Esta entrevista de Gonzalo Gómez, porta-voz do partido “Marea Socialista”, da Venezuela, realizada pelo jornalista português Luís Leiria, apareceu no último dia 30 no “Correio da Cidadania”. Em um momento no qual as informações – ou aquilo que se quer passar por “informações” – sobre a Venezuela parecem de uma confusão sem limite, acreditamos que é importante divulgá-la em nossas páginas. Por exemplo, fala-se muito da imigração de venezuelanos em Roraima, porém pouco sobre suas causas. Diz Gonzalo Gómez:
“A situação econômica é terrível porque o que vem aplicando o governo de Nicolás Maduro é um profundo e cru plano de ajuste. Medidas de ajuste econômico contra a classe trabalhadora. Dizem que estão contra o neoliberalismo e todas essas coisas. Mas se tens uma situação na qual levam o salário de um trabalhador a um nível de entre 3 a 4 euros mensais, qualquer um pode imaginar o significado. O salário foi esmagado”.
A íntegra desta entrevista pode ser lida em Venezuela: “Maduro está a desmontar o processo revolucionário”.
C.L.
ENTREVISTA COM GONZALO GÓMES
Quando se realizaram as eleições para a Constituinte de Maduro, a Marea Socialista denunciou-as como um golpe antidemocrático, que tinha a intenção de evitar a convocatória de eleições gerais nesse momento. Que papel teve a Constituinte desde então?
GONZALO GÓMEZ: Em primeiro lugar, é preciso dizer que essa Constituinte foi convocada à margem do estabelecido pela Constituição da República Bolivariana da Venezuela, que estabelece a necessidade de se realizar uma consulta prévia, em referendo, para que possa ser convocada. E que é preciso submeter também à consideração popular, nessa consulta, as condições da convocatória. Apesar disso, convocaram tal Constituinte e estabeleceram regras que asseguraram ao aparelho de Estado e ao PSUV a capacidade de dar a forma à Assembleia Nacional Constituinte (ANC). Portanto, independentemente de que tenha sido submetida a eleições, acaba por ser uma Constituinte do poder constituído, não do poder popular soberano. Quer dizer: não está refletido o movimento popular e as expressões de poder popular. E aproveito para dizer que, na Venezuela, essas expressões têm vindo a ser cooptadas, clientelizadas e instrumentalizadas. Assim, a Constituinte, insisto, não é do poder popular e soberano, mas do poder constituído que usurpa a soberania popular com uma aparência de legitimidade.
Criou-se uma situação em que havia a Constituinte e a Assembleia Nacional.
GONZALO GÓMEZ: Na realidade o que há é um processo de concentração de todos os poderes com mecanismos autoritários, pseudo-institucionais.
Neste momento, o Tribunal Supremo de Justiça está completamente subordinado ao governo; a Assembleia Nacional foi considerada “em desacato” pelo fato de haver quatro deputados acusados de terem sido eleitos fraudulentamente. Em vez de suspenderem esses quatro votos, o que fizeram foi invalidar todas as decisões da Assembleia Nacional, sem que jamais fossem convocadas novas eleições para substituir esses deputados.
Diante de uma assembleia que foi conquistada pela direita e pelos setores políticos vinculados à burguesia tradicional, a forma que se utilizou para anular a perda dessa Assembleia foi um subterfúgio antidemocrático, porque a obrigação do governo de Maduro era resgatar o voto popular, ganhar o apoio popular para manter o controle da assembleia, mas com uma política correta.
A Procuradora-geral foi afastada…
GONZALO GÓMEZ: Sim, de fato. A Procuradora-Geral da República foi destituída e substituída por ter questionado o Tribunal Supremo de Justiça e ter questionado também a convocatória da Assembleia Nacional Constituinte nestes termos. Mas é preciso desde logo dizer também que a Assembleia Nacional Constituinte e sua forma de operar tampouco são algo que possamos considerar progressivo, ou em sintonia com a Revolução Bolivariana.
Primeiro, porque nela quase não se vê discussão, debate, elaboração de propostas que surjam de baixo. Para além de fazerem alguns comícios, com muitos aplausos, não existem os mecanismos para acolher a vontade do povo venezuelano.
E o que a Assembleia tem aprovado é regressivo. A sua orientação é desmontar o processo revolucionário. Coloca-se esta ANC como plenipotenciária, como supra-constitucional, deixando-nos numa situação praticamente de suspense e incerteza quanto à vigência da Constituição de 1999, de Chávez. Entre as coisas que posso mencionar, ultimamente aprovadas pela ANC, está um decreto-lei constituinte de proteção de investimentos estrangeiros. Que recoloca a maneira como participam as transnacionais e os investimentos de outros países em condições lesivas à soberania.
E isso foi dito por alguns intelectuais destacados, como Luís Brito García, um escritor importante que em geral tem tido posições de apoio ao governo de Nicolás Maduro. Ele assinalou que, com decisões como esta, o resultado que se obtém é minar as bases do que se ganhou em termos de soberania nacional no período de Chávez.
Por exemplo, a ANC não fez nada para corrigir – muito pelo contrário – a situação criada com o decreto de exploração do Arco Mineiro de Orinoco, que significa que um território equivalente ao tamanho de Portugal, ao sul do Orinoco e no Norte da Amazônia venezuelana, onde estão os principais rios, onde existe uma biodiversidade que é preciso cuidar por ser muito vulnerável, e onde se situam povos indígenas, é aberto à exploração da megamineração (v. Arco Mineiro na Venezuela viola soberania, democracia e direitos).
As transnacionais estão voltando depois de terem sido expulsas pelo presidente Chávez, descumprindo a Constituição, porque esta exige que sejam apresentados estudos de impacto ambiental e sociocultural, e exige também que os povos indígenas que vivem nesses territórios sejam consultados.
Mas nada disto foi feito. Assim, ninguém é consultado, e inventam-se coisas, como uma “atividade mineira ecossocialista”. Ministério de Mineração Ecossocialista. Chamam “socialistas” coisas que nada têm a ver, que são a antítese do socialismo.
É um paradoxo total…
GONZALO GÓMEZ: Há uma história que mostra bem o caráter desta Assembleia Nacional Constituinte e porque não é uma Constituinte do poder popular.
Nas eleições para presidente da câmara de Simón Planas, no estado de Lara, apresentou-se como candidato um constituinte cuja designação foi feita por eleição na comuna de El Maizal, uma comuna camponesa, produtiva e bastante bem organizada. Este candidato, Angel Prado, apresentou-se e o Partido Comunista e o PPT, membros do Pólo Patriótico que apoia Maduro, decidiram substituir uma candidatura anterior, em que iam com o PSUV, e apresentar este candidato.
O Conselho Nacional Eleitoral não alterou o nome do candidato na lista eleitoral e a ANC disse que não autorizava que este constituinte se apresentasse às eleições. Tinha de obter a autorização da ANC. Mas muitos dirigentes do PSUV que eram constituintes foram, sim, autorizados a ser candidatos.
O povo dessa comuna saiu às ruas para protestar, fechou vias, fez assembleias populares, foi ao Conselho Nacional Eleitoral, foi ao Tribunal Supremo de Justiça, exigindo que fosse reconhecida a vitória de Prado. Onde ganhou um comuneiro, o regime político desta Assembleia Constituinte nega-se a reconhecê-lo. Não se quer que o poder popular tenha espaço real de poder nas instituições.
Depois das eleições da Constituinte, já houve eleições municipais e regionais, convocadas de surpresa, que resultaram numa vitória de Maduro.
GONZALO GÓMEZ: O que acontece é que as eleições que estão a ser convocadas na Venezuela o são sob condições antidemocráticas, desvantajosas, irregulares, convocadas de surpresa, comprimem os calendários eleitorais, mudam as regras da noite à manhã, há candidatos inscritos que não são aceitos…
Quando não podem ter outro recurso, chegam a retirar candidatos no meio do processo e até a prendê-los. Nós denunciamos o caso do ex-presidente da câmara de Cumaná, no estado de Sucre, que tinha sido candidato a governador e, logo em seguida, não se lançou às eleições para presidente da câmara, mas estava à cabeça da promoção de 15 candidatos daquele estado. Então, foi preso, acusado de peculato, supostamente ocorrido quatro anos antes, quando estava na câmara.
Soube que a acusação foi que não tinha devolvido uma arma que é dada aos presidentes de câmara para a sua defesa, mas ele mostrou as atas de devolução. Ainda assim mantiveram-no preso e o julgamento foi adiado. E assim foi mantido preso até há pouco. É nestas condições que participamos nas eleições.
A Marea Socialista foi impedida de iniciar o seu processo de legalização. Não autorizaram que recolhêssemos assinaturas com o nosso nome. E apresentamos nomes alternativos. Um deles foi “Somos”. Que agora foi usado pelo Presidente da República para nomear dessa maneira essa espécie de movimento-partido que criou Nicolás Maduro para ter um jogo de duas fórmulas nas eleições, e quem sabe para que outros fins. É um partido montado com o aparelho do Estado e com os recursos do Estado.
Mas nós da Marea fomos impedidos de iniciar o processo de legalização. Foi-nos negado pelo Conselho Nacional Eleitoral e recorremos ao Supremo Tribunal de Justiça, que convocou uma audiência, naquilo que se converteu praticamente num julgamento político, questionando que pudéssemos utilizar o nome de socialistas porque atacávamos o governo; e depois nunca mais voltaram a convocar a audiência do julgamento. O Supremo nunca se pronunciou, de forma que nunca pudemos iniciar o processo de legalização.
Mas fomos [nas eleições] em aliança com a Unidade Política Popular 89 (UPP 89) e devo dizer que dos 385 municípios conseguimos apresentar candidaturas em 181 e que em vários estados e municípios obtivemos resultados muito importantes. Alguns casos de candidatos que obtiveram 30% e 40%, 20% ou 15%, percentagens consideráveis. Em alguns lugares, como o estado de Portuguesa, essa força eleitoral foi a segunda, imediatamente depois do PSUV.
Pensamos que há localidades onde os que ficaram em 2º ou em 3º lugares poderiam ter ficado em 1º. Mas tens de enfrentar a utilização da hegemonia midiática, comunicacional do aparelho de Estado, tens de enfrentar o uso dos recursos do Estado, tens de enfrentar o uso dos corpos de segurança usados para intimidar… Uma quantidade de condições que desmentem o que pudéssemos entender como uma democracia socialista ou democracia participativa que estava inscrita na Constituição.
O socialismo não se faz com armadilhas. O socialismo não se pode fazer com discriminação. O socialismo tem de ter amplitude, participação, debates, discussão. Com oportunidades de intervir e que isso possa ser usado para a tomada de decisões. Não é que Nicolás Maduro venha pedir: “façam-me chegar dez propostas” e de todas as sub-sedes do partido e das organizações sociais chegam-lhe milhares de papeizinhos com dez propostas. Mas depois não sabemos o que acontece, quem as seleciona, quais são as majoritárias. Isso é teatro, simulação.
E que pensas das eleições presidenciais convocadas para abril (depois desta entrevista, essas eleições foram adiadas para 20 de maio)?
GONZALO GÓMES: Convocaram-nas para abril, apesar de que constitucionalmente deveriam ser realizadas em dezembro. Mas como o governo foi conseguindo assentar este novo modelo eleitoral manipulador, sente-se suficientemente seguro para poder convocar e ganhar as eleições, mesmo que sejam minoria. E esta é a situação que existe agora. A maior parte da oposição não vai candidatar-se. Uns porque foram sendo ilegalizados, ou porque já não tinham a possibilidade de participar porque não cumpriam requisitos, outros porque a Justiça retirou de seus candidatos o direito de se apresentarem.
Não houve acordos nas negociações que fizeram a MUD e o governo – e devo dizer que estamos contra de que se pretenda resolver os assuntos do país entre a oposição de direita e o governo de Nicolás Maduro. E os demais que papel têm? O que somos nós, os demais? Que são o resto da oposição política e o resto das organizações sociais?
A Marea Socialista vai apresentar candidato?
GONZALO GÓMES: Participamos de uma plataforma onde estão vários dos ex-ministros e ex-ministras de Chávez que tiveram uma participação muito importante. Temos vindo a trabalhar junto com eles, que foram afastados do governo, mas não por serem corruptos ou por falta de vergonha. Foram afastados porque defendiam o “golpe de timão” de que Chávez falou antes da sua morte, uma viragem de radicalização democrática da Revolução Bolivariana para poder cumprir os seus objetivos.
Os prazos que determinou o governo, as condições em que as eleições foram convocadas não permitem, porém, o tempo necessário para as discussões, os acordos, os consensos, a construção de programas comuns… É algo feito a correr. Os aparelhos já têm tudo resolvido. Já têm candidato, já têm propostas, tem tudo pronto e montado. Só nessa altura é que anunciam as eleições e convocam os outros. E não dão tempo, prazos razoáveis, para poder resolver a situação.
Ainda não temos uma decisão do que vamos fazer. Em princípio inclinamo-nos a participar nos processos eleitorais. Decidir uma figura presidencial nestas condições não é o mesmo que participar nas eleições de presidentes de câmara para poder obter conquistas locais para impulsionar o trabalho revolucionário. A situação é outra.
Com o tempo, aprofundou-se e cristalizou-se uma elite de poder surgida da burocracia que foi acumulando capital através da corrupção, através do desfalque da Nação, que se veio a converter numa espécie de lumpen-burguesia. Por isso acontece na Venezuela o que acontece. Porque há uma mudança na condição de classe do que foi a direção da Revolução Bolivariana. São setores burgueses que estão ligados ao governo e foram favorecidos para os seus negócios, que financiaram os dirigentes, ou os altos funcionários…
E, ao mesmo tempo, a situação econômica continua catastrófica.
GONZALO GÓMES: A situação econômica é terrível porque o que vem aplicando o governo de Nicolás Maduro é um profundo e cru plano de ajuste. Medidas de ajuste econômico contra a classe trabalhadora. Dizem que estão contra o neoliberalismo e todas essas coisas. Mas se tens uma situação na qual levam o salário de um trabalhador a um nível de entre 3 a 4 euros mensais, qualquer um pode imaginar o significado. O salário foi esmagado.
O governo diz: é a guerra econômica. Começou um bloqueio selvagem. Existem algumas dessas coisas; mas, mais que a guerra econômica o que impera é a lógica do capital, a busca do lucro. E nisso também intervém a burocracia que desfalcou o país, levou recursos para fora do país, tem dinheiro em Paraísos Fiscais, porque fez transações com as transnacionais e retirou proveito disso, porque está abrindo o caminho à entrada das transnacionais e dos imperialismos emergentes no país, por exemplo no Arco Mineiro.
A burocracia estatal está envolvida no contrabando de extração, para retirar produtos do país, para utilizar as importações, mesmo de alimentos, para beneficiar-se do diferencial cambial com importações fraudulentas, fictícias.
Ao mesmo tempo, pagam a dívida e sacrificam o povo para pagá-la. Um governo revolucionário teria pelo menos de começar por auditá-la, e uma vez feito isso, dizer: “bom, esta parte da dívida é ilegítima e não a reconhecemos”. Mas não podem fazer isso porque estão envolvidos na compra e na negociação de bônus da dívida adquiridos em bolívares, mas que se podem negociar em dólares. Paga-se e recebe-se o troco, como se diz na Venezuela. Quer dizer: há interesses da própria burocracia na dívida. Interessa-lhes ser “bons pagadores” da dívida, mas não porque isso seja uma qualidade moral.
Frente a isto, é evidente que não podemos apoiar o governo de Nicolás Maduro. Temos de construir uma alternativa política, revolucionária e popular que recupere as chaves da Revolução Bolivariana.
Obviamente também estamos contra qualquer forma de ingerência ou de intervenção estrangeira.
Falou-se muito dessa possibilidade. Há o perigo de uma intervenção dos Estados Unidos?
GONZALO GÓMES: Não se deve descartar nunca esse perigo. E cremos que a política da burocracia nos torna mais vulneráveis diante da possibilidade de uma intervenção, porque vão quebrando a aliança com o povo, vão permitindo que entrem os interesses imperialistas em concreto, na vida econômica, através da corrupção…
Mas também penso que o imperialismo joga com o pau e a cenoura. Usa mecanismos duros, ameaças, mas também tenta obter na negociação as possíveis concessões que o governo de Nicolás Maduro, num determinado momento, possa dar.
Interessante. Estou até relendo. Laura Tavares, em 2000, no livro ” Os custos sociais do ajuste neoliberal na America Latina” da Editora Cortez já advertia sobre estas questões do neoliberalismo. O capitalismo trabalha com projetos de curto, médio e longo prazos.