Miguel Antonio Ahumada Cristi, Doutor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), condena desnacionalização de empresas, privatização do ensino e da saúde públicas, e desmonte das aposentadorias
LEONARDO WEXELL SEVERO
“Assim como a desnacionalização das empresas e a privatização do ensino público e de qualidade que atendia parcela expressiva dos chilenos, as Administradoras de Fundos de Pensão (AFPs) passaram a inviabilizar a aposentadoria digna e são uma canalhice. Para mim, quem constrói algo assim tem uma mentalidade psicopata, não há outro conceito para explicar o modelo neoliberal”.
A afirmação é de Miguel Antonio Ahumada Cristi, chileno radicado há mais de dez anos no Brasil, professor de Letras e Educação da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e Doutor em Educação pela Universidade de Barcelona.
Miguel recordou que, com o apoio do governo estadunidense, a ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990) “fez de tudo para favorecer as elites chilenas, ao empresariado e aos militares, a partir de uma reforma constitucional e de decretos com força de lei”. “O primeiro que foi repudiado pelas gigantescas manifestações – e está sendo discutido agora pelos Constituintes – é o sistema das AFPs. Quando elas foram criadas, aconteceu a mesma coisa que ocorreu há pouco no Brasil, reformas que prejudicaram o cidadão comum, excluindo os militares. Se a proposta fosse tão boa, por que não incluir os militares?”, ironizou. “Um dado importante, pouco sabido, é que o sistema de AFPs foi criado por José Piñera para favorecer a especulação empresarial. José é irmão de Sebastián Piñera, atual presidente do Chile”
Segundo o professor, antes os chilenos tinham fundos comuns (sistema de distribuição) em que podiam inclusive se aposentar mais cedo – e desfrutar mais da velhice – “em um caminho que não era o perfeito, mas era mais justo”. “Quando se aplica essa reforma das AFP, os fundos de pensão passaram às mãos de privados [capital especulativo e grande parte transnacional]. Para você ter uma carteira de trabalho no Chile, imediatamente essa pessoa tem que contribuir com uma AFP. Portanto, é algo obrigatório. Se criaram AFPs que recebem uma percentagem do salário, algo em torno de 12,8%, e que se joga na Bolsa para essas grandes empresas especularem e maximizarem seus lucros”, acrescentou.
“Bastante especulativo, uma das desgraças é a seguinte: por exemplo, se você tem uma aposentadoria de R$ 10 mil guardada e ganhou R$ 100, no máximo R$ 12 são para você e R$ 88 ficam para as AFP. E quando há uma variação negativa, você perde e a empresa não. Se no mercado de valores este dinheiro acumulado foi enviado para distintas empresas, como por exemplo a rede de roupas La Polar e as ações de lá baixarem, ainda assim a AFP vai cobrar o valor da alíquota ao aposentado. Você vai perder, mas eles não. Eles nunca perdem”, condenou o professor.
“As Administradoras de Fundos de Pensão (AFP) são um sistema criado para financiar uma maquinaria especulativa às custas do trabalho de todos os chilenos”
Conforme Miguel, como tem observado ao longo dos anos, “as AFP são um sistema criado para financiar uma maquinaria especulativa às custas do trabalho de todos os chilenos”. E por trás disso, frisou, tem um decreto com força de lei, portanto até a nova Constituinte não havia como se desviar da perversão de tal engrenagem, “a não ser que fosse um trabalhador autônomo, que contribuiria por sua própria conta ou ficaria de fora da aposentadoria”.
“Vou dar um outro caso, mais impactante. Imaginemos que o seu João é marido da dona Maria. Seu João trabalhou 40 anos no campo, numa empresa, de sol a sol, aí ele morre quando estava aposentado. Dona Maria vai receber somente a metade da aposentadoria do marido. O que você acha disso? Por quê? É uma indecência. Só uma mentalidade psicopata é capaz de fazer isso com a vida das pessoas”, enfatizou.
“Então esses fundos de pensão foram amplamente criticados porque, para além de serem injustos, são desumanos, fazem com que as pessoas se aposentem com uma miséria”, relatou. No caso do professorado chileno, bateu o pânico, já que estão se aposentando – depois de 40 anos de serviço – com o equivalente a menos de dois salários mínimos. “Isso faz com que os professores tenham muito medo, um verdadeiro terror de se aposentar. O conceito em espanhol é ‘jubilación’, e ‘júbilo’ significa felicidade, igual ao momento em que te dedicas a uma vida contemplativa, em que deixas de trabalhar e passas a desfrutar. Este conceito de júbilo se transforma em terror porque as farmácias se apoderaram de tudo, porque nos hospitais já não há mais medicamentos gratuitos para as doenças problemas mais comuns da velhice”, denunciou.
De acordo com Miguel, o sistema público de saúde existe, mas é extremamente deficitário, “o que faz com que há uns 20 anos os médicos chilenos não costumem trabalhar nos hospitais de bairro, seja pelos salários extremamente baixos, seja pelas condições paupérrimas”. Para atender a periferia, observou, “têm sido trazidos médicos equatorianos e centro-americanos”.
Em relação à construção de um modelo nacional soberano, o professor da UNILA acredita que é preciso ver um pouco mais atrás. “Este empenho vem desde o governo de Pedro Aguirre Cerda, com os Radicais, que fez uma tentativa de criar um sistema econômico que permitisse ao país ser independente das forças estrangeiras. O fato é que desde que Chile é Chile exporta maioritariamente matéria-prima, nunca teve um processo real de exportar produtos industrializados, e isso se mantém até hoje. A única refinaria de aço que temos é a Siderúrgica de Huachipato que, infelizmente, se iniciou como pública e na ditadura de Pinochet foi vendida para privados”, apontou.
Para o professor e estudioso, “as duas tentativas sérias que o Chile teve de nacionalização das suas empresas e, sobretudo, dos seus recursos minerais, foram no final do século 19 no governo de José Manuel Balmaceda, arrecadados pelo salitre, e houve guerra civil. Vale lembrar que Balmaceda acabou se suicidando para evitar mais mortes, o mesmo que aconteceu com Allende”.
“A necessidade de que as matérias-primas fossem industrializadas no país e que seus recursos ficassem com o Estado era uma das prioridades de Allende e da Unidade Popular”
“A partir do governo da União Popular (UP) se afirmou a necessidade de que as matérias-primas fossem industrializadas no país, seus recursos ficassem com o Estado. Exemplo disso é a refinaria CODELCO, nacionalizada totalmente no Governo da União Popular. Com isso o que pretendia a UP? Entre os inúmeros programas inovadores que tinha Salvador Allende estava o investimento em serviços tecnológicos. Por exemplo, no governo de Allende foi criado o primeiro protótipo de automóvel. De fato, chegaram a ser construídos mil íantes do golpe de Estado”, esclareceu.
Além disso, informou, houve vários outros programas bastante interessantes e muito bem pensados como a reforma agrária, que também propiciaria inúmeros benefícios não só para o trabalhador rural – mais diretamente – como para a população urbana, com a redução do preço dos alimentos.
“A reforma iniciada por Eduardo Frei Montalva (1964-1970) – pai de Eduardo Frei -, que iniciou o programa de educação para os camponeses elaborado por Paulo Freire. O programa tinha um monte de coisas fabulosas em relação à reforma agrária e à distribuição mais justa das terras, estava sendo debatida a recuperação dos minerais, propiciada a independência tecnológica… Porque muitas pessoas entendem o discurso anti-imperialista limitado a enfrentar os Estados Unidos e tomar os meios de produção. Sim, mas há também o desenvolvimento tecnológico, para garantir e efetivar a independência. No Chile, se desenvolveu e potencializou o Instituto Nacional de Capacitação (INACAP), o Departamento Universitário Operário e Camponês (DUOC), as Linhas Aéreas Nacionais (LAN) do Chile. Tudo isso que com a ditadura foi totalmente privatizado”, exemplificou.
A análise de Miguel é que “o Chile se transformou em um Estado extremamente privatizado ao ponto em que um país rico ficou com um Estado pobre, dentro de uma lógica mercadológica excludente”. “Assim, um dia antes que o ditador Augusto Pinochet deixasse o poder, foi promulgada a Lei Orgânica Constitucional de Educação (LOCE), com o país sendo entregue por completo à iniciativa privada (o único que faltava elitizar por lei era a educação). A LOCE foi outro dos pontos bastante elitistas, em favor do ensino particular”, disse.
Comprometido com a democracia, Miguel tem esperanças com a nova Constituinte, “em que a direita praticamente não tem qualquer poder, e eles jamais iriam imaginar que fossem derrotados de forma tão contundente”. “O que acontece é que ninguém esperava que a Assembleia Nacional Constituinte, eleita no semestre passado, chegasse sem que a direita pudesse apresentar freios a mudanças mais radicais, como se abrem agora”, acredita.
“Existe nos constituintes uma multiplicidade de discursos independentes, com diferentes vozes e lutas que farão do Chile um país mais justo”
A compreensão do professor é de que “embora não haja o anti-imperialismo como um lema, existe nos constituintes uma multiplicidade de discursos independentes, com diferentes vozes e lutas que farão do Chile um país mais justo”. E quais as prioridades? Em primeiro lugar, enfrentar o escárnio da exploração das AFPs, fortalecer o sistema público de saúde e nacionalizar os recursos minerais – responsável por boa parcela das riquezas nacionais. “Mas a Constituinte não vai avançar nos temas mais complexos sem realizar consultas cidadãs, plebiscitos, ouvindo a população, algo extremamente honesto e de acordo com a tradição do movimento”, ponderou.
Especificamente sobre o cobre, que representa um percentual importante do PIB chileno, Miguel avalia que “se o primeiro governo de Michelle Bachelet foi tão bom, com todas as críticas que possam ser feitas, é porque o cobre nunca havia sido tão valorizado a nível mundial”. “E isso significou encher os cofres do Estado e com isso se investiu na criação de hospitais, de mais escolas, de leis para que as mulheres que trabalharam todo tempo como donas de casa pudessem ter uma aposentadoria mínima e se fizessem uma grande quantidade de subsídios habitacionais para que as pessoas tivessem sua moradia gratuita. Com isso posso dar exemplos concretos da importância do cobre e de outros minerais”, descreve.
Com o cronômetro ligado para as eleições de 21 de novembro, Miguel opina que o candidato com mais possibilidades é Gabriel Boric, “embora acredite que não esteja à altura desse momento histórico”. “Mas seria o candidato que não vetaria a nova Constituição, da mesma forma que Yasna Provoste, ao contrário de Sebastián Sichel, que não daria qualquer espaço às mudanças mais radicais na Constituição atual”, sintetiza.
No caso de um segundo turno de Boric com qualquer dos dois, Provoste ou Sichel, avalia Miguel, “a esquerda não teria outra opção senão votar por Boric, que é deputado por uma zona do Chile em que mora apenas 2% da população, com um discurso bastante limitado à sua militância universitária”.
“Existe ainda uma possibilidade que nas eleições para deputados e nas eleições para senadores possa haver uma mudança. Não sei se chegaremos aos dois terços no parlamento, mas elegendo um presidente que dialogue com a Constituinte e que aceite os decretos e a nova legislação pautada já teremos um bom ponto a favor”, comemora.
Boric é apoiado pelo pacto Chile Digno – integrado pelo Partido Comunista, Federação Regionalista Verde Social e Ação Humanista – e pela Frente Ampla – Revolução Democrática, Comunes e Convergência Social. Ex-presidente do Senado, Yasna Provoste tem o apoio da Democracia Cristã e do pacto Unidade Constituinte, do Partido Liberal e do Novo Trato.