O texto que publicamos abaixo é da lavra de Elder Vieira, poeta, militante comunista e servidor público, com grandes contribuições nas áreas da Cultura, do Esporte e da Gestão Municipal. Valendo-se de seus dotes literários e de sua prática militante, Elder reproduz – com licenças poéticas – uma roda de conversa em que participou com jovens de Nazaré Paulista.
Mas não espere o leitor um papo superficial. Com autoridade, e para o desespero dos “moderninhos cosmopolitanos” e dos “cibernautas da era pós-industrial”, o autor aborda questões centrais para a Cultura Brasileira, como o “binômio antitético dominação versus resistência”. Alicerça seus argumentos em uma análise das áreas da Educação e na Cultura no Brasil e chega a uma descrição precisa dos processos de dominação e resistência. E comprova, com acerto, que essa última “também tem duplo caráter: ela é nacional e popular”.
A afirmação de Elder, de que “A defesa da cultura nacional é, portanto, bandeira que se inscreve no novo ciclo de lutas do povo brasileiro.”, além de correta, deveria ser óbvia para qualquer cidadão que desejasse discutir seriamente a questão cultural. Infelizmente setores da nossa Academia – e grande parte de nossos gestores culturais – foram contaminados por teorias exóticas e, alardeando um suposto e pomposo “multiculturalismo”, tentam sepultar o Nacional e Popular na discussão sobre Cultura. Lembram o João da Silva (aquele que pagava “royalty da fome”), da canção de Billy Blanco, imortalizada na voz de Nora Ney:
João da Silva
Cidadão sem compromisso
Não manja disso
Que o francês chama l’argent
Pagando royalty
Dinheiro disfarçado
É tapeado desde as cinco da manhã
(…)
Diz que não gosta de samba
E acha o rock uma beleza
Elder, ao contrário, gosta de samba. E entende de Cultura.
(Valério Bemfica)
ELDER VIEIRA
Estive por esses dias em Nazaré Paulista, com o pessoal da UJS de São Paulo, numa roda de conversa sobre cultura e comunicação de seu Socializando – momento formativo que eles periodicamente promovem.
A referida roda começou já noite entrada, passados o banho e a janta da tropa – toda ela assanhada para a festa de logo mais. Entretanto, sentaram todos na varanda que nos serviu de auditório, concentrados e atentos; e lindos, como lindas são as lutas que todos os dias travam.
Depois de delimitar o tema cultura no perímetro dimensão simbólica da vida nacional, partimos para a caracterização da cultura brasileira: “A cultura brasileira”, disse esse módico escriba no tom menos professoral que conseguiu, “assenta-se no binômio antitético dominação versus resistência”.
– What?!
– Fale língua de cristão, sujeito!
Como íamos dizendo, a dominação tem duplo caráter: ela é estrangeira e de classe. Para verificar a estrangeirice que nos domina, não carece uma grande tese: basta saber que em torno de 80% do conteúdo que ocupa nossas telas de cinema são norte-americanos, que a maioria dos vídeos por demanda visualizados é produção anglo-americana, que os livros de ficção mais lidos são os traduzidos do inglês, que nos vestimos em São Paulo tão deselegantemente quanto os novaiorquinos; que, da fralda de nossos filhos ao chocolate matinal, do sabor do creme dental à gordura do fast food, do ideal de mulher perfeita ao conceito de amor, do multiculturalismo à pós-modernidade, tudo tem algum nome estrangeiro impresso no rótulo.
– Daí deriva que pensamos e agimos como ianques?
Calma aí, que ainda falta um pedaço: a dominação de classe. Esta está dentro daquela e aquela dentro desta, e se expressa no conservadorismo político, ético, estético e mesmo epistemológico, se assim posso me expressar; no elitismo, que nega acesso e discrimina; e na alienação, que soterra a crítica, a investigação e a ação consciente, e nos aparta do que é nosso, de nossa história, privando-nos de ícones e de identidade.
– É agora que a gente vira cowboy mascador de bubble gum?
Não. Porque tem a contraparte. A resistência. Que também tem duplo caráter: ela é nacional e popular.
– Aff, que cheiro de naftalina! – torcerão os narizes os moderninhos cosmopolitanos.
– Dispensa o paleontólogo! Achamos um dinossauro vivo! – gracejarão os cibernautas da era pós-industrial.
– Senta aí, acende uns incensos e vai mastigando esse chiclete com banana, que ainda tem chão – respondo eu aos patrulheiros de plantão, que não sei o que vieram aqui fazer, se nem na roda estavam.
A resistência de natureza popular e de caráter nacional traduz-se na perspectiva transformadora de nosso ativo simbólico, marcado pela criatividade e inovação, e pela apropriação cultural operada por meio da transfiguração de motivos, temas e arranjos estéticos.
Esse binômio dominação versus resistência traduzir-se-á (já que ultimamente estamos sob o império de mesóclises temerárias, mesoclisemos) nas múltiplas dimensões da cultura, e produzirá os resultados mais inusitados. Esses resultados dependerão da correlação das forças culturais em contenda. No quadro geral de nossa história cultural, nem a dominação classista deu conta de ocupar todos os territórios, nem a resistência nacional e popular pode cantar vitória.
Na educação, por exemplo – dimensão estratégica da cultura -, digladiam-se a linha liberal-positivista, inaugurada pelas elites nos primórdios da República e atualizada recentemente por seus herdeiros golpistas, e as diferentes linhas de educação popular, como a freireana e a histórico-crítica, de Saviani. As segundas chegam a hegemonizar o pensamento da academia e de vasto contingente de educadores e estudantes, mas quem vai se impondo de cima para baixo é a primeira, encastelada que está no aparelho de Estado e compromissada que é com as demandas do capital. Isso produz uma espécie de hibridismo nas linhas e práticas pedagógicas nas salas de aula do País, nas quais Piaget, escolanovistas, Vigotsky, construtivistas e tradicionalistas convivem numa sopa eclética.
No campo institucional, essa peleja se evidencia, ao longo das últimas três décadas, na convivência tensa, refletida em nossas políticas culturais, entre a lógica de mercado e a lógica pública: de um lado, os liberais e seus neo-representantes, convictos de que cultura é missão capitalista, e que cabe ao mercado apoiar, regular, selecionar o que vai ou não para a cesta básica simbólica do cidadão; de outro, todos os gatos escaldados de bom senso, sabedores do quão excludente e concentrador é o mercado, e convencidos de que cultura é patrimônio inalienável – porque um direito social básico, território de experimentação e inovação, elemento identitário de um povo, e ativo simbólico e econômico nacional estratégico.
Nos anos 90 do século passado (olha a naftalina aí…), a hegemonia dos neoliberais fez, quase que exclusivamente, das leis de incentivo fiscal, a política para a cultura brasileira. A partir de 2003, num governo central sob o comando de forças de figurino popular, o volume do orçamento público aumentou, e a política de incentivo foi manejada numa perspectiva democratizadora. No Brasil pós-golpe, o mercado retoma a ofensiva.
Nem tudo o que foi escrito aqui foi dito na roda; e nem todo o dito na roda foi aqui escrito. Mas a conclusão é a mesma: o binômio antitético dominação versus resistência, insculpido no DNA de nossa cultura, é uma das expressões da luta de classes no Brasil, e faz parte da contradição entre o Imperialismo e as nações por ele dominadas ou exploradas no mundo. A defesa da cultura nacional é, portanto, bandeira que se inscreve no novo ciclo de lutas do povo brasileiro.
Há quem não acredite, mas é uma bandeira jovem – como a Nação que a empunha.