Nossas avós costumavam lembrar que revidar a uma mordida de um cachorro, mordendo o cachorro, não é algo razoável.
Mas existe algo pior que morder um cachorro.
É tentar combater mentiras com mentiras, falsidades com falsidades – enfim, na linguagem moderninha atual, fakenews com fakenews.
O suposto documentário (a palavra “suposto” ou “suposta” é uma das mais usadas nele) “Bolsonaro e Adélio, Uma Fakeada no Coração do Brasil”, faz exatamente isso.
Não por acaso, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, apesar de instada a falar sobre o assunto, optou pelo silêncio.
Aliás, até agora, apesar de que o “Brasil 247” tem sido apoiado pelo PT, o que deve ter feito com que alguns no partido tenham, também, apoiado esse tipo de enfoque, a maioria tem guardado silêncio, o que é compreensível. Entre os parlamentares, contamos apenas quatro, que manifestaram publicamente alguma simpatia para com o suposto documentário, provavelmente por influência de uma infeliz declaração do ex-presidente Lula, quando ainda detido em Curitiba, que motivou uma palhaçada por parte do notório sr. Augusto Heleno (palhaçada reproduzida em “Uma Fakeada no Coração do Brasil”).
Mesmo assim, é forçoso reconhecer que certas coisas – e certas atitudes – merecem repúdio, mais que o silêncio, sobretudo quando ameaçam arraigar uma pecha infamante, que deveria pertencer exclusivamente ao inimigo, isto é, a Bolsonaro.
Pois, a mentira se combate com a verdade. Fabricar fakenews somente serve para naturalizar as fakenews de Bolsonaro.
Vejamos mais um pouco essa questão.
FÁBRICA
Que Bolsonaro é um mentiroso, um falsário, um fabricante de fakenews, como todo fascista, não cabe dúvida – nem há como caber.
Por isso mesmo, nada há de mais nocivo – tanto do ponto de vista político como moral – quanto descer ao mesmo nível que ele, como se a verdade não existisse e qualquer coisa servisse para tecer uma narrativa.
Até porque, se Bolsonaro puder apontar que a fábrica de fakenews pertence à oposição – e não a si próprio – isso será a maior ajuda que poderá ter.
E o povo?
Que diferença haverá, para ele, se a oposição recorre à mentiras, tanto quanto Bolsonaro?
Longe de nós a ideia de que toda a oposição ou todos os meios políticos estão imbuídos dessa desgraçada infecção.
Mas, quando ela aparece em um setor – como é o caso do suposto documentário que estamos analisando – é preciso condená-la, como única terapêutica possível.
Vamos, então, ao vídeo do “Brasil 247”.
“ESTRANHEZAS”
O método de “Bolsonaro e Adélio, Uma Fakeada no Coração do Brasil” não é muito complicado: trata-se de uma enxurrada de palavras, entremeadas por alguns vídeos, proferida por um de seus diretores, Joaquim de Carvalho, considerando sempre “estranhos” quaisquer incidentes – ou, melhor, os incidentes que ele apresenta.
Nessa catadupa, ele considera estranhas até mesmo coisas que são realmente estranhas (já chegaremos lá), mas, em sua maioria, quase todas, são banalidades promovidas a estranhezas.
Por exemplo, a carreira política ou ficha ideológica da diretora (ou gerente) do “.38”, o clube de tiro que Carlos Bolsonaro frequentava. O que há de estranho nessa figura mentir para proteger o notório Carluxo? Ou, o que existe de estranho nessa gerente ser uma sequaz dos Bolsonaro, inclusive candidata (fracassada) a prefeita de Criciúma, apoiada pela família?
Entretanto, Joaquim de Carvalho, em sua narrativa, torna isso um motivo de estranheza.
Evidente, em torno do “.38” existe algo realmente estranho, mas não é isso. O narrador e autor do vídeo sabe – e, por isso, considera essa a questão decisiva para a narrativa. Mas não dispensa a tentativa de contaminar o que não é estranho com uma estranheza que somente existe nas suas palavras.
O que existe de verdadeiramente estranho – como nós, aliás, apontamos na época – é o fato de que Carlos Bolsonaro e o esfaqueador de seu pai, Adélio Bispo de Oliveira, tenham frequentado o mesmo clube de tiro (o citado “.38”) ao mesmo tempo.
Porém, existe algo mais estranho ainda, que é omitido no suposto documentário, produzido pelo site “Brasil 247”, pois é uma dificuldade para considerar essa estranheza como suspeita.
A presença de Carluxo e de Adélio no clube de tiro “.38” não foi uma descoberta do suposto documentário – nem ao menos da Polícia Federal (PF).
Quem divulgou essa presença foram os próprios Carluxo e Adélio, através de suas “redes sociais”, antes da facada de Juiz de Fora.
Em “Bolsonaro e Adélio, Uma Fakeada no Coração do Brasil”, entretanto, essa presença concomitante no “.38” é tratada como se fosse o início – ou o fechamento de um acordo – para realizar um “autoatentado” (sic – palavra usada por Joaquim de Carvalho) em Juiz de Fora.
Convenhamos que este seria um modo – aí, sim – muito estranho de combinar um “autoatentado”. Com divulgação da presença no local pelas “redes sociais”. Qual a necessidade disso?
Obviamente, os confeccionadores do vídeo podem argumentar que Bolsonaro e seu filho são tão inteligentes, que fizeram isso tudo para nos enganar… Mas vai ser difícil convencer alguém de semelhante tese.
SIMETRIA
Porém, aqui temos o fio do método que começamos a expor.
Em vez de partir dos fatos para chegar a uma conclusão, “Uma Fakeada no Coração do Brasil” tem um parti pris – um partido já tomado, uma conclusão antecipada e tendenciosa – e tenta escolher, e qualificar os fatos como “estranhos”, em função dessa conclusão antecipada.
Nesse sentido, a tendenciosidade do suposto documentário é simétrica à de Bolsonaro e sua trupe.
Qual é a narrativa de Bolsonaro?
A de que adversários políticos – o PT, o PSOL, os comunistas ou lá quem seja – tramaram e executaram a facada em Juiz de Fora.
Dois inquéritos da PF, com milhares de páginas, desmoralizaram completamente essa narrativa de Bolsonaro.
Porém, Bolsonaro, seus filhos e seus milicianos políticos continuaram a dizer que a PF protegera seus adversários políticos.
Muito justamente, a PF se recusou a servir de instrumento para Bolsonaro.
Agora, qual é a narrativa de “Uma Fakeada no Coração do Brasil”?
A de que Bolsonaro e seu grupo tramaram e executaram um “autoatentado” (sic) e os inquéritos da PF, com suas milhares de páginas, serviram para beneficiar e proteger Bolsonaro.
São, portanto, narrativas simétricas – até porque são, ambas, mentirosas, isto é, fakenews.
Em “Uma Fakeada no Coração do Brasil”, o narrador diz que a consideração de Adélio Bispo de Oliveira como “inimputável” (não responsável pelo ato criminoso que cometeu) foi para beneficiar Bolsonaro, pois se ele comparecesse a um tribunal do júri, a farsa não poderia ser mantida.
(Transcrevo desta forma o que diz Joaquim de Carvalho, embora não seja tão direto, porque ele vai além da insinuação, em sua narrativa.)
Na lei brasileira, um réu, para ser considerado “inimputável” devido ao seu estado mental, necessita de um parecer psiquiátrico.
Portanto, Joaquim de Carvalho teria de alegar – para defender que Adélio deveria ser julgado por um Tribunal do Júri – que o parecer psiquiátrico, no qual se baseou a consideração de Adélio como “inimputável”, é falso, ou seja, que os psiquiatras que o assinaram, estavam na conspiração de Bolsonaro.
Mas ele não faz isso – porque sabe que isso é ridículo e ultrapassaria todos os limites de credibilidade.
Como, então, propugnar que Adélio deveria ser levado ao Tribunal do Júri, sem alegar que os psiquiatras, que o consideraram “inimputável”, falsificaram o diagnóstico?
Se existe alguma coisa que psiquiatras temem é que seus diagnósticos possam ser classificados como falsos – sobretudo quando têm caráter forense, judicial, caráter de perícia.
Por isso, em geral, esses pareceres são vistos e revistos – e por mais de um psiquiatra – antes de serem enviados às autoridades judiciais. Qualquer problema neles pode ocasionar a destruição de uma reputação profissional – ou, mesmo, coisa pior.
Eu sei disso, leitores, pois fui psiquiatra por décadas. Aliás, a mim não restam dúvidas de que Adélio é portador do que hoje se denomina “transtorno psicótico”. Mas não me estenderei sobre isso.
Entretanto, Carvalho não se preocupa com a coerência, ao dizer que Adélio não foi levado ao Tribunal do Júri para beneficiar Bolsonaro – e, ao mesmo tempo, não alegar que seu diagnóstico é falso.
ALIENÍGENAS
Continuemos.
Como é possível que os autores de “Uma Fakeada no Coração do Brasil” achem possível, sem provas além de “estranhezas” sobre isso ou aquilo, falar em “autoatentado”?
Pois, se houvesse provas, não teríamos nada contra.
Porém, o que não há são provas.
É interessante a reação de um dos jornais, hoje, mais opostos a Bolsonaro, ao suposto documentário:
“A Folha encaminhou 21 perguntas a Joaquim de Carvalho e ao Brasil 247. Entre elas, a que os questiona sobre a que eles atribuem a não descoberta de tamanho ardil, três anos depois, mesmo sendo necessária a participação, na suposta trama, de uma infinidade de pessoas: testemunhas, aliados dos Bolsonaro, ex-aliados, seguranças, auxiliares, ex-auxiliares, policiais civis e militares de Juiz de Fora, policiais federais, integrantes do Ministério Público, integrantes do governo de Michel Temer (que tinha Henrique Meirelles como candidato à Presidência, à época), motoristas, funcionários, enfermeiros e médicos de dois grandes e respeitados hospitais (Santa Casa de Juiz de Fora e Albert Einstein, em São Paulo), além de familiares de todas essas pessoas, entre outras” (FSP, 16/09/2021).
Não houve resposta, exceto a de que “a intenção da Folha não é investigar as fragilidades do caso, que foram detalhadas por Joaquim de Carvalho, com riqueza de detalhes, em seu documentário” (Brasil 247) e que “o inquérito da PF não investigou a hipótese do autoatentado” (Joaquim de Carvalho).
Ou seja, nenhuma resposta a uma questão inteiramente pertinente – aliás, mais do que pertinente, pois evidencia tudo o que o vídeo ignora, isto é, quase toda a realidade.
Não deixa de ser divertida a réplica da “Folha de S. Paulo”: “De fato, a PF nunca teve como objeto formal da investigação a hipótese de autoatentado, assim como não teve a de que a facada foi planejada por alienígenas, por exemplo, pelo simples fato de não haver qualquer indício plausível nesse sentido”.
TUMOR
Aqui, temos um exemplo de como as questões são tratadas em “Uma Fakeada no Coração do Brasil”: se Bolsonaro não levou a facada – ou levou uma leve facada – por que esteve tão mal de saúde, necessitando ser operado no Hospital Albert Einstein, e, depois, como há algumas semanas, de uma aderência, no Hospital Vila Nova Star?
A tese é a seguinte: Bolsonaro teria uma patologia anterior à facada; a “prova” disso é que o cirurgião que o operou foi um oncologista, Antonio Macedo; portanto, Bolsonaro foi operado de um tumor e não da facada.
Muito sagaz.
Apenas, isso implica que não somente o cirurgião Macedo, mas toda a sua equipe e mais a direção do Hospital Albert Einstein, além da equipe da Santa Casa de Juiz de Fora e sua direção, estavam em conluio para falsificar a operação de Bolsonaro, e continuam em conluio até hoje.
Aliás, é o que Joaquim de Carvalho insinua, ao relatar que um dirigente do Einstein recusou ser entrevistado por ele.
Ao mesmo tempo, ele insinua que haveria algo estranho também na saída do cirurgião Macedo do Hospital Albert Einstein para o Hospital Vila Nova Star, da Rede D’Or – como se fosse algum segredo a opção de um médico por honorários mais vultosos.
Não nos deteremos na incoerência entre essas duas insinuações. Mais importante é outra questão:
Por que, se Bolsonaro foi realmente operado, não poderia ter sido operado da facada?
Não seria muito mais lógico, e muito mais fácil de admitir, do que esse conluio todo, que vai dos médicos de Juiz de Fora até aos paulistas e aos psiquiatras que examinaram Adélio?
Pois, pela versão de Carvalho, Bolsonaro tinha um tumor. Aí, aproveitou-o para simular um atentado (um “autoatentado”). Por isso, foi operado, mas não da facada – e, sim, do tumor.
Qual a prova de que esse tumor existia?
Nenhuma.
Então, por que não admitir que foi uma facada?
Ora, é nessas horas que aparece o repórter genial.
Segundo Carvalho, uma sua amiga, cirurgiã, que pediu para que seu nome não fosse divulgado, lhe disse que Adélio não teria “ponto de apoio” para que a faca penetrasse 15 cm no abdômen de Bolsonaro.
Essa cirurgiã examinou Bolsonaro?
Não, ela apenas viu o vídeo, pela TV ou na Internet, e concluiu que Adélio não tinha “ponto de apoio” para enfiar a faca até 15 cm da barriga de Bolsonaro.
Além disso, diz Carvalho, haveria um precedente em Juiz de Fora: um candidato a prefeito que simulou um atentado – uma pedrada na cabeça contra si mesmo.
Não é genial, leitor?
FALSIDADE
Já indicamos acima o que nos pareceu mais estranho, tanto para um lado quanto para outro.
Mas a questão das “estranhezas” não altera o problema: o que essas estranhezas, tanto as verdadeiras quanto as falsas, têm a ver com provas de um “autoatentado”?
Nada.
Por exemplo, há uma mentira flagrante, a de que Adélio era inscrito no PSD.
Mas… e se fosse verdade?
Em que essa filiação de Adélio provaria que ele foi contratado ou acertado para ser o executor de um “autoatentado” a Bolsonaro?
Em nada.
No entanto, toda a parte final do suposto documentário é gasta com a tentativa de provar (provar?) que Adélio estava mais próximo de Bolsonaro do que da “esquerda”.
Observe o leitor que nós estamos falando de um psicótico – e nem o narrador de “Uma Fakeada no Coração do Brasil” nega que se trata de um psicótico, apesar de pregar que ele deveria ser submetido ao Tribunal do Júri.
Aliás, a questão da falsa filiação ao PSD é típica de um psicótico.
Adélio Bispo de Oliveira, segundo a Justiça Eleitoral, jamais foi filiado ao PSD.
Apesar disso, acreditou que fora inscrito, contra a sua vontade, no PSD.
Assim, apresentou um pedido de desfiliação ao PSD, mesmo tendo obtido uma certidão da Justiça de que não era filiado a esse partido – o que é comum em psicóticos (alguns chamam esse tipo de fenômeno, em que há convivência entre coisas contraditórias, de “duplo registro” psicótico).
É esse pedido de desfiliação que o narrador de “Uma Fakeada no Coração do Brasil” apresenta como prova de que Adélio era filiado ao PSD. Ao mesmo tempo, omite o certificado da Justiça Eleitoral de que Adélio nunca fora membro do PSD.
É interessante como o autor do suposto documentário justifica a inclusão da informação falsa em sua obra, em declaração à “Folha de S. Paulo”:
“O Adélio pediu desfiliação do PSD. Se ele pediu desfiliação, é porque se considerava filiado, o que equivale dizer: era filiado de fato. Se você envia uma carta à Folha com pedido de demissão, significa que você acredita que é contratado da Folha.”
Ou seja, o fato de existir também uma certidão garantindo que ele jamais foi filiado ao PSD, não significa nada.
Nem o fato de tratar-se de um psicótico, claramente com um delírio persecutório. E se Adélio acreditasse ser um nativo de Marte? Isso “equivaleria dizer” que ele “de fato” nasceu em Marte?
A justificativa para incluir algo abertamente falso no suposto documentário é, portanto, apenas a vontade do autor de passar Adélio como alguém ligado à direita, para que a versão do “autoatentado” pareça mais plausível ou engolível.
Como se a filiação de alguém ao PSD o tornasse um joguete de Bolsonaro… Lula, que tem conversado bastante com Kassab, não tem essa opinião.
VERDADE E MENTIRA
O suposto documentário tem 1h44min. Poderíamos, portanto, estender esta matéria até o ponto do leitor não suportá-la.
Mas não é esse, evidentemente, o nosso objetivo.
Pequenas mesquinharias, como a do agente que teria se atravessado na frente de um fotógrafo para impedi-lo de registrar o momento da facada são muito ridículas – até porque havia dezenas de outros fotógrafos e cinegrafistas na hora do acontecimento.
Em geral, quando aparece algo que contraria frontalmente a tese do “autoatentado”, a atitude do narrador de “Uma Fakeada no Coração do Brasil” é registrar e ir em frente, como se o elemento registrado não existisse.
Isso acontece, por exemplo, quanto ao almoço de Bolsonaro em Juiz de Fora, algo que está fora da lógica do “autoatentado”, pois a barriga vazia seria melhor para quem sabia que seria furado por uma faca.
Mas, não precisamos continuar. Parte não pequena do conteúdo de “Uma Fakeada no Coração do Brasil” é retirada da Internet, onde existe há bastante tempo. Especialmente no canal do YouTube “True or Not”, cujo conteúdo foi checado pela PF em sua investigação.
O suposto documentário atual é uma versão revisada e ampliada de um anterior, “A Facada no Mito”, postado, exatamente, nesse canal do YouTube.
Joaquim de Carvalho reconhece sua dívida com o “True or Not” (“quem fez esse canal sabe das coisas”, diz ele em “Uma Fakeada no Coração do Brasil”). Mas isso não faz seu suposto documentário ser verdadeiro.
Nem mais nem menos.
CARLOS LOPES