Nos 80 anos das Nações Unidas, em seu discurso à Assembleia Geral o chanceler russo afirmou que “a maioria global está reivindicando seus direitos em alto e bom som“
“Há oitenta anos, a guerra mais terrível da história da humanidade terminou: mais de 70 milhões de pessoas foram vítimas de combates, fome e doenças. Em 1945, o curso da história mundial mudou para sempre. O triunfo sobre o nazismo alemão, sob cuja bandeira a maior parte da Europa se uniu, e o militarismo japonês abriu caminho para a paz, a reconstrução e a prosperidade”, afirmou o ministro das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, em seu discurso à 80ª Assembleia Geral da ONU no sábado (27).
O chanceler russo saudou as celebrações realizadas em Moscou e Pequim – em 9 de maio e 3 de setembro -, em comemoração à Vitória na Grande Guerra Patriótica e na Segunda Guerra Mundial, em memória da povos da URSS para a derrota da Alemanha nazista e do papel especial do povo chinês na derrota do Japão militarista e da “nossa irmandade de armas com todos os nossos aliados que se aliaram à verdade na luta contra as forças do mal”.
“Um dos resultados duradouros dessa guerra foi a criação das Nações Unidas”, sublinhou Lavrov, cujos princípios de sua Carta “continuam a servir como um farol brilhante de cooperação internacional.”
Princípios que “incorporam séculos de experiência na coexistência de Estados e mantêm plenamente sua relevância na era da multipolaridade”.
Aos quais todos os Estados-membros, sem exceção, precisam aderir, afirmou Lavrov, “em sua totalidade e em sua interconexão”. Ele que denunciou que violações do princípio da igualdade soberana minam a própria fé na justiça, levando a crises e conflitos.
RAIZ DOS PROBLEMAS: “À MESA” OU “NO CARDÁPIO”
“A raiz dos problemas reside nas tentativas incessantes de dividir o mundo em ‘nós’ e ‘eles’, em ‘democracias’ e ‘autocracias’, em um ‘jardim florido’ e uma ‘selva’, entre aqueles ‘à mesa’ e aqueles ‘no cardápio’”, enfatizou o chanceler russo.
“Entre uns poucos selecionados, a quem é permitido ter tudo, e os demais, que são de alguma forma obrigados a servir aos interesses do ‘bilhão dourado’”.
“O princípio da não utilização da força ou da ameaça de força também tem sido repetidamente violado pelo Ocidente”, como visto no bombardeio da Iugoslávia pela OTAN, a invasão do Iraque pela coalizão liderada pelos EUA e a operação de mudança de regime da OTAN na Líbia. “Hoje, o uso ilegal da força por Israel contra os palestinos e suas ações agressivas contra o Irã, Catar, Iêmen, Líbano, Síria e Iraque ameaçam detonar todo o Oriente Médio.”
ESTADO PALESTINO
“Não há justificativa para o assassinato brutal de civis palestinos, nem para ataques terroristas. Não há justificativa para a punição coletiva de palestinos na Faixa de Gaza, onde crianças palestinas estão morrendo de bombardeios e fome, hospitais e escolas estão destruídos e centenas de milhares estão desabrigados. Não há justificativa para planos de anexação da Cisjordânia.
“Estamos efetivamente testemunhando uma tentativa de golpe de Estado com o objetivo de enterrar a resolução da ONU sobre a criação de um Estado palestino.”
“A situação exige ação urgente para evitar tal cenário, conforme firmemente defendido pelos participantes da Conferência Internacional de Alto Nível sobre a Solução Pacífica da Questão da Palestina e a Implementação da Solução de Dois Estados”, apoiou Lavrov.
O chanceler russo rechaçou os ataques “às instalações iranianas sob salvaguardas da AIEA e, depois, à capital do Catar, quando as negociações com o Hamas estavam em andamento, inclusive com a participação de mediadores americanos”.
Lavrov também condenou as “manipulações ocidentais para restaurar as sanções da ONU contra o Irã, bem como as próprias sanções”, que são ilegais. Ele apontou que o Ocidente rejeitou “uma proposta racional da China e da Rússia para prorrogar o acordo de 2015 sobre o programa nuclear iraniano, dando tempo à diplomacia”.
O que expôs definitivamente – ele acrescentou – a política ocidental de sabotar a busca por soluções construtivas no Conselho de Segurança da ONU e seu desejo de extrair concessões unilaterais de Teerã por meio de chantagem e pressão.
SEM SANÇÕES
“O Ocidente também não está acostumado a aderir ao princípio da não interferência em assuntos internos”, afirmou Lavrov. “As “revoluções coloridas” tornaram-se um triste fenômeno da nossa época, e sanções unilaterais ilegais há muito se tornaram a principal ferramenta da diplomacia ocidental. E não importa quais sejam os pretextos usados para justificá-las, a essência de tais sanções é a mesma: suprimir e intimidar concorrentes na economia e na política globais.”
A Rússia, juntamente com a maioria absoluta dos membros da ONU, “defende o levantamento imediato e incondicional do embargo comercial contra Cuba, em vigor há mais de 60 anos, e sua remoção da notória lista de Estados patrocinadores do terrorismo”.
“Expressamos solidariedade ao povo da Venezuela diante das pressões e ameaças de sanções externas. Defendemos a preservação da América Latina e do Caribe como uma zona de paz e cooperação.”
Lavrov assinalou como “exemplo flagrante de enfraquecimento da soberania e de interferência flagrante em assuntos internos as ações do Ocidente nos Bálcãs”. O reconhecimento unilateral da “independência” do Kosovo, em violação à Resolução 1244, – acrescentou – tornou-se essencialmente um ataque à condição de Estado da Sérvia. “Agora, o Ocidente traçou um caminho para a desintegração da condição de Estado da Bósnia e Herzegovina, sabotando o Acordo de Paz de Dayton.”
NEONAZIS DE KIEV
“Da mesma forma, o regime de Kiev, que tomou o poder como resultado de um golpe inconstitucional organizado pelo Ocidente em 2014, traçou um curso para a liquidação da Igreja Ortodoxa Ucraniana canônica e a erradicação legislativa da língua russa em todas as esferas – educação, cultura e mídia.”, denunciou Lavrov.
“A Ucrânia é o único país do mundo que proibiu legalmente o uso da língua nativa de quase metade de sua população. O árabe não é proibido em Israel, e o hebraico não é proibido nos países árabes e no Irã. Mas o russo é proibido na Ucrânia”, registrou o chanceler russo. Ele lembrou que o Artigo 1 da Carta da ONU estipula a necessidade de “respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”.
“A Europa permanece em silêncio sobre isso, obcecada com o objetivo utópico de infligir uma ‘derrota estratégica’ à Rússia”, ressaltou Lavrov.
“Para tanto, o regime de Kiev tem permissão para fazer de tudo, incluindo ataques terroristas contra políticos e jornalistas, tortura e execuções extrajudiciais, bombardeios indiscriminados de alvos civis e sabotagem imprudente de usinas nucleares.”
CAUSAS PROFUNDAS
“A Rússia, como o Presidente Vladimir Putin tem repetidamente enfatizado, esteve e permanece aberta desde o início a negociações para abordar as causas profundas do conflito. A segurança da Rússia e seus interesses vitais devem ser garantidos de forma confiável”, enfatizou Lavrov.
“Os direitos dos russos étnicos e dos russófonos nos territórios que permanecem sob o controle do regime de Kiev devem ser totalmente restaurados.” Com base nisso – apontou -, “também estamos preparados para discutir garantias de segurança para a Ucrânia”.
“Até o momento, nem Kiev nem seus patrocinadores europeus parecem compreender a urgência da situação ou estar dispostos a negociar de forma justa. A Aliança do Atlântico Norte continua a se expandir até nossas fronteiras – contrariando as garantias dadas aos líderes soviéticos de não avançar “nem um centímetro” para o leste.”
O chanceler russo enfatizou que seu país propôs repetidamente às capitais da OTAN que “respeitem seus compromissos e concordem com garantias de segurança juridicamente vinculativas. Nossas propostas em 2008 e novamente em dezembro de 2021 foram ignoradas e continuam sendo ignoradas”.
QUALQUER AGRESSÃO CONTRA A RÚSSIA SERÁ RECHAÇADA DECISIVAMENTE
Lavrov destacou que estão se tornando cada vez mais comuns as ameaças de uso da força contra a Rússia, acusada de praticamente planejar atacar a OTAN e a União Europeia.
“O presidente Vladimir Putin desmascarou repetidamente tais provocações. A Rússia nunca teve, e não tem, tais intenções. No entanto, qualquer agressão contra meu país será rejeitada decisivamente. Não deve haver dúvidas sobre isso entre aqueles na OTAN e na UE que não apenas convencem seus eleitores da inevitabilidade da guerra com a Rússia e os forçam a apertar o cinto, mas também declaram abertamente os preparativos para um ataque à nossa região de Kaliningrado e outros territórios russos.”
Depositamos certas esperanças na continuidade do diálogo russo-americano, especialmente após a cúpula do Alasca, acrescentou Lavrov . “A Rússia e os Estados Unidos têm uma responsabilidade especial pela situação global e por evitar riscos que possam mergulhar a humanidade em uma nova guerra. A nova iniciativa da Federação Russa, apresentada pelo presidente russo Vladimir Putin em 22 de setembro, visa contribuir para a manutenção da estabilidade estratégica. Ela se compromete a aderir aos limites quantitativos centrais do Novo Tratado START por um ano após sua expiração em 5 de fevereiro de 2026, desde que os Estados Unidos sigam o exemplo e não tomem medidas que violem o equilíbrio existente de potenciais de dissuasão.”
“Nossa proposta”, enfatizou o chefe da diplomacia russa, “criará as condições necessárias para evitar uma corrida armamentista estratégica”.
65 ANOS DA DESCOLONIZAÇÃO
Lavrov destacou que em dezembro “celebraremos o 65º aniversário da adoção, pela Assembleia Geral, da Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais”.
O processo de descolonização, liderado pela União Soviética, foi consequência direta da concretização do direito das nações à autodeterminação. Os povos da África e da Ásia recusaram-se a viver sob o jugo dos seus colonizadores — tal como, após o golpe de 2014 na Ucrânia, a Crimeia, o Donbass e a Novorossiya recusaram-se a submeter-se à tomada ilegal do poder pelo regime neonazista de Kiev, que não só não representa os interesses dos seus povos como também desencadeou uma guerra contra eles. Em ambos os casos, concretizou-se o princípio consagrado na Declaração de Independência de 1776 e posteriormente reafirmado por muitos presidentes americanos: “Os governos derivam a sua legitimidade do consentimento dos governados”.
“Tanto os colonizadores como o regime de Kiev não tinham o consentimento dos povos que pretendiam governar. Este princípio foi reafirmado unanimemente na Declaração da ONU de 1970 , que declarou explicitamente: todos devem respeitar a integridade territorial dos países cujos governos representam todas as pessoas que vivem no território em questão.”
“Hoje, a África e todo o Sul Global vivenciam um novo despertar, buscando a independência total, e a ONU não deve ficar à margem”, conclamou Lavrov, lembrando que em dezembro de 2024 “a Assembleia Geral adotou uma resolução sobre “Erradicação do colonialismo em todas as suas formas e manifestações” e chamando a “declarar 14 de dezembro como o Dia Internacional contra o Colonialismo”.
NOVO DESPERTAR
“O atual equilíbrio de poder no mundo é radicalmente diferente daquele estabelecido há 80 anos. A descolonização e outras grandes convulsões remodelaram o mapa político do planeta. A maioria global está reivindicando seus direitos em alto e bom som. A OCX e os BRICS desempenham um papel especial como mecanismos de coordenação dos interesses dos países do Sul e do Leste Global. A influência da União Africana, da CELAC e de outras associações regionais está crescendo”, reiterou Lavrov.
Realidades que ainda não se refletiram adequadamente na ONU. “A questão da reforma do Conselho de Segurança é particularmente importante. A Rússia defende sua democratização exclusivamente por meio do aumento da representação da Ásia, África e América Latina. Apoiamos as candidaturas do Brasil e da Índia à filiação permanente ao Conselho, corrigindo, ao mesmo tempo, as injustiças históricas contra a África, dentro dos parâmetros acordados pelos próprios países do continente.”
Sobre a proposta do Secretário-Geral António Guterres de uma reforma abrangente da ONU, Lavrov destacou que “a referência deve ser o retorno aos princípios fundadores da ONU consagrados em sua Carta, que o Ocidente há muito busca substituir por sua ‘ordem baseada em regras’”.
“A reforma da ONU é apenas parte da complexa tarefa de transformar todo o sistema de governança global, incluindo a genuína democratização do FMI, do Banco Mundial e da OMC — compatível com o peso e o papel do Sul e do Leste Globais na economia, no comércio e nas finanças mundiais”.
Lavrov advertiu que a situação da segurança internacional está se deteriorando, o que tem como principal razão o desejo de manter a hegemonia por meio da força militar. “Cada vez mais países e regiões estão sendo arrastados para esquemas de confronto. A OTAN confinada na Europa já está penetrando no Oceano Pacífico, no Mar da China Meridional e no Estreito de Taiwan, minando os mecanismos universais da ASEAN e representando ameaças não apenas à China e à Rússia, mas também a outros países da região. A liderança da OTAN justifica essa nova etapa de expansão citando a “indivisibilidade da segurança euro-atlântica e indo-pacífica” e, sob esse slogan, tenta cercar militarmente toda a Eurásia.”
CARTA EURASIÁTICA DA DIVERSIDADE E MULTIPOLARIDADE
“A Rússia e seus parceiros com ideias semelhantes estão propondo uma alternativa construtiva a esse caminho perigoso: construir uma arquitetura de segurança igualitária e indivisível na Eurásia, não para os membros da OTAN e seus aliados, mas para todos os países e associações do continente, sem exceção, incluindo a OCS , a CEI , a ASEAN, a UEE , a OTSC , o CCG e outros.”
Arquitetura a ser estabelecida por uma “Carta Eurasiática da Diversidade e Multipolaridade no Século XXI“, por meio de um processo “verdadeiramente pancontinental”.
Ao falar sobre o futuro, alertou Lavrov, “não devemos esquecer as lições do passado, especialmente em uma situação em que o nazismo está mais uma vez surgindo na Europa e a militarização está ganhando força – sob os mesmos slogans antirrussos.”
ARAUTOS DA III GUERRA MUNDIAL
“Isto é ainda mais alarmante dado que vários políticos no poder em Bruxelas e em algumas capitais da UE e da OTAN estão a começar a discutir seriamente uma terceira guerra mundial como um cenário plausível”, denunciou o chanceler russo.
“Estes números estão minando quaisquer esforços para encontrar um equilíbrio justo de interesses entre todos os membros da comunidade internacional, tentando impor as suas abordagens unilaterais aos outros, violando grosseiramente o requisito fundamental da Carta — o respeito pela igualdade soberana dos Estados. Esta igualdade é a base da multipolaridade objetivamente emergente.”
Concluindo, ele chamou os Estados-membros e a liderança do Secretariado “a cumprirem rigorosamente todos os princípios da Carta da ONU, sem dois pesos e duas medidas. Só assim o legado dos pais fundadores da ONU não será desperdiçado.”