CARLOS LOPES
Em 1891, considerando as perspectivas dos socialistas chegarem ao poder na Alemanha, Friedrich Engels escreveu a August Bebel:
“Se isso não ocorrer, a velha sociedade burguesa poderá seguir vegetando por um tempo, sempre que um empurrão de fora não derrube o combalido e velho edifício. Uma envoltura velha e podre como esta pode sobreviver durante algumas décadas à sua morte interna…” (cf. Engels, Carta a Bebel, 24/10/1891, in “Carlos Marx/Federico Engels – Correspondência”, Editorial Cartago, Buenos Aires, 1973, p. 393).
A expressão de Engels é bastante precisa: “uma envoltura velha e podre como esta pode sobreviver durante algumas décadas à sua morte interna” (grifo nosso).
Pode-se dizer que o capitalismo monopolista – que, quando Engels escreveu esta carta, estava em fase final de consolidação do seu domínio na Alemanha, EUA, e demais países centrais – é a “morte interna” do capitalismo.
Qual o sentido de falar-se em “morte interna” do capitalismo nos países capitalistas centrais?
Aquele frisado por Marx – que falecera em 1883 – alguns anos antes:
“[o monopólio capitalista] É a negação do modo capitalista de produção dentro dele mesmo, por conseguinte uma contradição que se elimina a si mesma, e logo se evidencia que é fase de transição para nova forma de produção. Esta fase assume assim aspecto contraditório. Estabelece o monopólio em certos ramos, provocando a intervenção do Estado. Reproduz nova aristocracia financeira, nova espécie de parasitas, na figura de projetadores, fundadores e diretores puramente nominais; um sistema completo de especulação e embuste no tocante à incorporação de sociedades, lançamento e comércio de ações” (cf. Karl Marx, “O Capital”, Livro 3, vol. 5, trad. Reginaldo Sant’Anna, 1ª ed., Civ. Bras., p. 507, grifo nosso).
Este trecho de Marx vem logo após a observação de que “uma vez que o lucro aí assume a pura forma de juro, tais empresas ainda são possíveis quando rendem juros apenas, e esta é uma das causas que freiam a queda da taxa geral de lucro, pois essas empresas, onde é enorme o capital constante em relação ao variável, não entram necessariamente no nivelamento da taxa geral do lucro” (idem, grifo nosso).
[NOTA: Marx chama capital constante à “parte do capital que se converte em meios de produção, isto é, em matérias-primas, materiais acessórios e meios de trabalho, [que] não muda a magnitude do seu valor no processo de produção”; e capital variável à “parte do capital convertida em força de trabalho, [que] muda de valor no processo de produção. Reproduz o próprio equivalente [de seu valor], e, além disso, proporciona um excedente, a mais-valia, que pode variar, ser maior ou menor”.]
É inevitável, portanto, que o monopólio capitalista seja um monopólio financeiro. Posteriormente, Hilferding (1910) e Lenin (1916) iriam definir o capital financeiro como a fusão do capital bancário e do capital industrial, sob a hegemonia do primeiro (cf. Rudolf Hilferding, “El Capital Financiero”, Tecnos, Madrid, 1973, pp. 201 e segs.; e V.I. Lenin, “O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo”, in Obras Escolhidas em Seis Tomos, Edições Progresso, Moscou, 1984, pp. 328 e segs.).
ANOTAÇÃO
No entanto, quando Marx escreveu as palavras que citamos, o capitalismo monopolista, o capitalismo financeiro, não existia ainda; no máximo, havia a especulação sob o II Império francês, o parasitismo especulativo na Holanda e seu crescente papel na economia inglesa.
Marx, portanto, fazia uma dedução teórica (aliás, de uma acuidade, de uma precisão científica impressionante, pois seria confirmada inteiramente pelos anos que se seguiram).
É essa confirmação pela prática que faz com que Engels acrescente – ao publicar, em 1894, o terceiro livro da principal obra teórica de Marx – uma longa nota no próprio texto do Livro 3 de “O Capital”. Algo bastante incomum, pois, geralmente, Engels utilizava as notas de pé de página para as suas observações, evitando interrupções do texto de Marx.
Mas esta “interrupção” é realmente justificada, pois torna mais preciso o texto teórico de Marx, ao lançar sobre ele a luz da prática posterior. O capitalismo se transformara, ou degenerara, exatamente no sentido apontado por Marx. Portanto, o acréscimo de Engels não é uma interrupção. Esta nota, com a assinatura “F.E.” [Friedrich Engels], é a seguinte:
“Depois de Marx ter escrito as linhas acima, desenvolveram-se, como é notório, novas formas de empresas industriais em que a sociedade por ações se eleva à segunda ou à terceira potência. A rapidez cada dia maior com que se pode atualmente aumentar a produção em todos os grandes domínios industriais se depara com a lentidão sempre acrescida com que se expande o mercado para essa produção ampliada. O que aquela fornece em meses, leva este anos para absorver. E acresce que cada país industrial, com a política de proteção aduaneira, se isola dos demais e notadamente da Inglaterra, ainda aumentando de modo artificial a capacidade interna de produção. As consequências são superprodução crônica geral, preços deprimidos, lucros em baixa ou mesmo desaparecendo por completo; em suma, a liberdade de concorrência, essa veneranda celebridade, já esgotou seus recursos, cabendo a ela mesma anunciar sua manifesta e escandalosa falência. É o que evidencia o fato de se associarem, em cada país, os grandes industriais de determinado ramo para constituir cartel, destinado a regular a produção. Uma junta estabelece a quantidade a produzir por cada estabelecimento e em última instância reparte as encomendas ou pedidos apresentados. Em certos casos formaram-se temporariamente cartéis internacionais, como o anglo-teuto de produção siderúrgica. Mas, essa forma de associação entre empresas produtoras ainda não era adequada. O choque de interesses das diversas empresas violava-a com demasiada frequência e acabava restabelecendo a concorrência. Assim chegou-se, em certos ramos em que o nível da produção o permitia, a concentrar a produção toda do ramo industrial em uma grande sociedade por ações com direção única. É o que já aconteceu, várias vezes, na América, e na Europa o maior exemplo até agora é a United Alkali Trust, que pôs nas mãos de uma única firma toda a produção britânica de álcali. Os antigos proprietários das diversas empresas — mais de trinta — receberam em ações o valor estimado dos seus investimentos, ao todo cerca de 5 milhões de libras que constituem o capital fixo do truste. A direção técnica continua nas mesmas mãos, mas o comando comercial está nas mãos da direção geral. O capital de giro (floating capital) no montante aproximado de um milhão de libras esterlinas foi oferecido à subscrição pública. O capital todo atinge portanto 6 milhões de libras. Assim, nesse ramo que constitui a base de toda a indústria química, o monopólio na Inglaterra substitui a concorrência e prepara de maneira alentadora a futura expropriação pela sociedade toda, pela nação” (cf. “O Capital”, Livro 3, ed. cit., pp. 506-507, grifos nossos).
Aqui, cabe a observação de que, em um texto tão longínquo – ou tão precoce – quanto “Miséria da Filosofia”, de 1847, Marx já considerava inevitável que a “livre concorrência” levasse ao monopólio capitalista.
NEGAÇÃO
Este é, brevemente, o substrato econômico do que Engels, em sua carta a Bebel, chamou de “morte interna” do capitalismo.
Bem entendido, ele estava se referindo ao países centrais – Alemanha, Inglaterra, França, EUA. Mas o fato de, em vários países, o problema ser, ainda, de insuficiência do desenvolvimento capitalista, não modifica o fato (pelo contrário, torna-o mais agudamente perceptível) de que o capitalismo monopolista “é a negação do modo capitalista de produção dentro dele mesmo, por conseguinte uma contradição que se elimina a si mesma”.
A consequência superestrutural (ou seja, no nível ideológico) é a negação, também, da ideologia anterior do capitalismo, inclusive de sua celebrada ética.
A um modo de produção que morreu internamente, corresponde uma ética morta – ou a morte da ética.
Porém, antes que sejamos acusados de transferir mecanicamente o que pertence à instância econômica para a instância ideológica, vejamos as contradições que essa degeneração do capitalismo acarreta.
Aliás, nos limitemos a uma delas, no plano ideal.
A ideologia anterior não deixa de existir, não é apagada da cabeça das pessoas, porque não corresponde mais à base econômica, porque esta se tornou a negação da anterior.
Pelo contrário, o que acontece é o conflito dessa ideologia anterior – isto é, das pessoas que pensam nos marcos ou dentro do horizonte dessas ideias anteriores – com sua negação, proveniente da alteração da base econômica.
Assim é, por exemplo, o choque, dentro da mesma sociedade, entre aqueles que acreditam em valores como honra, honestidade, dedicação à coletividade, à causa pública – ao país, ao povo, à Humanidade – e aqueles que afundaram no esterco ideológico monopolista e financeiro, e que, portanto, acreditam tão-somente no dinheiro, ou seja, em nada além da sua própria ganância. Na verdade, nem em si mesmos eles acreditam.
Porém, cabe aqui a pergunta: o fato dessa ideologia ser anterior, a transforma em uma ideologia reacionária?
Não é uma questão apenas teórica. Afinal, é disso que nos querem convencer todos os fariseus da praça, a começar pelos do PT, ao igualar a indignação atual contra a corrupção ao lacerdismo das décadas de 50 e 60 do século passado.
No entanto, o lacerdismo – arremedo de ideologia reacionária, fascista, entreguista, antinacional e antipopular – combatia uma corrupção que não existia, que era inventada, ou fantasiada, pelos próprios lacerdistas (com bastante ajuda da mídia norte-americana, para dizer o mínimo).
Mais de 60 anos depois das acusações do lacerdismo aos nacionalistas, que corrupção ficou comprovada?
Mesmo com 21 anos de uma ditadura que vasculhou a vida e os negócios dos líderes populares daquela época, com uma rara vontade de encontrar alguma coisa de errado, nenhuma.
Nunca houve, entre os líderes nacionalistas, nem um triplex do Guarujá nem um sítio de Atibaia.
Getúlio Vargas saiu da Presidência, em 1945, para viver na casa do irmão, onde seu hábito de fumar charutos criou alguns problemas com a cunhada – e esse homem fora presidente por 15 anos!
João Goulart desmoralizou a ditadura, quando esta, seguindo a revista norte-americana Time, tentou atingir a sua honra. Jango demonstrou publicamente que a corrupção apontada, tinha como depósito a cabeça de seus acusadores (cf. Jorge Ferreira, “João Goulart”, 2ª ed., Civ. Bras., 2011, pp. 553 e segs).
Quanto a Juscelino Kubitschek, com quem os lulistas insistentemente comparam Lula – devido às acusações lacerdistas em relação a um apartamento -, há somente um problema nessa comparação: o inquérito da ditadura, realizado por ferozes inimigos de JK, não conseguiu obter uma única prova das acusações lacerdistas, o que foi reconhecido por um homem que o odiava quase alucinadamente, a ponto de, até o final da vida, continuar repetindo as mesmas calúnias: Ernesto Geisel (v. suas entrevistas ao CPDOC/FGV, “Ernesto Geisel“, orgs. Maria Celina D’Araujo e Celso Castro, 1997).
O que é completamente diferente daquela miríade de provas citadas, sobre Lula, pelos procuradores da República, pelo juiz Sérgio Fernando Moro – e, claro, pela Polícia Federal – no caso do triplex do Guarujá, para ficarmos apenas no caso pelo qual ele já foi condenado.
Ao contrário daquela inventada pelo lacerdismo, a corrupção atual, somente em ressarcimento dos condenados por receber propina, já recuperou, através da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba, R$ 3.956.900.000 (três bilhões, 956 milhões e 900 mil reais).
Ao todo, já foi provado o recebimento de propinas no valor total de R$ 6,4 bilhões (valor sem correção monetária).
O pedido total, até agora, de ressarcimento do sobrepreço e superfaturamento para assaltar a Petrobrás, monta a R$ 38,1 bilhões.
Ao que se pode acrescentar um roubo de mais R$ 2,34 bilhões, também já provados, na 7ª Vara Criminal Federal do Rio de Janeiro – já ressarcidos R$ 452,2 milhões.
E isso não é tudo – apenas o que se conseguiu, até agora, provar.
FASE
A ideia de que a honradez, a honestidade, são valores antigos e superados é, evidentemente, uma crença somente possível a corruptores, corruptos e corrompidos.
Mas é evidente que essa negação da ética é central no neoliberalismo – ou seja, no capitalismo monopolista da atualidade.
Para essa ideologia de celerados, ganhar dinheiro – e acumulá-lo esterilmente, sem nenhum investimento produtivo – sobrepõe-se a qualquer valor humano, a começar pela vida dos outros seres humanos, e, claro, pela honradez.
É a essa infâmia – não achamos outra palavra – que o PT e outras tendências, antes consideradas progressistas ou “de esquerda”, na América Latina e no mundo, se dobraram.
Alguns de seus membros – não poucos – tornaram-se, até mesmo, indistinguíveis, quanto ao cérebro, dos picaretas que abundam em Wall Street e outras zonas do meretrício financeiro.
Vale a advertência de Marx sobre momentos de decadência do capitalismo: “Existem mesmo fases da vida econômica dos povos modernos onde todo mundo é tomado de uma espécie de vertigem para fazer lucros sem produzir” (cf. Karl Marx, “Misère de la Philosophie”, V. Giard & E. Brière, Paris, 1908, p. 209).
A novidade, hoje em dia, é que essa “fase” não acomete um país (por exemplo, a Holanda, depois do século XVII), mas o conjunto dos países centrais – com sua sombra espraiando-se sobre os países da periferia.
PRINCÍPIO
Ainda sobre a suposta “superação” da ética burguesa, lembremos algo que se sabe há muito – mas que todos os renegados sempre fazem questão de esquecer.
Quanto ao Direito, o socialismo realiza (torna real) aquilo que, no Direito burguês, é formal.
Vejamos um princípio elementar: o da igualdade de todos os cidadãos perante a lei.
Escrevendo, já no fim de sua vida, no início do século XX, Anatole France, na época o escritor mais famoso da França, pontuou: “A democracia é o regime que permite tanto ao pobre quanto ao rico mendigar e viver debaixo das pontes”.
Realmente, a igualdade perante a lei em uma sociedade onde existem tremendas disparidades de renda e propriedade – ou seja, onde existem os muito ricos e os muito pobres – é um engodo, ou, no mínimo, encontra terríveis limitações.
Essa, por sinal (e não por acaso), é a discussão e a luta de fundo nas decisões do atual Supremo Tribunal Federal (STF), em torno da impunidade ou punição dos corruptos revelados pela Operação Lava Jato.
Mas o fato de existirem essas limitações para a aplicação do princípio segundo o qual todos são iguais perante a lei, não quer dizer que ele esteja errado. Pelo contrário, significa que, nesse plano, a luta do povo e do país é para que esse princípio se realize – ou seja, se torne real, deixando de ser apenas, ou na maior parte, formal.
Do fato de que a realização completa deste princípio somente será possível em outra sociedade, não se depreende que, na atual sociedade, devamos desistir dele – sobretudo quando é afrontado, diretamente, por uma oligarquia política podre e por uma plutocracia tão apodrecida quanto.
No entanto, nos últimos tempos (publicamente, pelo menos desde 2014), apareceram aqueles que pregam que a corrupção é um problema “secundário”, não é nenhum grande mal, não é nada de mais – pois, afinal, faz parte do capitalismo.
Seria utopia, ou mesmo demagogia, querer acabar com a corrupção, considerando que ela é intrínseca ao sistema.
É, por exemplo, o ponto de vista de Lula, ao dizer que os procuradores da Operação Lava Jato não sabem como se faz “política”.
Outros, um pouco mais sofisticados (Deus!), dizem que somente em outro “sistema” – em outra sociedade – seria possível acabar com esse mal. Portanto, não adianta combater a corrupção agora, quando ainda estamos em uma sociedade na qual uma é inerente à outra.
Há vários matizes com que se apresenta esse profundo raciocínio filosófico. Aqui, levamos sua lógica até às últimas consequências. Certamente, os que não levam até aí a sua argumentação, é porque percebem que a sociedade, mesmo a atual, não corresponde à sua premissa: a de que todos são corruptos no capitalismo, o que não é verdade nem entre os capitalistas.
Mas há duas coisas muito interessantes nesse despudor.
A primeira é que, se considerássemos que a corrupção é intrínseca ao capitalismo, essa seria uma suprema razão para combatê-la, para punir os corruptos. Não para desistir de combatê-la ou aderir à corrupção.
Como teríamos uma outra sociedade, em que seria possível acabar com a corrupção, se, na atual sociedade, preferimos nos conformar com ela – e até aderir a ela?
Eis uma questão análoga à do histórico debate sobre a luta pelas liberdades democráticas: como seria possível, no futuro, sobre outra base econômica, edificar uma democracia real, se hoje desistimos de lutar pela democracia nos marcos da sociedade que existe atualmente?
É óbvio que isso faria impossível – exceto por milagre – essa sociedade futura.
Abordando a mesma questão do ponto de vista subjetivo (ou seja, sob o ângulo dos sujeitos envolvidos): nunca se ouviu falar que o conformismo – a submissão, o servilismo – fosse uma ideologia revolucionária ou progressista. Bajular o status quo não é a melhor forma de mudá-lo…
A segunda coisa interessante nessa “argumentação”, é que esses atuais apologistas da normalidade da corrupção, são os mesmos que, durante mais de duas décadas – da reforma partidária de Golbery até a primeira posse de Lula –, mantiveram uma posição lacerdista, voltada, fundamentalmente, primeiro, contra os que se opunham à ditadura; depois, contra os que resistiam, ainda que de modo não completamente consciente, à instalação do neoliberalismo no Brasil.
Não queríamos lembrar disso, mas… não foi a “direita” que solicitou, com base nas declarações de um assassino, de um uxoricida, a famosa CPI do Orçamento – que livrou Pedro Parente e Geddel, mas cassou Ibsen Pinheiro e outros, fazendo a terraplenagem para que Fernando Henrique e os tucanos passassem pela estrada.
E esse é apenas um episódio do neo-lacerdismo.
Vejamos, então, sob outro ângulo, o do Direito e das ações dos profissionais do Direito, o papel da ética – da ética burguesa, da ética capitalista, para usar uma expressão de Max Weber – no mundo atual, sobretudo no Brasil atual.
(CONTINUA)