
O chefe de direitos humanos da ONU, Volker Turk, pediu o fim imediato da matança de alauítas e que os grupos que torturam, saqueiam e assassinam civis devem ser responsabilizados
A ditadura síria chacinou em quatro dias centenas de civis da minoria alauíta – próxima ao xiismo e que é 10% da população – nas províncias costeiras de Latakia e Tartus, com vídeos e depoimentos mostrando corpos sendo arrastados nas ruas, casas invadidas e cadáveres por toda parte, enquanto o chefe do novo regime, e ex-líder da Al Qaeda, agora Hayat Tahrir al-Sham (HTS), Ahmed Al Sharaa, considerando o massacre como parte dos “desafios esperados”. Os líderes das três principais igrejas cristãs da Síria emitiram uma declaração conjunta condenando “os massacres contra civis inocentes”.
Segundo o Observatório Sírio de Direitos Humanos (OSHR), conhecido como fonte da oposição durante o governo Assad e que opera desde Londres, forças do HTS e bandos pró-regime liquidaram a sangue frio 745 civis da minoria religiosa, enquanto outros 148, que seriam “remanescentes de Assad”, foram mortos em “combate”.
As vítimas incluem mulheres e crianças, informou Rami Abdulrahman, chefe do Observatório. O massacre começou na quinta-feira (6) e se acelerou com a entrada de jihadistas fanáticos. O regime disse ter perdido 125 homens. Segundo o atual regime, “remanescentes de Assad” teriam iniciado os confrontos, emboscando as forças da ordem.
A ditadura decretou toque de recolher na região. Em grandes áreas das duas províncias, estão cortadas eletricidade, comunicações e água potável. As padarias pararam de produzir pão e mercados fecharam as portas. As aulas nas escolas também estão suspensas. A investida do regime se direcionou particularmente contra as cidades de Latakia, Tartous, Homs, Jableh e Baniyas, cujos acessos foram fechados.
Reportando da capital Damasco, Resul Serdar, da Al Jazeera, disse que, à medida que os confrontos diminuíram significativamente, a realidade do que aconteceu nos últimos quatro dias está se tornando mais evidente.
“As fotos que saem são realmente horríveis. Há um alto número de mortos, e os números devem aumentar nas próximas horas e dias porque as autoridades que controlam a área ainda estão descobrindo [corpos]. Ainda é extremamente difícil esclarecer o número exato”, disse ele.
De acordo com o The Guardian britânico, “os ataques se transformaram em assassinatos por vingança, quando milhares de apoiadores armados da nova liderança da Síria foram para as áreas costeiras para apoiar as forças de segurança”.
MASSACRES
Os assassinatos seguiram confrontos desencadeados pela prisão de um suspeito procurado em uma vila predominantemente alauíta, informou o Observatório. No relato do OSHR, essas centenas de civis foram mortos em “execuções” realizadas por agentes de segurança ou combatentes pró-governo, acompanhadas de “saques de casas e propriedades”.
Dois vídeos, que mostravam um corpo sendo arrastado por um carro em Latakia tiveram sua autenticidade confirmada pela BBC. Ao programa BBC Newshour, um ativista sírio disse que a violência deixou a comunidade alauíta em “um estado de pavor”. “Eles estão se sentindo muito assustados. Estão em estado de choque”, disse o ativista, que não quis usar seu nome por medo de represálias. “Eles não sabem o que fazer. Não há governo ou estado pronto para ajudá-los, para protegê-los”, acrescentou.
O morador de Baniyas, Samir Haidar, 67, disse à AFP que dois de seus irmãos e sua sobrinha foram mortos por “grupos armados” que entraram nas casas das pessoas, acrescentando que havia “estrangeiros entre eles”. Registre-se que Haidar, oposicionista a Assad, chegou a ficar preso por dez anos.
Ele conseguiu escapar para um bairro sunita, mas disse: “Se eu tivesse me atrasado cinco minutos, teria sido morto… fomos salvos nos últimos minutos.”
Usuários de mídia social compartilharam postagens documentando o assassinato de amigos e parentes alauitas, com um usuário dizendo que sua mãe e irmãos foram “massacrados” em sua casa.
Ao portal Middle East Eye, uma testemunha ocular perto do bairro de Datour, em Latakia, que não quis dar seu nome verdadeiro, disse que homens armados foram de casa em casa, e um morador foi baleado. “Eles não deixaram ninguém ajudá-lo, então ele morreu devido ao sangramento. Eles ainda não conseguiram enterrá-lo”. “Minha tia, na vila de Bustan al-Basha, todos os seus vizinhos foram mortos”, acrescentou
A testemunha ocular disse que os homens, alegando ser de Hayat Tahrir al-Sham (HTS), também revistaram sua casa. Um total de 20 carros foram levados do bairro. “Qualquer um que tente sair ou pareça suspeito é morto.”
Alguns civis conseguiram fugir para a base aérea russa de Hmeimim, em Latakia, mas grupos armados os esperavam em postos de controle. “A primeira pergunta feita nos postos de controle é se somos alauitas”, disse a testemunha ocular.
JIHADISTAS FANÁTICOS
Aron Lund, do think tank Century International, disse que a violência era “um mau presságio”. O novo governo não tem as ferramentas, os incentivos e a base de apoio local para se envolver com os alauítas descontentes, disse ele. “Tudo o que eles têm é poder repressivo, e muito disso… é composto por fanáticos jihadistas que acham que os alauitas são inimigos de Deus.” O líder espiritual da minoria drusa da Síria, Sheikh Hikmat al-Hajri, também pediu o fim da violência.
O enviado especial das Nações Unidas para a Síria, Geir Pedersen, disse em uma declaração que estava “profundamente preocupado” com os relatos dos confrontos e assassinatos. Ele pediu a todas as partes que “se abstivessem de ações que pudessem inflamar ainda mais as tensões, aumentar o conflito, exacerbar o sofrimento das comunidades afetadas, desestabilizar a Síria e comprometer uma transição política confiável e inclusiva”.
O chefe de direitos humanos da ONU, Volker Turk, pediu o fim imediato da violência na Síria. “Deve haver investigações rápidas, transparentes e imparciais sobre todos os assassinatos e outras violações, e os responsáveis devem ser responsabilizados, de acordo com as normas e padrões do direito internacional. Grupos que aterrorizam civis também devem ser responsabilizados”, disse Turk.
No domingo, após a pressão da ONU, o ‘presidente’ Al Sharaa, ex-Al Jolani, anunciou a criação de uma “comissão independente” para investigar os massacres de seu próprio regime, e se disse comprometido com “a paz e a unidade nacional” da Síria.
Antigo chefe dos cortadores de cabeça do Estado Islâmico na Síria, Al Sharaa foi repaginado como HTS. Após o colapso do governo Assad, que sucumbiu depois 11 anos de guerra civil – desencadeados pela Operação Timber Sycamore da CIA, usurpação do seu petróleo e trigo por tropas dos EUA, sanções brutais e dramático empobrecimento do país -, Al Sharaa se autonomeou ‘presidente’. Fechou o parlamento e o judiciário, aboliu a constituição e vem trabalhando para tornar a Síria em um “Idiblistão” sectário.
Bem diferente da Síria pluralista sob a revolução baathista, apesar de todos os problemas, onde as mais incríveis tradições históricas, religiosas e comunitárias – incluindo sunitas (e muitos apoiaram Assad), xiitas, alauitas, descendentes dos primeiros cristãos e falantes de aramaico, a língua de Jesus – foram todos capazes de coexistir.
NEOLIBERALISMO MOSTRA SUA CARA
As contradições não se limitam ao sectarismo. Nas últimas semanas, demissões em massa de servidores públicos vinham provocando protestos em muitas áreas e, segundo ativistas sindicais, 250 mil já foram demitidos ou colocados em “licença sem vencimento”.
Em entrevista em janeiro à Reuters o subalterno de Al-Sharaa encarregado da economia anunciara que iria privatizar quase tudo, com exceção de energia e transporte. Outro ‘ministro’, das Finanças, prometeu demitir cerca da metade do funcionalismo.
O novo regime também já manifestou sua adesão ao neoliberalismo, com a meta de cortar subsídios o quanto antes. As agências das Nações Unidas disseram em um relatório recente que 90% dos sírios vivem na pobreza e metade da infraestrutura do país foi destruída ou disfuncional. 75% da população agora depende de alguma forma de ajuda humanitária, em comparação com apenas 5% no primeiro ano do conflito.