Estudo publicado pelo Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens aponta que 75% das sentenças foram desfavoráveis aos atingidos pelo maior crime ambiental da história brasileira
A Justiça de Minas Gerais reduziu em até 80% o valor das indenizações pelo rompimento de barragem de Brumadinho. É o que revela um estudo publicado recentemente pelo Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab), uma das organizações não governamentais nomeadas pelas próprias comunidades para fazer a assessoria técnica na região do Rio Paraopeba.
Segundo a Repórter Brasil, que teve acesso ao documento, foram analisados 319 processos julgados entre janeiro de 2019 e março de 2023 por 11 câmaras cíveis, a segunda instância da Justiça mineira. Desse total, 75% das sentenças foram desfavoráveis aos atingidos. Ou seja, de cada 4 decisões, 3 foram contrárias aos atingidos. Para ilustrar a situação, uma das vítimas que chegou a ganhar R$ 100 mil em decisão de primeiro grau, teve o valor reduzido em 80% pelo TJMG, após recurso da Vale.
Por meio de sua assessoria de imprensa, o TJMG afirma que juízes e desembargadores têm autonomia para tomar as decisões nos processos que julgam, “segundo as particularidades de cada ação judicial e o preenchimento dos requisitos legais”.
Em 25 de janeiro de 2019, o rompimento da barragem do Córrego do Feijão, da Vale, matou 270 pessoas, despejou um enorme volume de rejeitos de minério no rio Paraopeba e causou um rastro de destruição e desamparo em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte.
Passados cinco anos, a dor dos atingidos pela maior tragédia ambiental do país ganha novos contornos, que envolvem o também criminoso descaso da mineradora e a anuência de parte da Justiça com os desmandos da companhia. “A dor é muito forte. Até porque três pessoas ainda estão desaparecidas, o que faz manter vivas a dor e a memória por todas as pessoas que foram mortas criminosamente pela Vale”, nesse “que foi um dos maiores crimes humanos do Brasil nos últimos tempos”, disse o coordenador nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Joceli Andrioli, em entrevista ao HP.
“A vida não tem reparação. Não há valor que compre uma vida. A vida não volta atrás, então pra gente nós somos os mais miseráveis”, desabafa Josiane Melo, membro da Associação dos Familiares das Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem em Brumadinho (Avabrum). “Nós perdemos aquilo que a gente tinha de mais especial que é o convívio com os nossos entes familiares, a construção dos nossos sonhos e da nossa família”, completou à Agência Brasil.
“A população de Brumadinho e das cidades do entorno, no leito do Rio Paraopeba, sofreram drasticamente, assim como a população de Mariana e do leito do Rio Doce anos antes. E, eu, como deputado do Rio Doce, conheci de perto esse impacto no decorrer dos anos na vida e na economia das cidades”, diz o deputado estadual José Célio de Alvarenga, o Celinho Sintrocel (PCdoB/MG).
Segundo a coluna de Guilherme Amado no Metrópoles, uma ação civil pública movida pelo Instituto Raymundo Campos aponta que a Vale tem incluído cláusulas abusivas nos acordos individuais que violam os direitos das pessoas afetadas. Pontos não previstas no termo de compromisso assinado entre a mineradora e a Defensoria Pública mineira em abril de 2019.
Entre esses, a obrigação dos atingidos de desistir de ações no Brasil e no exterior; a exigência de que, no aceite da indenização acordada com a mineradora, a vítima fica obrigada a renunciar a qualquer outra forma de compensação ou acordo, além do sigilo nas negociações.
LENTIDÃO
Mesmo dentre o conjunto daquilo que foi acordado no documento de reparação, as ações levam muito tempo para serem implementadas. Foi definido que R$ 3 bilhões seriam destinados a um fundo de reparação coletiva para as comunidades. “Até hoje esse dinheiro que poderia tá sendo investido, tá retido em uma conta. Nós calculamos que, pelo menos, os atingidos já deixaram de ganhar R$ 400 milhões porque esse dinheiro não tá sendo operacionalizado por incompetência das instituições de Justiça”, critica Joceli.
Assediadas pela Vale que tem se aproveitado da fragilidade das pessoas, a longa espera na Justiça e o corte drástico nos valores das indenizações pelo TJMG, muitos atingidos estão fazendo acordos extrajudiciais – “muito” desfavoráveis – aos interesses do coletivo com a com a mineradora. “A Vale usa não só o sofrimento, como o tempo. As pessoas foram inviabilizadas economicamente, quebraram-se as cadeias produtivas, ficaram sem renda”, explica Joceli.
“A luta do MAB fez com que fosse garantido um pagamento emergencial às pessoas. E depois, com muita pressão, nós conseguimos garantir no acordo que não parasse esse pagamento mensal”, afirma ele. O Programa de Transferência de Renda (PTR) atende a cerca de 130 mil beneficiários, que recebem metade do salário-mínimo. “É um dinheiro só para não passar fome, na verdade, mas que é necessário”, ressalta o representante dos atingidos.
OUTROS DILEMAS
Foi feito um acordo também com relação aos chamados “fatos supervenientes”, medidas para enfrentar os efeitos provocados por fenômenos naturais no pós-rompimento, mas nada se fez até agora. “Teve várias enchentes que levaram a Brumadinho a lama contaminada que antes (do rompimento) não havia e até o momento não tem nenhuma ação das instituições de justiça e nem do estado cobrando por esses danos”, relata o coordenador do MAB.
“Os problemas da saúde dos atingidos aumentam cada vez mais, as famílias estão em risco, já existem vários estudos pela Fiocruz e outras (instituições) que comprovam que se desenvolveram com metais pesados na bacia do Paraopeba várias bactérias super-resistentes, resistentes aos antibióticos, que estão trazendo inúmeros problemas de saúde à população. Há cisternas a 100 metros do leito do rio contaminadas”, denuncia o representante dos atingidos.
Uma pesquisa da Fiocruz Minas e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), divulgada em julho de 2022, mostrou a alta concentração a metais pesados a que foi exposta a população de Brumadinho. Os dados revelaram que, entre os adolescentes, alguns metais estavam, há época, acima dos limites de referência, com destaque para arsênio total na urina (28,9% com mais de 10 μg/g creatinina), manganês no sangue (52,3% com mais de 15 μg/L) e chumbo no sangue (12,2% com mais de10 μg/dL). Nos adultos foram identificadas elevadas quantidades de níveis aumentados de arsênio total na urina (33,7%) e de manganês no sangue (37%).
Registre-se também os problemas relacionados à saúde mental dos atingidos. “A gente tem debatido muito a queda do nível de saúde dos atingidos do Paraopeba. Se a gente vê a saúde coletiva se degradando é porque a reparação não tá chegando”, observa a deputada estadual Bella Gonçalves (PSol/MG). Além da exposição a minérios, “nós temos um alto índice de depressão, alcoolismo e suicídio […] ao longo de toda a bacia (do Paraopeba), além do que (somado a isso) a ausência de reparação real e responsabilização dos verdadeiros criminosos”, continua Bella.
“A gente vê que o Estado de MG, muito aliado com às mineradoras, tem facilitado novos processos de licenciamento, agravando ainda mais a situação dos atingidos”, denuncia a deputada. Ela cita o exemplo da comunidade do Tejuco, onde foi recentemente reconhecido um novo quilombo. “A comunidade tem sido fustigada pela Vale, que tem contaminado e impossibilitado eles (moradores) de ter acesso à água”, prossegue a parlamentar.
“Já são cinco anos sobrevivendo com caminhão-pipa e ausência de direitos completa. Nuvens de poeira recorrentes, fruto das ações das mineradoras que acontecem no entorno de uma comunidade que é tradicional. O exemplo do Tejuco é um exemplo grave, onde as pessoas recebem água uma vez por semana – garrafinhas de água num caminhão-pipa, cinco anos depois do crime, – é um retrato de como a reparação não tem chegado”, reitera Bella Gonçalves.
JOSI SOUSA