Dinheiro foi levado na bagagem e, na pressa, até deixou cair cédulas na pista de decolagem
Apareceu em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, o ex-presidente do Afeganistão, Ashraf Ghani, cuja inesperada fuga no domingo, quando o Talibã cercava a capital, Cabul, acabou por decretar o colapso do ‘estado’ instaurado pela ocupação norte-americana por 20 anos.
Os Emirados anunciaram que aceitaram hospedar Ghani e sua família por “motivos humanitários”
De sua nova base nos Emirados, Ghani divulgou um vídeo na quarta-feira para asseverar que teve de deixar o Afeganistão “com um conjunto de roupas tradicionais, um colete e as sandálias” que usava.
Já o embaixador do Afeganistão no Tajiquistão acusou Ghani na quarta-feira de roubar US $ 169 milhões dos cofres do Estado e disse que pedirá sua prisão via Interpol.
Porta-voz da embaixada da Rússia em Cabul relatou à agência de notícias RIA Novosti que Ghani fugiu de Cabul com quatro carros e um helicóptero cheios de dinheiro. Era tanto dinheiro que ele não conseguiu pegar tudo e até “largou dinheiro no asfalto”, na pressa da fuga, acrescentou.
Quanto à alegação de Ghani de que fugiu “só com a roupa do corpo”, de forma um tanto sarcástica a Associated Press observou que “para morar nos Emirados Árabes Unidos, porém, ele precisará de muito mais do que isso. O custo de vida do país é tão alto quanto suas torres, mesmo que algum suporte seja oferecido”.
A agência de notícias acrescenta que os Emirados oferecem “uma variedade de impressionantes torres e opulentos hotéis cinco estrelas” – muitas opções para exilados políticos “em busca de privacidade e um lugar para estacionar seu dinheiro”. Como o ex-rei da Espanha em desgraça.
DESDOBRAMENTOS EM CABUL
Uma delegação de alto nível do Talibã se reuniu em Cabul com o ex-presidente Hamid Karzai e com Abdullah Abdullah, o presidente do Conselho Superior para a Reconciliação Nacional, com vistas ao que sua direção considera um “governo inclusivo”.
Como outro sinal de reconciliação, eles nomearam hoje Humayoon Humayoon, um ex-vice-presidente e um aliado próximo do ex-presidente Ashraf Ghani, como chefe de polícia de Cabul.
Com o principal negociador político e fundador do movimento, Abdul Ghani Baradar, já em território afegão desde terça-feira, a liderança do Talibã continua chegando a Cabul.
Entre os que voltaram, está Anas Haqqani, filho de Jalaluddin Haqqani e irmão mais novo de Sirajuddin Haqqani, chefe da Rede Haqqani. Ele fazia parte da equipe de negociação do Talibã no Catar.
Entre as questões que estão em discussão sobre a formação do novo governo, está a da proclamação de uma nova constituição, com base na Carta de 1964, que substitua a imposta pela ocupação, e os órgãos de poder que irão dar substância ao recém restaurado Emirado Islâmico do Afeganistão.
O Talibã pediu “unidade” antes das orações de sexta-feira e apelou a todos os imãs em Cabul e nas províncias para que persuadam as pessoas a não deixar o país.
Resta saber até que ponto são sinceras as promessas do Talibã de que evoluiu em relação ao seu governo fundamentalista, truculento e misógino de duas décadas atrás, e de que pretende congregar a todos os afegãos sob os valores islâmicos e patrióticos, de que a anistia virá e não haverá vingança contra ninguém.
DIA DA INDEPENDÊNCIA
Na quinta-feira, o Afeganistão comemorou sua independência do domínio britânico, arrancada em 1919. A liderança talibã saudou a data, enfatizando sua atualidade.
“Felizmente, hoje estamos celebrando o aniversário da independência da Grã-Bretanha. Ao mesmo tempo, como resultado da nossa resistência jihadista, forçamos outra potência arrogante, os Estados Unidos, a fracassar e a recuar do nosso território sagrado do Afeganistão”, disseram os talibãs, numa declaração citada pela Associated Press.
Oposicionistas aproveitaram a data para fazer atos com a bandeira oficial atual do país, em contraposição à bandeira branca do Talibã de inscrição “Não há deus senão Alá e Maomé é seu profeta”.
“Nossa bandeira, nossa identidade”, gritava uma pequena aglomeração de homens e algumas mulheres acenando com bandeiras pretas, vermelhas e verdes em Cabul, como mostrado em vídeo nas redes sociais.
Cenas semelhantes se repetiram em Khost e em Asadabad, na região leste do país. Pessoas acabaram mortas em uma manifestação em Asadabad, mas segundo a testemunha Mohammed Salim, não ficou claro se as baixas resultaram de disparos ou da debandada causada pelos tiros.
Na véspera, combatentes do Talibã atiraram em manifestantes que acenavam com uma bandeira em Jalalabad e mataram três, registrou a Al Jazeera.
Na terça-feira, o vice do presidente fujão Ghani, Amrullah Saleh, se declarou “presidente interino legítimo”.
Também Ahmad Massoud, filho de um senhor de guerra assassinado, o líder da Aliança do Norte Ahmad Shah Massoud, lançou uma conclamação pela “resistência” e pediu apoio externo, direto do reduto do Vale Panjshir, ao norte da capital, conforme as redes sociais.
No aeroporto de Cabul, onde já se amontoam 7 mil soldados dos EUA, a retirada de militares norte-americanos e colaboracionistas prossegue. Milhares de serviçais, que temem serem deixados para trás, seguem tentando deixar o país junto com as tropas estrangeiras.
Em mais uma evidência de que os invasores norte-americanos decidiram, de fato, abandonar a maior parte dos seus colaboracionistas, vídeos mostram que as tropas americanas atiraram, na noite do dia 19, bombas de gás lacrimogêneo sobre os que cercavam os muros e tentavam chegar à pista do aeroporto de Cabul, como mostra o vídeo:
Isso, apesar da entrevista ao canal ABC News, o presidente Biden, disse que os militares dos EUA vão permanecer no Afeganistão até que termine a operação de retirada, mesmo que ultrapasse 31 de agosto.
PRIMEIRA COLETIVA
O porta-voz Zabihullah Mujahid concedeu a primeira coletiva à imprensa após a vitória do Talibã, em que, em linhas gerais, afirmou que o movimento “tinha o direito legítimo de libertar país da ocupação ”e também prometeu um governo islâmico “inclusivo” e “direitos às mulheres”.
Ele ainda assegurou a segurança “das pessoas e embaixadas” e que “nenhuma ameaça” partirá de solo afegão contra um país vizinho.
Abaixo, um resumo da coletiva.
Al Jazeera: Quanto às mulheres?
Porta-voz: As mulheres são parte fundamental da sociedade. Vamos trabalhar com elas, dentro dos valores do Islã.
P: Segurança de contratantes e tradutores que trabalharam para os EUA?
Porta-voz: Asseguramos que todos foram perdoados. Sem vingança. Não queremos que saiam. Precisamos de seus talentos. Ninguém será interrogado ou terá suas casas revistadas. Todos os soldados que lutaram contra nós estão perdoados.
ToloNews: Perdão?
Porta-voz: Todos estão perdoados. O dano deveu-se à guerra. Isso não acontecerá mais.
P: Relatos de saques?
Porta-voz: Tivemos que intervir em Cabul para impedir isso. Traremos de volta os serviços.
P: Negociações?
Porta-voz: As negociações ocorreram em Doha durante 18 meses. Mas o governo anterior as sabotou e tinha planos para outra guerra de seis meses. Instruímos todos [os combatentes] a não entrar na casa de outras pessoas. A formação do governo acontecerá em breve e as coisas então ficarão claras.
P: O que muda?
Porta-voz: Haverá diferença no que o Talibã fez há 24 anos no governo e no que fará no futuro. Está mais desenvolvido agora.
P: Formação de governo? Fronteiras?
Porta-voz: Em andamento. As fronteiras são protegidas pelo Talibã. Não é permitido contrabando.
P: Criminalidade?
Porta-voz: Não temos nenhum caso de assassinato nas províncias desde que governamos. Atualmente um caso de sequestro. Isso também vai parar.
P: Drogas?
Porta-voz: Garantiremos que as drogas acabarão. Muitos de nossos jovens usam drogas. De agora em diante, o Afeganistão estará livre de drogas. A ajuda internacional é necessária para estabelecer culturas alternativas.
P: Governo?
Porta-voz: Teremos um governo forte baseado nos valores islâmicos. Estamos em consultas sobre isso. Será inclusivo. As mulheres poderão trabalhar.
P: Combatentes estrangeiros no Afeganistão?
Porta-voz: O solo afegão não será usado contra outros países. Pessoas que desejam fazer isso não são permitidas em nosso território.
P: As mulheres ainda podem trabalhar na mídia?
Porta-voz: Todos poderão trabalhar. O novo governo publicará leis regulando vários campos.
P: Contatos com Abdullah, Hekmatyar, Karzai?[líderes de governos e forças políticas que se bateram com o Talibã anteriormente]
Porta-voz: Em contato com eles. Quem quiser servir a nação não será ignorado. Governo inclusivo.
P: Relações internacionais?
Porta-voz: Queremos ter boas relações com todos.