Alimentos industrializados e congelados e fora do costume dos indígenas foram comprados pela gestão Bolsonaro de empresas a mais de mil quilômetros de distância e nunca foram entregues
Entre 2020 e 2022, o governo Bolsonaro (PL) comprou 19 toneladas de bisteca de porco para compor cestas básicas que deveriam ser enviadas ao Vale do Javari, no Alto Solimões (AM), mas a carne congelada nunca chegou às comunidades indígenas. Mesmo se o produto tivesse sido entregue, não haveria local de armazenamento e conservação para acomodar o alimento.
A bisteca seria dividida com os funcionários da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI). Como os indígenas dizem que não receberam o alimento, se fossem comer tudo, os 32 servidores que se revezam por lá teriam um quilo de bisteca no prato por dia, o ano inteiro. Isso sem contar que a maioria passa a maior parte do tempo na floresta ao lado dos indígenas, bem longe da base da Funai.
Os contratos foram assinados pela gestão bolsonarista em 2020. As informações foram divulgadas pelo jornal ‘O Estado de São Paulo’.
O sumiço das bistecas foi confirmado pelos indígenas que deveriam receber o produto e por um comerciante que deveria enviá-lo. A funcionária da Funai que assinou o contrato de compra fala em desperdício de dinheiro público, mas alega que seguia ordens de seus superiores.
“Nem tudo que constitui a cesta básica contempla uma alimentação específica desses indígenas. Era um desperdício, realmente, do dinheiro público”, admitiu Mislene Metchacuna Martins Mendes, diretora de administração e gestão da Funai. “Parte dos alimentos chegava sem condições para consumo, mas a ordem era entregar”, disse ela.
As cestas que efetivamente chegaram para os 13.330 marubos, matises, kanamaris e korubos continham apenas produtos secos, como arroz, farinha e sabão. Os contratos no valor de R$ 568,5 mil foram assinados pela Funai.
O Vale do Javari, região em especial que os alimentos teriam que ser destinados, é uma das regiões mais isoladas do mundo. Do tamanho do Estado de Santa Catarina, o território indígena tem 8,5 milhões de hectares e é o segundo maior em extensão do País. A área concentra o maior número de povos de língua e tradições desconhecidas. Foi num dos rios que cortam a região que ocorreram os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, em junho do ano passado.
Após selecionar as empresas para fornecer a carne no Vale do Javari, o governo efetuou pagamentos que somaram R$ 13,4 mil para a compra de meia tonelada de bistecas. Duas empresas que ganharam as licitações ficam em Manaus (AM), a mais de 1 mil quilômetros das cidades que dão acesso ao território indígena.
A principal organização indígena do Vale do Javari questiona o paradeiro das bistecas. “Nós não recebemos alimentação. Fazer a aquisição e enviar para a aldeia não existe”, afirmou o coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Bushe Matis.
A presidente da FUNAI, Joenia Wapichana, mandou apurar a compra de 19 toneladas de bisteca que não foram entregues para indígenas do Vale do Javari. O sumiço da carne virou um dos assuntos comentados nas redes sociais. A pergunta “Cadê a bisteca?” viralizou entre os internautas e representantes de entidades do setor.
Joenia acionou a área técnica do órgão para apurar o que aconteceu com a bisteca. “Eu vou apurar as informações, pois se trata de atos da gestão anterior e para tanto preciso que se apure junto aos departamentos competentes internos na Funai”, afirmou Joenia.
SARDINHA ENLATADA E LINGUIÇA
O governo Jair Bolsonaro pagou R$ 4,4 milhões para enviar ao Território Yanomami alimentos que não são consumidos pelos indígenas, durante uma crise humanitária. Desprezando recomendação técnica, a Funai assinou o contrato milionário para comprar cestas básicas contendo sardinha e linguiça calabresa. O peixe enlatado e o embutido não fazem parte da dieta local. Também não há registros de que os produtos foram entregues integralmente.
A área técnica já havia alertado o governo e o Ministério Público a respeito dos hábitos alimentares dos indígenas.
“Os yanomamis não comem sardinha, nem calabresa”, informou a coordenadora da Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami, Elayne Rodrigues Maciel, responsável pelo órgão da Funai com atribuição exclusiva sobre a Terra Indígena Yanomami, em depoimento ao MP.
Na ação que ouviu a servidora, de 2021, o MP pediu a condenação da União para considerar estudos antropológicos e nutricionais na composição das cestas. A Justiça acatou o pedido.
A reportagem do portal em questão informou que, mesmo depois da condenação, o governo Bolsonaro não só voltou a adquirir os alimentos como assinou a maior compra já realizada para a terra indígena de linguiça e sardinha em lata.
A empresa contratada para vender ao governo linguiça e sardinha enlatada foi aberta em 2020, apenas dois meses antes da assinatura do primeiro contrato. Com sede em Boa Vista, a H. S. Neves Junior rapidamente se tornou a campeã nacional em vendas sem licitação para a Funai na gestão Bolsonaro.
Helvercio Sevalho Neves Junior, de 26 anos, se apresenta como dono da empresa. Em janeiro de 2023, três anos depois de abrir a firma, ele teve que devolver R$ 3 mil para a União de auxílio emergencial que solicitou indevidamente durante a pandemia da covid-19.
O benefício foi criado para atender pessoas desempregadas e trabalhadores informais, que ficaram sem renda e precisavam ficar em casa. Com uma empresa faturando milhões do governo, ele recebeu o pagamento de forma irregular.
Na Receita Federal, a firma de Helvercio declara que vende carne, automóveis, roupas e bicicletas. Em dois anos, a empresa se especializou em contratos com as Forças Armadas e com o governo de Roraima. Sob a gestão de Antonio Denarium (PP), o Estado fechou contratos de R$ 188 milhões com a H. S. Neves Junior. As Forças Armadas, por sua vez, acertaram compras que, somadas, totalizam R$ 586 mil.
Entre todos os territórios indígenas do País, a Terra Yanomami foi onde o governo federal mais despendeu recursos, ao longo de quatro anos, para comprar alimentos. Os gastos chegaram a R$ 7,8 milhões.
Mesmo assim, centenas de crianças indígenas morreram, vítimas de desnutrição. Imagens da tragédia circularam pelo mundo, fazendo o governo Lula decretar emergência em saúde pública, no dia 20 de janeiro, “diante da necessidade de combate à desassistência sanitária dos povos que vivem no território yanomami”.
Líderes yanomamis apontam o desperdício de dinheiro com cestas básicas não consumidas, enquanto demandas urgentes por atendimento médico, socorro a crianças desnutridas e expulsão de garimpeiros ilegais na região não eram atendidas.
“Os yanomamis não comem sardinha, não comem calabresa. Então, eles realmente jogavam fora, porque isso não é suficiente. Isso não mata a fome”, afirmou o vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, Dário Kopenawa, representante das comunidades que vivem no território.
Os indígenas relatam que as cestas básicas “caíam do céu”, trazidas por aviões, e vários alimentos estragavam assim que chegavam ao chão. A sardinha e a calabresa que sobravam, por outro lado, não eram consumidas e acabavam no lixo. “Não nos consultaram sobre o envio desses alimentos. Foi uma grande surpresa para nós. Nosso objetivo era combater as doenças e expulsar os invasores”, disse Kopenawa.
Consumir alimentos que não fazem parte da cultura tradicional pode comprometer ainda mais a saúde dos yanomamis. Para o MP, alimentos como sardinha e calabresa “podem gerar doenças e hábitos alimentares ruins, que comprometem a aceitação dos alimentos saudáveis e tradicionais produzidos localmente.”