
Armas compradas legalmente por pessoas com título de colecionadores, atiradores desportivos e caçadores (CACs) estão abastecendo o crime organizado em todo o Brasil. Segundo O Globo, o total de artefatos roubados, furtados ou perdidos da categoria atingiu em 2023 um patamar recorde em relação aos últimos anos, com uma média de 126 ocorrências por mês, o equivalente a quatro a cada dia.
De janeiro a outubro, 1.259 ocorrências do tipo foram registradas, contra 1.368 casos contabilizados ao longo de todo o ano passado, quando os dados já eram recordes, — média de 114 por mês. Apesar do recorde alarmante, os números ainda podem estar subnotificados, pois os desvios registrados em delegacias nem sempre são comunicados ao Exército, alerta o gerente do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani.
“Na prática, estamos tendo não só mais armas passando do mercado legal para as mãos do crime”, avalia, “mas especialmente armas mais potentes”, diz. “Bolsonaro, com a anuência do Exército, liberou várias armas restritas a civis, como carabinas semiautomáticas e fuzis”, completa Langeani.
Em nota, o Exército afirmou não ser responsável por investigações de furto ou roubo de armas de CAC. A fiscalização de produtos controlados é de responsabilidades das polícias militar e Rodoviária Federal, apontou. “O Exército Brasileiro, diz a instituição, “tem atendido, em todas as oportunidades, as demandas de informações provenientes das Forças de Segurança Pública”, sempre, “no intuito de colaborar exaustivamente para o esgotamento das investigações”.
O aumento de casos nos últimos anos ocorreu graças ao afrouxamento, pelo ex-governo de Jair Bolsonaro (PL), das regras para CACs terem acesso a armas. Na sua gestão, houve uma série de decretos que relaxaram as exigências e aumentaram a quantidade de artefatos e munições que cada um poderia comprar.
“A quantidade de armas em circulação mais do que dobrou em quatro anos”, afirma o policial federal Roberto Uchôa, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “É natural, prossegue ele, “um aumento no número de furtos e roubos”. No entanto, “o que me preocupa é a possibilidade de o registro de furtos estarem sendo usados para mascarar o desvio de armas para o mercado ilegal”, ressalta.
Entre 2019 e 2022, 5.014, cita a reportagem, armas foram furtadas, roubadas ou extraviadas desses caçadores, atiradores e colecionadores. O crescimento foi de 85% na comparação com os cinco anos anteriores, quando a política permissiva do porte de armas de Bolsonaro ainda não havia sido adotada. Até 2017, essas ocorrências ficavam num patamar abaixo de 600 por ano. A partir de 2018, o índice começou a crescer, atingindo o topo em 2022.
Apesar das autoridades justificarem o aumento do volume de armas à maior circulação desses apetrechos, há outro fator que preocupa: a simulação do roubo de armas regulares, com o intuito de vendê-las ao crime organizado, o que já se registra.
Em junho, em Londrina (PR), policiais prenderam um homem com registro de CAC que tentou enganar a polícia, simulando ter sido vítima de um roubo de armamentos quando na realidade tentava esconder o arsenal para depois vendê-lo para o tráfico de drogas. Na casa do indivíduo, que passou a responder por associação criminosa, comunicação falsa de crime e venda ilegal de arma de fogo, foram apreendidas 18 armas.
Em março, a durante a Operação “Guarapari Drill” da Polícia Civil no Espírito Santo, um homem também com licença de CAC e mais três pessoas, entre elas duas mulheres, foram presos por vender armas para traficantes. Com a quadrilha, os policiais identificaram um fuzil 5.56, furtado no sistema do Exército. A arma estava registrada em nome de um CAC que havia obtido o certificado em 2021, beneficiado por um decreto de Bolsonaro no início do seu mandato. Esse tipo de calibre era restrito até então às forças de segurança.
Segundo as investigações, o CAC fornecia equipamentos para traficantes de Vitória e Vila Velha. Quando foi preso, ele negociava a venda de outro fuzil e se preparava para comprar mais armamentos, segundo a polícia.
Também no Rio de Janeiro em São Paulo facções criminosas passaram a utilizar laranjas com certificados de CACs para abastecer os seus arsenais. Além de adquirirem armas legalizadas, as quadrilhas ainda se livram de eventuais problemas com os contrabandistas. O preço para ter acesso a elas, porém, é salgado.
No mercado legal, por exemplo, a arma extraviada do Exército no Espírito Santo foi comprada por cerca de R$ 20 mil. Já aos traficantes, acabou repassada por R$ 70 mil, conforme o inquérito policial — um lucro de R$ 50 mil.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) editou medidas para restringir o acesso e a circulação de armas e munição no país, além de repassar do Exército para a Polícia Federal (PF) a fiscalização do armamento e munição dos artefatos. As medidas representam uma reversão da política alucinada de Bolsonaro de derramar armas pelos quatro cantos do país.