contratado as usinas erradas, e não ter contratado, em volume suficiente, usinas eólicas, hidráulicas e fotovoltaicas para usar melhor os reservatórios.
Por que fazer energia com o dobro do custo se podemos fazer com a metade?
IHU On-Line – Como o senhor analisa a discussão sobre a possibilidade de privatização de parte da Eletrobras, através da MP 1.031/2021, aprovada recentemente na Câmara dos Deputados?
Ildo Sauer – A MP que quer privatizar a Eletrobras, além de incluir o “jabuti” de contratar usinas hidrelétricas, pequenas centrais hidrelétricas e usinas termelétricas a gás onde não tem gasoduto nem gás, como no Nordeste, quer favorecer o mesmo lobby que criou o Proinfa.
A DICOTOMIA IDEOLÓGICA DO SETOR ENERGÉTICO
O discurso público de que criamos uma dependência indevida sobre o comportamento do clima visa defender opções energéticas mais caras, através das quais determinados setores vão lucrar bastante, enquanto a população vai pagar uma conta muito mais cara e a economia não vai se desenvolver. O empresariado brasileiro produtivo nunca conseguiu perceber esta dicotomia ideológica: o interesse dos grupos, da supremacia da dita competição versus a coordenação e a cooperação [estatal] em nome da estrutura produtiva. A China conseguiu fazer isso e o governo americano está retomando essa perspectiva com a coordenação de [Joe] Biden. Na coordenação estatal [do setor energético], é possível ter uma participação maior ou menor do setor privado, mas ela consiste em buscar soluções de menor custo.
O discurso público de que criamos uma dependência indevida sobre o comportamento do clima visa defender opções energéticas mais caras, através das quais determinados setores vão lucrar bastante
REPETIÇÃO DO MODELO CHILENO
Com a nova tentativa de privatizar a Eletrobras, querem repetir o modelo chileno: no Chile, privatizaram as empresas elétricas pelo valor previsto no modelo regulatório vigente e, depois que elas já estavam privatizadas, disseram que o modelo estava inadequado porque não atendia às bases econômicas. Com a Eletrobras vai acontecer a mesma coisa; já estão preparando o “bote”. Tudo isso ocorre porque a sociedade se tornou dependente da energia elétrica. Enquanto a energia individual for mais cara do que a energia vinda do sistema, grupos econômicos continuarão extraindo a diferença do custo. Ou seja, esse valor está sendo apropriado não pela sociedade, mas pelos grupos que operam o sistema.
SOCIALIZAÇÃO DA RENDA HIDRÁULICA
Em São Paulo, passamos décadas lutando pela não privatização das usinas hidráulicas, que foram construídas nos anos 1960. Quando a concessão das grandes usinas da Cesp venceu, elas foram para o governo federal e a senhora Rousseff as privatizou. Quem comprou a maior parte da Companhia foram empresas chinesas estatais. Qual é a grande contradição nisso? Que a ação do governo foi distinta do discurso que o programa de governo da Frente Brasil Popular defendia nos anos 1990, de que o subsolo e os potenciais hidráulicos pertencem ao povo brasileiro. Segundo aquele discurso, o petróleo poderia ser explorado, pagando-se o custo de um retorno muito favorável a quem o produzisse. A diferença entre esse custo e o preço no mercado internacional iria para um fundo público destinado a investimentos em educação, saúde, transição energética, ciência e tecnologia, previdência etc. Efetivamente, essa renda hoje seria da ordem de 250 bilhões de dólares por ano.
No setor elétrico, as usinas produzem mais ou menos 200 milhões de megawatts/ano. A diferença aí também é entre o custo, que é de R$ 10 por megawatt/hora, e o preço médio, que é R$ 150 por megawatt/hora, vezes 200, o que dá cerca de R$ 20 a 30 bilhões por ano. Esse valor, assim como o dos minérios da Vale, poderia ser usado para resgatar a dívida social. Tudo isso estava no discurso e no programa de governo previsto, que visava a socialização da renda hidráulica. Estou falando isso para mostrar que é justamente esse excedente econômico [do setor energético] que está em disputa permanente. Os governos se tornam subalternos e permeáveis aos interesses econômicos e criam suas bancadas no Congresso para defendê-los. Isso sempre foi assim, desde a Light, nos anos 1920. Getúlio Vargas editou o Código de Águas em 1934, que estava tramitando no Congresso desde 1907, por Decreto-Lei, por causa da oposição dos grandes grupos econômicos. Portanto, a crise potencial de hoje nada mais é do que a continuidade do mesmo processo.
O problema não está na natureza; o problema está no modelo energético adotado e na política
IHU On-Line – Então, a crise no setor tende a continuar?
Ildo Sauer – Como disse, há uma chance de escaparmos do racionamento, mas não escaparemos do enorme custo econômico. Se conseguirmos civilizar a conduta do governo e superar a pandemia, o problema da energia continuará porque o sobrepreço e o sobrecusto já estão colocados, diminuindo a competitividade. De maneira que o problema energético continua sempre o mesmo desde a liberalização. O problema não está na natureza; o problema está no modelo energético adotado e na política.
O setor energético, que é sofisticado e complexo, é usado como plataforma de transferência de excedente econômico; é uma plataforma de sucção do excedente econômico. Assim como os “drogados” pagam qualquer preço para ter acesso às drogas, nós nos tornamos dependentes desse sistema e os operadores do sistema o usam contra nós e conseguem domesticar qualquer proposta.
Depois que foi domesticada a proposta da Frente Brasil Popular, começamos a ficar céticos sobre a chance de a sociedade se organizar para dar conta da dimensão dessa questão. O modelo energético poderia ser a plataforma pela qual dinamizaríamos a economia e resolveríamos as nossas mazelas sociais. O problema está na estrutura da organização do modelo energético que foi metamorfoseado no governo FHC e mantido no governo do PT.
O setor energético é uma plataforma de sucção do excedente econômico
Acinte maior vi esses dias, quando alguém do Ministério de Minas e Energia disse que estão entregando o controle da Eletrobras, mediante aporte de capital, aos interesses privados, argumentando que a empresa precisa ser colocada em mãos privadas para ter dinheiro para fazer investimento na expansão da energia. Parece que até agora o Ministério não sabe que, desde a reforma feita no governo FHC, a responsabilidade pela expansão da energia é dos leilões e qualquer capital entra.
Historicamente, há outra mazela que não pode ser esquecida: as grandes usinas hidráulicas de Belo Monte, Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, e outras tantas, foram feitas com o dinheiro do BNDES, assim como as grandes linhas de transmissão também foram feitas com dinheiro do banco e algum aporte estrangeiro. A Eletrobras ficou como minoritária em todos esses empreendimentos, dando garantias. Ou seja, de um lado, usaram a Eletrobras e “depenaram” o valor dela ao venderem a energia hidráulica na cotização de 2012. De outro lado, a mantiveram como sócia minoritária, subportadora de riscos dos investimentos nos parques eólicos, nas linhas de transmissão e nas grandes hidráulicas. Então, mudou o discurso de 2002 a 2014, mas a essência de subordinação do governo aos grandes grupos foi mantida.
Hoje, quando ouço um ex-presidente dizendo que gostaria de converter a Eletrobras numa Petrobras, lembro do que eu disse numa entrevista que concedi anos atrás: do jeito que o Lula estava interferindo, com a Rousseff, na Petrobras, seria mais fácil transformar a Petrobras numa Eletrobras – como ela estava naquele tempo –, do que o contrário.
Historicamente, há outra mazela que não pode ser esquecida: as grandes usinas hidráulicas de Belo Monte, Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, e outras tantas, foram feitas com o dinheiro do BNDES
IHU On-Line – Há um crescimento e um interesse maior, tanto residencial quanto empresarial, pela energia fotovoltaica. Nesse sentido, campanhas publicitárias anunciam que a adesão à energia fotovoltaica só não é maior porque o setor energético não quer. Outros comparam essa opção energética com o caso do gás natural nos veículos, que teve um boom anos atrás, e muitas pessoas fizeram a conversão nos seus veículos para usar esse combustível, mas depois não valeu mais a pena. Há riscos de as pequenas usinas fotovoltaicas serem taxadas ou de medidas frearem a sua expansão?
Ildo Sauer – Vou responder às duas questões porque quem organizou o boom do gás natural fui eu. Como diretor de Gás e Energia da Petrobras, criei o programa de massificação do uso do gás natural. Mas quando fui demitido da Petrobras, Lula e Dilma foram para a televisão e disseram que o gás era muito nobre para ser usado em veículos; tinha que usá-lo para termelétricas. Ou seja, eles reservaram o gás para as térmicas e já sabemos o preço desse erro.
O modelo que eu tinha criado era simples: no momento de uma crise, se por acaso faltasse gás e fosse necessário destiná-lo às termelétricas, seria possível dar um voucher para os donos de veículo a gás. Isso não foi feito porque o governo não quis. Então, sobre a questão do gás, a explicação é esta: foi uma sabotagem comandada pela senhora Rousseff. Basta ver os vídeos na televisão, entre 2006, 2007 e 2008, quando Lula foi levado a falar essa asneira publicamente, de que o gás era muito nobre para ser usado em veículos. O gás deveria continuar sendo usado porque ele polui menos, embora agora tenhamos a opção da mobilidade elétrica.
A médio prazo, acredito que o mundo vai voltar a ser elétrico. Com a expansão da rede elétrica, existem condições para abastecer os veículos
MUNDO ELÉTRICO
A médio prazo, acredito que o mundo vai voltar a ser elétrico. Digo voltar porque, nos anos 1910, 1920, majoritariamente, os carros eram elétricos. Nos EUA, os carros feitos por [Thomas] Edison eram elétricos, a carvão e a etanol; o Ford T, por exemplo, era bicombustível. O carro flex não foi inventado no Brasil, como o ex-presidente costuma dizer; ao contrário, tem mais de cem anos.
O petróleo se impôs pelas condições econômicas, por ter um custo muito mais baixo do que as demais alternativas, e a rede elétrica não era expandida o suficiente. Agora, com a expansão da rede elétrica, existem condições para abastecer os veículos. As baterias melhoraram muito em capacidade e reduziram de preço. Naquele tempo, uma bateria pesava 800 Kg e hoje pesa cerca de 10% disso. Então, é possível que a mobilidade elétrica ganhe mais força e o gás não seja necessário.
ENERGIA FOTOVOLTAICA
Sobre a energia fotovoltaica, há uma disputa de interesses e é preciso buscar um novo equilíbrio. No nosso centro de pesquisa, temos um projeto em andamento que busca justamente tentar equilibrar o boom da fotovoltaica no Brasil, o qual se deu através do net metering (medição líquida) – [sistema de compensação de energia elétrica] [1]. Um dos primeiros projetos de fotovoltaica foi construído no Instituto de Energia e Ambiente da USP, sob a liderança do professor [Roberto] Zilles. Esse projeto foi adotado na Aneel contra o interesse das distribuidoras.
O net metering consiste no seguinte: o consumidor instala o sistema no telhado da casa, do prédio, ou onde quiser; esse sistema tem um inversor e uma medição bidirecional que mede o quanto entra e o quanto sai de energia e estoca a energia no sistema, isto é, nos reservatórios hidráulicos. Esse sistema se diferencia muito no Brasil e em outros países. O Brasil tem capacidade de estocar cerca de 1/3 do consumo anual quando os reservatórios estão cheios, mas isso não tem sido usado adequadamente.
Essa nova fonte energética não é de graça. O net metering foi um impulso de incentivo para permitir que muita gente usasse o sistema fotovoltaico gratuitamente: se usa a rede de distribuição e de transmissão para guardar a energia no cofre das hidrelétricas e depois recebê-la de volta. Pelo fato de a energia fotovoltaica gerar energia no local em que é consumida, ela possibilita que não se tenha de investir na expansão do sistema de distribuição, no sistema de transmissão e no sistema de geração. Ou seja, poupa três cadeias. Mas isso depende das circunstâncias. De qualquer maneira, é preciso ter um modelo regulatório dinâmico que equilibre isso. Os que estão sendo propostos por aí são um assalto.
A usina fotovoltaica tem uma uniformidade muito grande no território nacional
POSSIBILIDADE DE OPERAÇÃO
Uma possibilidade é operar de maneira descentralizada, no modelo de que cada um constrói seu sistema de 4 a 6 quilowatts, ou colocar 20 ou 30 megawatts em regiões distantes, especialmente no Nordeste. A usina fotovoltaica tem uma uniformidade muito grande no território nacional, apesar de ter regiões com mais ou menos sol, ao contrário da eólica e da hidráulica, que têm pontos localizados onde essa energia se expressa.
O Projeto de Lei do deputado Silas Câmara [PL 5.829/2019, sobre a regularização da geração e distribuição de energia fotovoltaica] está sendo avaliado no Congresso. Ele incorpora o lobby que atende aos geradores consumidores parcialmente, às distribuidoras e aos investidores que vendem sistemas fotovoltaicos. Só não atende aos 50 milhões de consumidores elétricos que não participam dessa festa.
Eu contei essa história mais longa, porque ela não é tão simples: não se trata de taxar o sol; os sistemas têm custos. Para o sistema fotovoltaico ter confiabilidade, ele precisa estar interconectado. Para estar interconectado, é preciso uma rede de distribuição, e ela tem custos. Mas é possível – e essa é a notícia mais importante – equilibrar tarifas e preços. É possível criar incentivos para que a fotovoltaica seja expandida nas regiões onde traga mais benefícios. Nas outras regiões, talvez seja importante pagar uma pequena contribuição para usar o sistema de estoque, ou seja, para hospedar a energia no sistema. Isso é algo bastante local: se a rede de energia em São Leopoldo está saturada, ao invés de construir novas redes, é melhor investir em fotovoltaica. Em regiões em que a rede está com folga, talvez o consumidor que queira se beneficiar dessa energia deveria pagar uma pequena contribuição para usar o sistema. Mas mesmo com essa contribuição, a energia fotovoltaica vai ser competitiva e trazer benefícios para o consumidor geral, para a sociedade, e vai nos livrar de ficar à mercê do lobby dos grupos de interesse.
A questão é que isso não está sendo orientado pelo interesse público, por políticas públicas que levem em conta esse tipo de análise. Em geral, quem se impõe é o lobby daqueles que querem investir em sistemas fotovoltaicos ou daqueles que querem se tornar donos desse sistema ou daqueles que vão se beneficiar dele.
Não se trata de taxar o sol; os sistemas têm custos
O modelo atual é o seguinte: teoricamente, uma distribuidora de energia é remunerada pelo serviço que ela presta – é uma espécie de internet. De que maneira? Ela constrói a rede transformadora, tem que garantir qualidade – e isso não está sendo feito de maneira apropriada no Brasil –, e não recebe incentivo para cobrar as contas do furto de energia – aquela que não é faturada nem cobrada ou aquela que é desviada por “gatos” e é paga pelos consumidores que pagam por aqueles que não pagam. Essa é uma síntese regulatória. As empresas participam dos leilões nacionais e compram energia, muito embora a lei criada em 2004 permita que cada empresa contrate localmente 10% da energia, ou seja, elas poderiam contratar usinas a biogás, eólica, fotovoltaica etc. Mas elas não fazem isso.
O presidente de uma grande empresa disse que para elas é melhor aportar energia através dos leilões periódicos – aqueles por meio dos quais se cria um embuste na relação custo-benefício e se vende a energia mais cara. Isso porque a fórmula de contratação da energia está errada, justamente porque o cálculo econômico na hora de contratar tem parâmetros de previsão do futuro equivocados. É mais um discurso que vai contra o interesse do longo prazo. Se, de um lado, alguns grupos têm benefícios econômicos de 2 a 4 bilhões por ano por vender a sua solução, o fato de essa solução estar errada adiciona, além desse valor, cerca de 20 a 30 bilhões por ano sobre o custo em relação às outras opções, que incluem a fotovoltaica de geradores-consumidores embebidos na rede.
Além do mais, agora o governo quer voltar a fazer Angra III e mais usinas nucleares. Sem levar em conta o problema dos resíduos, a energia vai custar no mínimo o triplo em relação a outras opções, sem necessidade, deixando como herança para as gerações futuras o combustível irradiado. Esse é mais um lobby que está se manifestando.
A resposta que estou dando é mais longa porque não tem resposta simples para essa questão. A situação é tão complicada, que ninguém quer ouvir falar no assunto. Por isso é importante a análise que fiz no começo: o problema do setor energético não é a falta de opções, é a forma como grupos de interesse agem e como os governos se submetem a essas pressões para impor à sociedade indefesa. O setor energético em geral e o elétrico em particular se converteram numa plataforma de “legitimação” de transferências econômicas vultosas do povo brasileiro.
Inclusive, se elogia muito o Programa Luz para Todos – que foi uma solução nossa, feita no nosso instituto de pesquisa, a partir da tese de doutorado de uma pesquisadora, e que foi levada ao programa da Frente Brasil Popular –, mas 18 anos depois, o Luz para Todos ainda não levou luz para todos. E a forma como levou foi muito mais cara do que o necessário. De maneira que este é mais um setor que ao invés de adotar as propostas mais simples, se submeteu aos interesses das empreiteiras. Os contratistas que faziam as redes do Luz para Todos, ao invés de estarem preocupados em fazer redes, estavam preocupados em atender às demandas daqueles parlamentares, que são membros de governos, e que atuam no Congresso como despachantes dos interesses desses grupos, e não como defensores do interesse público. Infelizmente, não tenho visto capacidade de organização da população, porque ela é vítima das escolhas que faz. O problema, então, está na política e não na natureza.
Ildo Sauer é graduado em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre em Engenharia Nuclear e Planejamento Energético pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e doutor em Engenharia Nuclear pelo Massachusetts Institute of Technology. Recebeu, pela USP, o título de Livre Docência em 2004 e atualmente é diretor do Centro de Análise, Planejamento e Desenvolvimento de Recursos Energéticos – CPLEN, da USP.