
As manifestações contra a reforma do sistema de previdência social na Nicarágua têm desatado uma brutal repressão por parte do governo de Daniel Ortega e de sua esposa e vice-presidenta, Rosario Murillo. O mal-estar social não é novo, alguns consideram que os protestos contra a construção do canal interoceânico, em 2014, geraram o movimento camponês mais forte dos últimos vinte anos. Mas o antecedente imediato das manifestações que se iniciaram em 18 de abril foi o incêndio na Reserva Biológica Indio Maíz no início daquele mês.
O governo teria feito caso omisso das vozes de alerta de ambientalistas que lhe exigiam tomar medidas imediatas para deter o incêndio numa das reservas biológicas mais importantes da América Central.
Apesar da repressão, esses protestos não foram desativados e, poucos dias mais tarde, os manifestantes voltaram às ruas. Desde esse dia, a ação repressiva do Estado produziu centenas de mortos e desaparecidos e milhares de feridos.
O que desencadeou essa onda de violência? A versão oficial a encontramos na entrevista de Daniel Ortega na cadeia Telesur, no dia 24 de julho. Para Ortega, a reforma do sistema de previdência social é só um dos vários elementos que desencadearam os protestos. A raiz do problema, segundo ele, é o intervencionismo norte-americano que, através da ‘Nica Act’ —uma lei que condiciona os empréstimos de organismos financeiros internacionais à Nicarágua —, dividiu o setor empresarial com quem Ortega havia estabelecido uma aliança e fortaleceu os grupos paramilitares.
Porém, nos últimos dias, intelectuais e líderes de esquerda, entre eles Noam Chomsky, Boaventura de Sousa Santos, José Mujica e Leonardo Boff, criticaram a versão oficial e exigem a Ortega que detenha a repressão, desarme as forças paramilitares, adiante as eleições e se afaste do poder.
Considero que, embora seja verdade que a ingerência dos Estados Unidos nos assuntos de outros países —em particular os latino-americanos— não pode ser subestimada, não é possível que a esquerda continue se escondendo na ‘geopolítica’ para desconhecer ou minimizar seus próprios erros.
Além do que, o governo de Ortega deixou de ser de esquerda há muitos anos. Sem ignorar a cruenta luta dos contras financiada pelos Estados Unidos para derrocar a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), não pode se passar ao largo das transformações desta força política desde o triunfo da revolução até hoje. Dizer que o governo de Ortega é a continuação natural da revolução sandinista de 1979, é desconhecer as voltas que a FSLN tem dado ao longo destes últimos 39 anos.
Quais foram algumas destas voltas? Depois de onze anos no poder, os sandinistas perderam as eleições em 1990. Entre 1990 e 2007 sucederam-se três governos: o de Violeta Barrios de Chamorro (1990-1997), o de Arnoldo Alemán (1997-2002) e o de Enrique Bolaños (2002-2007). Embora Ortega só tenha voltado a ganhar as eleições em 2007, desde 1997 tem co-governado o país através de um pacto com Alemán, chefe do Partido Liberal Constitucionalista. Por este pacto se reformou a Constituição para que estas duas forças políticas pudessem distribuir-se os cargos de quase todas as instituições do Estado. Outra das reformas foi a de reduzir para 35% a porcentagem mínima para ganhar as eleições e evitar o segundo turno eleitoral, o que permitiu a Ortega voltar à presidência em 2007. Também, graças a este pacto, e amparado em sua imunidade parlamentar, Ortega soube se esquivar das acusações de violação e abuso sexual de sua filha adotiva Zoilamérica Narváez.
Ortega decidiu ainda se aproximar do setor mais conservador da Igreja católica com o objetivo de atrair os votos da classe média conservadora nas eleições de 2007. Para isso, a FSLN mudou sua postura em relação ao aborto terapêutico. No código penal, o único aborto aceito era aquele no qual a vida da mulher encontrava-se em risco, e a FSLN permitiu sua abolição para se congraçar com a Igreja.
Pactos com a direita corrupta, reformas da Constituição para perpetuar-se no poder, nepotismo, penalização do aborto terapêutico, controle de todas os setores do poder público: pode-se dizer que o governo de Ortega é de esquerda? Não, Ortega soube capitalizar a memória e os símbolos da revolução sandinista para permanecer no poder e enriquecer.
O derramamento de sangue na Nicarágua deve ser condenado por todos, sem que importe a ideologia. E a direita colombiana que exige que a esquerda condene a Daniel Ortega pela repressão deve saber que o mais parecido com Ortega na Colômbia é o também ‘presidente eterno’ Álvaro Uribe Vélez, pois o autoritarismo e a falta de ética não são propriedade exclusiva de uma única força política.
* Jornalista italocolombiana, com mestrado em Sociologia da Universidade de São Paulo. Especialista no estudo do conflito armado colombiano e nos processos de paz