A Câmara dos Deputados aprovou por 301 votos a 150, na noite de quarta-feira (9), o Projeto de Lei (PL) 6299/02, que flexibiliza o controle e a aprovação de agrotóxicos no Brasil, chamado de “PL do veneno”.
Criticada por especialistas, entidades ambientalistas e partidos de oposição, a proposta cria novas regras para avaliação, aprovação e fiscalização da produção e comercialização de agrotóxicos, facilitando, por exemplo, o registro de substâncias cancerígenas.
Em razão das mudanças aprovadas pelos deputados, o texto, apresentado originalmente no Senado, volta àquela Casa para nova votação.
O projeto surgiu em 2002, mas ficou ainda mais nocivo a partir da gestão de Jair Bolsonaro, que promoveu um aumento recorde da liberação de registros de venenos para utilização nas atividades agrícolas do país – somente no ano passado, foram 641 novos produtos liberados.
O “PL do Veneno”, como o projeto foi apelidado ao longo de sua tramitação, centraliza no Ministério da Agricultura as tarefas de fiscalização e análise de produtos para uso agropecuário e permite a obtenção de registro temporário. Hoje, devido à complexidade da análise dos riscos e à falta de testes em humanos, os pedidos de registro levam mais tempo para serem obtidos.
De acordo com o substitutivo do relator, deputado Luiz Nishimori (PL-PR), caso o pedido de registro não tenha parecer conclusivo expedido no prazo de dois anos, o órgão registrante será obrigado a conceder um registro temporário para agrotóxico novo ou uma autorização temporária para aplicação de um produto existente em outra cultura para a qual não foi inicialmente indicado.
Entre outros retrocessos, a medida também promove a exclusão de órgãos técnicos na validação dos produtos que podem ser utilizados na agricultura. Atualmente, o registro passa obrigatoriamente pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Pela nova configuração, Ibama e Anvisa poderão apenas avaliar ou homologar avaliações, perdendo poder de regulamentação. Outra proposta é estabelecer o registro eterno de agrotóxicos no Brasil – ou seja, uma vez que químicos forem liberados, não poderão ser suspensos, ainda que se comprove que são altamente danosos.
RISCOS À SAÚDE
Uma das mais graves consequências da aprovação da matéria será a substituição da Lei 7.802, de 1989, que define claramente a proibição para agrotóxicos associados ao câncer, mutação no material genético, malformações fetais, alterações hormonais e reprodutivas.
O projeto substitui este artigo pelo conceito de “risco inaceitável”. Ou seja, em vez da proibição absoluta das substâncias nocivas, há a relativização para alguma coisa que poderia ser considerada “aceitável”.
A proposta altera ainda a nomenclatura de “agrotóxicos” para “pesticidas”, suavizando, no imaginário social, o potencial tóxico das substâncias.
CRÍTICAS À PROPOSTA
O PL 6299/02, que tem origem em uma proposta de cerca de 20 anos atrás, do então senador Blairo Maggi, foi defendido por parlamentares ligados ao agronegócio e pela base governista. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) avalia que a mudança na lei traz uma análise mais completa e leva em consideração todos os riscos envolvidos à saúde e ao meio ambiente.
No entanto, quando uma proposta de substitutivo foi aprovada em 2018 numa comissão especial, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Fiocruz), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), entre outras entidades, divulgaram duras críticas à proposta.
Ontem, depois da aprovação da urgência, Marina Lacôrte, porta-voz de Agricultura e Alimentação do Greenpeace Brasil, disse que a tentativa de aprovação mostra quais são as prioridades do governo e da bancada ruralista.
“[Arthur] Lira [presidente da Câmara] vem promovendo a abertura da porteira, a passagem da boiada e o pisoteio total sobre nossas políticas públicas socioambientais! Destruiu o licenciamento, ampliou a destruição das florestas, as ameaças aos povos indígenas e chancelou o roubo de terras! Agora o veneno é a boiada da vez”, afirmou.
A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Associação Brasileira e Agroecologia apresentaram um dossiê científico contra o projeto.
“Temos um governo federal e um legislativo que não têm nenhuma preocupação com a saúde e o meio ambiente, desmontando e perseguindo ambientalistas, lideranças de povos e comunidades tradicionais e até mesmo os órgãos de fiscalização. Tudo isso somado ao ‘PL do Veneno’ será um desastre sem precedentes na nossa história”, afirmou Karen Friedrich, integrante do Grupo Temático Saúde e Meio Ambiente da Abrasco e toxicologista da Fiocruz.
OBSTRUÇÃO
A discussão do “PL do Veneno” no plenário da Câmara foi marcada pela obstrução dos partidos oposicionistas.
Segundo o líder da oposição, deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), o texto terá consequências “irreversíveis” para a saúde do brasileiro. “Aqui no Brasil está sendo adotado pelo governo Bolsonaro o princípio da negligência: estão liberando o veneno para colocar no prato das nossas mesas”, disse.
“Se esse projeto de lei for aprovado, produtos que causam úlcera, corrosões na pele, câncer, cegueira, não serão mais considerados extremamente tóxicos. Isso é inacreditável, mas é essa a verdade”, acrescentou.
O deputado Nilto Tatto (PT-SP) destacou que não haverá redução de custos para o agricultor. “Apenas as grandes empresas serão beneficiadas. É só nós recordarmos que, aqui, nos últimos três anos, mais de 1.500 novos agrotóxicos foram liberados e nem por isso o custo para a produção na agricultura diminuiu”, afirmou.
Para o vice-líder do PCdoB, deputado Orlando Silva (SP), nada justifica a aprovação da medida que “é uma aberração” do ponto de vista científico, político e econômico. “O Brasil tem uma das maiores agriculturas do mundo, com todas as regras que existem hoje. Com mais rigor no uso de produtos e defensivos agrícolas, podemos expandir a presença do país no mercado internacional”, disse.
“Tratar de agrotóxico não é brincadeira. Isso impacta a vida das pessoas, causa a contaminação do solo e pode afetar a imagem do país nos mercados internacionais. Não havendo a precaução, o cuidado, as garantias para a proteção da vida, a preservação do solo, podemos comprometer a credibilidade, a confiança que o Brasil precisa preservar e ampliar para comercializar seus produtos internacionalmente”, argumentou o deputado Daniel Almeida (PCdoB-BA).
A deputada Joenia Wapichana (Rede-RR) afirmou que o texto não deveria ser considerado prioritário durante a pandemia. “Que país é este que prioriza o veneno, que flexibiliza uma legislação que tem o potencial de liberar uma ampliação indiscriminada do uso de agrotóxicos em regiões hidrológicas, regiões que ameaçam rios e lagos, uma legislação que pode colocar em risco a vida das pessoas?”, questionou.
Na avaliação do deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP), os parlamentares deveriam discutir o projeto que cria o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (PL 6670/16), além de projetos como o que incentiva a produção de bioinsumos e controle biológico (PL 658/21). “Nós temos que trabalhar em uma outra perspectiva, de incentivar a produção orgânica, a produção mais limpa, a produção sustentável e saudável”, apontou.