Entidades e especialistas da Educação brasileira publicaram uma nota sobre a proposta de Reforma do Ensino Médio enviada ao Congresso pelo governo Lula sugerindo alterações importantes no projeto conhecido como “Novo Ensino Médio”, instituído pelos governo de Temer e Bolsonaro.
O projeto de Lei 2.601/23, protocolado pelo governo Lula em outubro deste ano, levantou o debate entre pesquisadores e organizações defensoras da Educação. A carta reconhece que “o PL n. 2.601/23, o governo Lula propõe a retomada das 2.400 horas de Formação Geral Básica (FGB), garantindo ao menos quatro horas diárias de formação científica, artística, cultural e humana aos/às estudantes da etapa terminativa da educação básica. Com a Reforma, vale frisar, esta carga horária foi reduzida para parcas três horas diárias”.
Os pesquisadores e entidades defensoras da educação apontam que ainda assim, “o PL do governo Lula é impreciso em relação a um aspecto central: ainda que o MEC e a imprensa tenham noticiado que o PL n. 5.230/23 pretende extinguir os itinerários formativos, uma leitura menos apressada do texto revela que a decisão por acabar com os itinerários, na verdade, ficará a cargo das redes estaduais de ensino”.
A carta ainda aponta que não é afirmado no projeto do governo Lula a “obrigatoriedade” para além do ensino de Língua Portuguesa e Matemática, o que poderia consolidar uma unidade nacional para o currículo do ensino médio. A implementação da Lei n. 13.415/17 evidenciou um acentuado desequilíbrio da carga horária entre componentes curriculares
Veja a íntegra da nota abaixo:
NOTA TÉCNICA SOBRE O PL N. 5.230/2023
O presidente Lula encaminhou ao Congresso Nacional o PL n. 5.230/23, que altera alguns elementos da Lei n. 13.415/17 (Novo Ensino Médio). Em alguns pontos, o texto elaborado pelo Ministério da Educação (MEC) dialoga com o texto do PL n. 2.601/23, protocolado na Câmara dos Deputados em maio de 2023 e concebido por pesquisadores e ativistas historicamente dedicados ao direito à educação e ao Ensino Médio de qualidade.
Em um importante gesto em direção ao conteúdo do PL n. 2.601/23, o governo Lula propõe a retomada das 2.400 horas de Formação Geral Básica (FGB), garantindo ao menos quatro horas diárias de formação científica, artística, cultural e humana aos/às estudantes da etapa terminativa da educação básica. Com a Reforma, vale frisar, esta carga horária foi reduzida para parcas três horas diárias. Meses atrás, a coalizão empresarial Todos pela Educação, apoiadora de primeira hora da Reforma do Ensino Médio de 2017, defendia apenas 3,5 horas letivas diárias de formação básica aos/às estudantes. O mesmo rebaixamento curricular foi indicado pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed).
A despeito desta vitória importante do direito à educação, o PL do governo Lula é impreciso em relação a um aspecto central: ainda que o MEC e a imprensa tenham noticiado que o PL n. 5.230/23 pretende extinguir os itinerários formativos, uma leitura menos apressada do texto revela que a decisão por acabar com os itinerários, na verdade, ficará a cargo das redes estaduais de ensino.
A rigor, o MEC propõe apenas uma alteração de nomenclatura: no PL, a flexibilização curricular (itinerários) passa a ser denominada “percursos de aprofundamento e integração de estudos”, o que significa, de modo geral, manter a lógica dos itinerários e delegar o imenso desafio de articular esses dois momentos formativos (Formação Geral Básica + Percursos de Aprofundamento) às redes estaduais. Cumpre observar que os graves problemas de implementação da Reforma do Ensino Médio, identificados nos últimos anos nas redes estaduais demonstraram, cabalmente, a inexequibilidade da lógica curricular da Lei n. 13.415/17 que o PL n. 5.230/23 tenciona manter. Mais adequado seria excluir qualquer definição sobre a parte diversificada do currículo, sejam itinerários ou percursos, como já constava na Lei de Diretrizes e Bases da Educação em sua redação original.
De todo modo, a carga horária destinada à FGB passa de um teto de 1.800 horas (Lei n. 13.415/17) para 2.400 horas letivas totais (PL n. 5.230/23 e PL n. 2.601/23), obrigatoriamente presenciais. Contudo, o PL do governo Lula prevê uma exceção para cursos técnicos de tempo parcial, nos quais a FGB poderia ser reduzida a 2.100 horas letivas totais.
O PL também prevê quatro áreas de conhecimento e 13 componentes curriculares: Língua Portuguesa e suas Literaturas; Língua Inglesa; Língua Espanhola; Arte, em suas múltiplas linguagens e expressões; Educação Física; Matemática; História, Geografia, Sociologia e Filosofia; e Física, Química e Biologia.
Sobre a inclusão ampla dos componentes curriculares, o avanço poderia ser ainda maior. Não é afirmada a “obrigatoriedade” para além do ensino de Língua Portuguesa e Matemática, o que poderia consolidar uma unidade nacional para o currículo do ensino médio. A implementação da Lei n. 13.415/17 evidenciou um acentuado desequilíbrio da carga horária entre componentes curriculares. Por essa razão, é fundamental deixar explicitado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação a necessidade de maior equilíbrio entre disciplinas e áreas do conhecimento, assegurando, inclusive, sua presença ao longo de todos os anos do Ensino Médio.
A vinculação obrigatória à BNCC, um dos grandes equívocos da Lei n. 13.415/17, é reiterada no PL n. 5.230/23. Como todo documento de currículo, que necessita de revisão e atualização regulares, a BNCC é objeto provisório e distinto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, cujos dispositivos (de alteração mais difícil) conferem segurança normativa às reformas educacionais.
Observa-se ainda, no PL n. 5.230/23, formas distintas de indicação dos componentes curriculares, alguns deles agrupados em um mesmo inciso, por exemplo:
I – língua portuguesa e suas literaturas;
II – língua inglesa;
III – língua espanhola;
IV – arte, em suas múltiplas linguagens e expressões;
V – educação física;
VI – matemática;
VII – história, geografia, sociologia e filosofia; e
VIII – física, química e biologia.
Considera-se mais indicado que os componentes curriculares sejam listados um a um, em ordem alfabética, de modo a não pressupor uma hierarquização entre componentes, disciplinas e áreas do conhecimento.
Com relação à oferta de Língua Espanhola, aspecto positivo do PL, não há sentido em condicioná-la à “aprovação no Conselho Nacional de Educação e homologação por parte do Ministro da Educação” (PL n. 5.230/23, art. 35-A, § 10).
O PL n. 5.230/23 propõe que a oferta da carga horária destinada à FGB seja feita na modalidade presencial, “ressalvadas as exceções previstas em regulamento”. Isso torna o texto dúbio e gera insegurança em um aspecto que já se mostrou fundamentalmente deletério na Reforma da Lei n. 13.415/17, que autorizou e estimulou a precarização (frequentemente em arranjos público-privados) da oferta educativa direta para os/as estudantes mais vulnerabilizados/as das redes estaduais, especialmente no Ensino Médio noturno.
A proposta de revogar o dispositivo da Reforma que permitia convênios para educação a distância é positiva, haja vista a imensa exclusão digital que resulta das históricas desigualdades sociais no País.
Outro aspecto positivo diz respeito à revogação do artigo que autorizava que profissionais sem formação adequada atuassem na docência. É temerária, no entanto, a indicação de regulamentação dessa possibilidade (notório saber para o exercício da docência), ainda que em caráter excepcional.
No PL n. 5.230/23 os percursos de aprofundamento serão compostos por componentes curriculares de, no mínimo, três áreas de conhecimento, e todas as escolas devem ofertar ao menos dois percursos, o que poderia, em tese, mitigar o problema da ausência de escolha identificado na oferta dos itinerários formativos nas redes estaduais. Os percursos de aprofundamento e a integração de estudos, de acordo com o PL, podem ser articulados com a formação técnica profissional na forma de cursos de qualificação profissional, quando houver aderência por parte dos/as estudantes.
No entanto, em vista dessa possibilidade, fica mantida na “reforma da Reforma” a oferta dos chamados “cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC)”, cursos de curta duração que não asseguram habilitação profissional e caracterizam uma forma precarizada de formação para o trabalho no contexto da educação básica. Para tanto, o PL n. 5.230/23 prevê a possibilidade de “cooperação técnica” para a oferta de Formação Técnica e Profissional, que deverá ser “preferencialmente” com instituições públicas, o que significa que permanece aberta a possibilidade de parcerias com o setor privado.
A determinação de que a Formação Técnica e Profissional de 1.200 horas letivas ou mais, relativa a cursos que assegurem habilitação profissional, ocorra de forma prioritária no ensino médio com jornada ampliada (tempo integral) poderá constituir mecanismo de segmentação, seletividade e exclusão educacional, ao favorecer aqueles/as que apenas estudam e excluir os/as jovens que estudam e trabalham. Logo, a julgar pelo que o PL n. 5.230/23 propõe para a Formação Técnica e Profissional (cursos FIC ou cursos com carga horária maior em escolas de jornada ampliada), sinaliza-se um horizonte de agravamento das desigualdades educacionais.
Verifica-se no PL n. 5.230/23 uma dubiedade relativa ao reconhecimento excepcional de aprendizagens, competências e habilidades desenvolvidas pelos estudantes em experiências extraescolares, não sendo possível saber se isso se daria apenas para efeitos da Formação Técnica e Profissional ou para todo o Ensino Médio. De todo modo, tal reconhecimento incentiva a desvalorização dos saberes escolares; um incentivo à desescolarização.
Em síntese, o avanço substancial do PL n. 5.230/23 resume-se ao aumento da carga horária de 1.800 para 2.400 horas letivas totais, obrigatoriamente presenciais, para a FGB (aspectos também presentes no PL n. 2.601/23). Permanecem os equívocos da vinculação obrigatória à BNCC; da possibilidade de oferta de cursos FIC (cursos sem garantia de habilitação profissional) e da possibilidade de financiamento público de oferta privada de parte da carga horária. No enunciado dos quatro percursos de aprofundamento não é possível identificar os critérios de agrupamento das áreas de conhecimento, o que pode gerar incompreensões e confusões.
Há muito a ser feito pelo Congresso Nacional na busca da melhoria da qualidade do Ensino Médio brasileiro. Os/as signatários/as deste posicionamento público estão à disposição para essa construção.
ELABORARAM A NOTA
1. Ana Paula Corti
2. Carlos Artexes Simões
3. Carlota Boto
4. Catarina de Almeida Santos
5. Cleci Körbes
6. Christian Lindberg
7. Daniel Cara
8. Débora Goulart
9. Elenira Vilela
10. Fernando Cássio
11. Idevaldo da Silva Bodião
12. Jaqueline Moll
13. Jean Ordéas
14. José Alves
15. Manoel José Porto Júnior
16. Márcia Jacomini
17. Monica Ribeiro da Silva
18. Rafaela Reis Azevedo de Oliveira
19. Renata Peres Barbosa
20. Salomão Ximenes
21. Sandra Regina de Oliveira Garcia
22. Sergio Stoco
23. Silvio Carneiro
24. Thiago de Jesus Esteves
APOIAM A NOTA
1. Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (Abecs)
2. Campanha Nacional pelo Direito à Educação (Campanha)
3. Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes)
4. Intersindical Central da Classe Trabalhadora
5. Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio
6. Observatório do Ensino de Filosofia de Sergipe (OBSEFIS) / UFS
7. Rede Escola Pública e Universidade (REPU)
8. Rede Nacional EMPesquisa
9. Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe)