O desequilibrado que ocupa o Planalto, depois da reação causada por suas declarações sobre o assassinato de Fernando Santa Cruz, pai do atual presidente nacional da Ordem dos Advogados dos Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, culpou os companheiros de Fernando: “Eles resolveram sumir com o pai do Santa Cruz. Não foram os militares que mataram ele não, tá? É muito fácil culpar os militares por tudo que acontece”.
Isso é tão nojento, tão repugnante, tão vomitante que nem o governador de São Paulo, João Doria, conseguiu ficar calado – não fosse ele, Doria, filho de outro perseguido pela ditadura.
Além da mentira, Bolsonaro tenta, com essa declaração, esconder-se atrás dos militares, como se esses existissem para apoiar a sua infâmia e a sua mentira.
Ninguém jamais culpou os militares em geral pelo assassinato de Fernando Santa Cruz, aos 26 anos, deixando órfão o filho de dois anos – Felipe, hoje presidente da OAB.
Que Bolsonaro não respeite nem uma tragédia familiar, nem tenha caráter para respeitar minimamente a verdade, não é uma surpresa.
Mas, já que é assim, vamos reproduzir o que se sabe sobre o assassinato de Fernando, hoje patrono do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal Fluminense (UFF), da qual foi aluno de Direito.
O que vem abaixo são trechos extraídos do livro “Direito à verdade e à memória”, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, publicado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos em 2007.
FERNANDO AUGUSTO DE SANTA CRUZ OLIVEIRA (1948 – 1974) e EDUARDO COLLIER FILHO (1948 – 1974)
Nascidos ambos em Recife, amigos desde a infância, Fernando e Eduardo foram presos juntos em Copacabana, no Rio de Janeiro, por agentes do DOI-CODI/RJ, em 23/02/1974, quando faltavam poucas semanas para ter fim o governo Garrastazu Médici.
Fernando Santa Cruz era casado com Ana Lúcia Valença Santa Cruz Oliveira, com quem teve um filho de nome Felipe. Tinha vida absolutamente legal e era funcionário do Departamento de Águas e Energia Elétrica, em São Paulo, onde morava com a mulher e Felipe, então com dois anos.
Era um sábado de carnaval e a família estava no Rio de Janeiro. Por volta das 15h30min, Fernando saiu da casa do irmão Marcelo, que atualmente é vereador em Olinda, para se encontrar com Eduardo Collier às 16 horas. Deixou no ar a advertência: se não voltasse até 18 horas, teria sido preso.
Já tinha sido preso uma vez, em uma passeata do Movimento Estudantil contra os acordos MEC-Usaid, em Recife, no ano de 1966. Como ainda não tinha 18 anos, ficou detido por uma semana no Juizado de Menores.
Participou ativamente das mobilizações estudantis de Recife até 1968, quando se mudou para o Rio de Janeiro. Ali, passou a trabalhar como pesquisador na Coordenação de Habitação de Interesse Social da área metropolitana do Grande Rio, do Ministério do Interior.
Em 1972, matriculou-se no curso de Direito da Universidade Federal Fluminense, mas em setembro de 1973, mudou-se para São Paulo. Sua irmã, Rosalina Santa Cruz, hoje professora na PUC de São Paulo, também foi presa política no Rio de Janeiro, sendo alvo de cruéis torturas.
Eduardo Collier Filho cursou Direito na Universidade Federal da Bahia, em Salvador. Havia sido indiciado em inquérito policial pelo DOPS/SP, em 12/10/1968, por ter participado do 30º Congresso da UNE, em Ibiúna (SP). Em 1969, foi expulso da universidade pelo decreto 477.
Como parte da perseverante cruzada que mantiveram durante anos em busca dos filhos, as duas mães, Elzita Santos Santa Cruz Oliveira e Risoleta Meira Collier, endereçaram uma carta ao novo chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva, onde relatam todos os passos de sua peregrinação desde fevereiro e fornecem informações bem concretas:
“… fomos a São Paulo, no dia 14 de março, ao DOI do II Exército, situado na rua Tomás Carvalhal, onde ocorreu o seguinte incidente: recebidas pelo carcereiro de plantão, que atendia pelo nome ou alcunha de ‘Marechal’, o mesmo anotou os nomes de nossos filhos e, após uma ausência de meia hora, retornou o referido funcionário, na ocasião comunicando que ‘hoje não é dia de visitas para Fernando e Eduardo’; em virtude da nossa insistência, foi declarado que os nossos filhos ali se encontravam presos, mas que só poderiam receber visitas no domingo próximo, após as 10 horas. Apesar disso se dispuseram a receber e entregar sacolas contendo roupas e objetos de uso pessoal. A convicção de que realmente eles estavam presos no local tornou-se absoluta quando o carcereiro, ao receber o nome de Fernando Augusto de Santa Cruz, completou-o, acrescentando o último sobrenome, Oliveira, sem que lhe fosse fornecido.
“No domingo, ao comparecermos ao DOI, certas de que nos avistaríamos com nossos estimados filhos, como prometido, fomos comunicadas por um funcionário, que atendia pelo nome de Dr. Homero, de que Fernando e Eduardo ali não se encontravam, tratando-se tudo de um ‘lamentável equívoco’, ocasião em que foram devolvidas as sacolas”.
Os desaparecimentos foram levados também à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, com sede em Washington, ao Tribunal Bertrand Russel, à Câmara dos Deputados, onde os então deputados Fernando Lira e Jarbas Vasconcelos denunciaram o episódio na tribuna e ainda a dezenas de personalidades históricas do Brasil, entre apoiadores e opositores do regime militar, como Tristão de Athayde, Dom Helder Câmara, os generais Reynaldo Melo de Almeida e Sylvio Frota e os marechais Cordeiro de Farias e Juarez Távora.
Em 07/08/1974, Risoleta e Elzita participaram, junto com outros familiares de desaparecidos, de uma audiência com o general Golbery, articulada por Dom Paulo Evaristo Arns. Era a primeira vez que o governo militar recebia os familiares de desaparecidos. Nenhuma resposta foi dada. Apenas seis meses depois, em fevereiro de 1975, o ministro da Justiça Armando Falcão fez um pronunciamento respondendo aos familiares com a cínica informação de que os desaparecidos estavam todos foragidos.
No Arquivo do DOPS/SP, na ficha de Fernando Santa Cruz consta:
“Nascido em 1948, casado, funcionário público, estudante de Direito, preso no RJ em 23/02/74”.
O Relatório do Exército de 1993 contém apenas a qualificação de Fernando e sua militância na APML e o Ministério da Marinha informa que “foi preso no RJ em 23/02/74, sendo dado como desaparecido a partir de então”.
Quanto a Eduardo Collier, seu nome aparece no Arquivo do DOPS/PR na gaveta identificada com a palavra “falecidos”.
O Relatório do Ministério do Exército registra que, “conforme reportagem veiculada no Jornal de Brasília, em sua edição do dia 31/10/1975, o nominado teria sido preso em 23/01/1974, no estado do Rio Grande do Sul, após permanecer por um longo período foragido da Justiça Militar”.
O Relatório do Ministério da Marinha menciona que “desapareceu quando visitava parente na Guanabara”.
Para os dois militantes, o Ministério da Aeronáutica informa que são citados na imprensa como mortos ou desaparecidos, mas que não há dados que comprovem a versão.
Na já citada edição de 24/03/2004 da revista IstoÉ, o sargento Marival Chaves do Canto, que trabalhando como analista do DOI-CODI acompanhou as principais ações do CIE comandadas pelo Doutor César, o coronel reformado José Brant Teixeira, e pelo Doutor Pablo, o coronel Paulo Malhães, informa que esses dois oficiais “foram responsáveis pelo planejamento e execução de uma mega-operação em inúmeros pontos do País para liquidar, a partir de 1973, os militantes das várias tendências da Ação Popular (AP), movimento de esquerda ligado à Igreja Católica. Segundo o ex-agente, entre os mortos estão Fernando Santa Cruz Oliveira, Paulo Stuart Wright, Eduardo Collier Filho e Honestino Monteiro Guimarães, militantes da Ação Popular Marxista-Leninista (APML)”.
O livro Desaparecidos Políticos, do Comitê Brasileiro pela Anistia/RJ, organizado por Reinaldo Cabral e Ronaldo Lapa, registra com palavras emocionantes o drama de muitas crianças brasileiras que naquele período sombrio da história não puderam saber se eram ou não órfãs:
“Com o tempo, Felipe, filho de Fernando, acabou entendendo que seu pai tinha sido preso. E como ele não voltou mais, certa vez Felipe disse a um dos seus amiguinhos:
“- O soldado matou o meu pai, só que eu não sei por quê. Mamãe me disse que quando eu ficar grande eu vou entender. Mas quando eu crescer, vou ao quartel saber onde esconderam meu pai”.
N.HP: Felipe cresceu, entendeu, tornou-se advogado e presidente da OAB, a tempo de responder a um esbirro covarde que se alojou na Presidência da República.
Matéria relacionada: