No último sábado (26), o batalhão de choque da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul despejou de forma violenta indígenas Guarani e Kaiowá que haviam realizado uma retomada no território reivindicado como parte do tekoha Laranjeira Nhanderu. A ação policial deixou pelo menos três indígenas feridos com balas de borracha e foi realizada sem mandado judicial.
Os indígenas haviam retomado a fazenda “Inho” na madrugada do sábado, em mobilização contra a iniciativa de políticos e agentes de sindicatos rurais que pretendem estabelecer um assentamento rural na propriedade.
A fazenda é parte da área reivindicada como de ocupação tradicional pelos Guarani e Kaiowá e está em processo de identificação e delimitação pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
A área retomada consta do perímetro em estudo para demarcação da Terra Indígena (TI) Brilhantepegua I, incluída no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre a Funai e o Ministério Público Federal (MPF) em 2007. O acordo estabeleceu um plano de estudos para a demarcação de terras indígenas Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul.
Segundo as lideranças, a comunidade do tekoha Laranjeira Nhanderu decidiu fazer a retomada após ser informada de que famílias cadastradas para o assentamento pretendido ocupariam a área da fazenda no último final de semana, após o término da colheita de soja, com a intenção de pressionar o Estado para agilizar a concessão de crédito fundiário.
No sábado, os indígenas relataram ter sido ameaçados por fazendeiros e por lideranças que estão organizando o grupo de famílias cadastradas para o assentamento. Os ruralistas prometeram reunir um contingente maior de pessoas para ocupar o local e retirar os indígenas.
As lideranças Guarani e Kaiowá solicitaram apoio da Funai e do MPF ainda no início da manhã. Com a liberdade de movimentação entre municípios restrita por uma determinação do Ministério da Justiça, os servidores da Coordenação Regional da Funai, localizada em Dourados, chegaram ao local apenas na tarde.
Segundo relato dos indígenas, minutos depois, quando começavam a conversar com os técnicos do órgão, a tropa de choque da PM chegou de surpresa e partiu para cima da comunidade, com uso de bombas de som e luz, gás lacrimogêneo e balas de borracha.
“Tinha essa ameaça de invasão [do grupo que pretende ser assentado], mas nós fomos surpreendidos pela tropa de choque, que chegou atirando, não dialogou nada. Nos desrespeitaram, nós também somos humanos, buscamos o diálogo. É conversando que a gente se entende. Recuamos, e eles continuaram atirando”, relata uma das lideranças, não identificada por razão de segurança.
“Nós não iríamos ocupar essa fazenda, mas começaram a atiçar o pessoal com esse programa fundiário. E aí resolvemos reagir, nos manifestar, para não perder esse território, que está dentro da nossa terra”, continuou.
Num vídeo gravado pelos próprios indígenas no momento do despejo e postado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), é possível ouvir o som de bombas e escutar os policiais mandando os indígenas irem “para trás da cerca”, em meio a gritos de mulheres e crianças. “Nós somos humanos também, que nem vocês”, grita uma Guarani Kaiowá na gravação, antes de alertar seus familiares: “cuidado com a bomba!”.
Segundo as lideranças, pelo menos três indígenas foram atingidos por disparos de balas de borracha, no joelho, nádegas e barriga. Idosos também passaram mal em decorrência do gás lacrimogêneo.
“Não foi de fato um cumprimento de uma ordem de reintegração de posse. Foi o Estado tomando partido a favor de um particular, no caso o proprietário rural, e em desfavor da comunidade indígena, que tem uma pauta legítima, reivindicando a demarcação de um território”, afirmam.
AÇÃO ILEGAL
Na avaliação do assessor jurídico do Cimi Regional Mato Grosso do Sul, Anderson Santos, o despejo foi realizado sem respaldo legal, e repete outras ações extrajudiciais já ocorridas no estado, como o despejo contra o povo Kinikinau, em 2019.
“A exemplo do que aconteceu também com os Kinikinau, não foi de fato um cumprimento de uma ordem de reintegração de posse. Foi o Estado tomando partido a favor de um particular, no caso o proprietário rural, e em desfavor da comunidade indígena, que tem uma pauta legítima, reivindicando a demarcação de um território”, explica o assessor jurídico.
“Então, não há qualquer tipo de legalidade. O que há é que o estado do Mato Grosso do Sul está alinhado com a pauta ruralista de defender o particular em detrimento da lei. Não há uma orientação legal para isso, simplesmente é uma posição política que a Polícia Militar tem tomado – inclusive, substituindo e burlando a competência que seria da Justiça Federal”, analisa.
Após a truculenta ação policial, os indígenas recuaram até as áreas anteriormente ocupadas pela comunidade, na propriedade vizinha à fazenda Inho.
“Depois dos tiros, conversamos com o pessoal da Funai. Fizemos um acordo para que o relatório do Laranjeira volte a ter andamento, para que tenhamos liberdade total onde estamos vivendo, sem que o fazendeiro nos cerque e nos monitore, e pedimos que ele seja processado”, relata uma das lideranças do tekoha.
Os indígenas afirmam que não abrem mão do território de Laranjeira Nhanderu, por cuja demarcação aguardam há quase duas décadas, e não aceitarão o assentamento na área. Segundo o próprio manual de operações do Programa Nacional de Crédito Fundiário, para que um imóvel seja passível de aquisição para projetos de assentamento, ele não pode estar “localizado em áreas declaradas ou de pretensão indígena”.
“A polícia e a Funai nos garantiram que, se o pessoal do assentamento entrar lá, eles também vão ser despejados”, afirma a liderança indígena. “Foram eles que começaram a provocar a gente. Nós não iríamos ocupar essa fazenda, mas começaram a atiçar o pessoal com esse programa fundiário. E aí resolvemos reagir, nos manifestar, para não perder esse território, que está dentro da nossa terra”.