Hora de reabrir? 586 mil contágios e apenas 43 mil altas.
“Tempo de #demitir Fauci”, retuitou o presidente Donald Trump, utilizando a postagem de uma ativista republicana para expressar seu inconformismo com a entrevista dada pelo principal consultor científico dos EUA sobre a Covid-19, Anthony Fauci, à CNN.
Na entrevista, Fauci reconheceu que a não implementação de medidas de quarentema mais cedo havia contribuído para a atual crise sanitária nos EUA, hoje recordista mundial tanto em número de contágios (586 mil), quanto em número de mortos (23 mil), e aumentando.
“Obviamente, ninguém vai negar que se nós tivéssemos bem desde o começo fechado tudo, poderia ter sido um pouco diferente”, afirmou o cientista, que admitiu que esse tipo de decisão é “complicada”, houve “um monte de pressões contra fechar coisas” e nem sempre as recomendações apresentadas são aceitas.
Nesta terça-feira (14), segundo a CNN, Trump deverá apresentar a primeira fase de sua proposta para a reabertura da economia – o que ele recentemente comparou a um “big bang” – com a constituição de um conselho para “reabrir nosso país”.
Trump também causou mais polêmica ao asseverar que, como presidente, poderia ditar aos estados – 42 deles sob alguma norma de distanciamento social – qual seria a contenção da pandemia. “Autoridade total”, reiterou, sob protestos de governadores e prefeitos.
Mas partiu do governador do estado de Nova Iorque, Andrew Cuomo, depois de afagos sobre a “rapidez” com que seu estado é atendido por Washington, a resposta mais direta: quem achar que pode reabrir a economia dos EUA “sem o motor da área metropolitana de Nova Iorque” está “brincando consigo mesmo”.
A adição de Fauci à lista de excomungados por Trump no Twitter não teria como passar despercebida, mas mais tarde a Casa Branca asseverou que não há a intenção de demiti-lo.
“O presidente Trump não vai demitir o Dr. Fauci”, asseverou o porta-voz da Casa Branca, Hogan Gidley. “O Dr. Fauci é e permanece um conselheiro de confiança do presidente Trump”.
Cientista mundialmente respeitado pelo seu papel no enfrentamento da AIDS e que representa a comunidade científica norte-americana na força-tarefa da Casa Branca contra o coronavírus, Fauci tem sido um equilibrista diante dos arroubos de Trump, em prol de manter sob algum constrangimento da verdade científica a um governo tão caracterizado pelo obscurantismo.
A entrevista do Dr. Fauci acabou por reforçar a extensa matéria do New York Times de domingo que detalhara como Trump havia ignorado as advertências dos conselheiros científicos e preferido apostar em seus “instintos”, adiando a implantação de medidas de quarentena e inclusive sugerindo em público que não passava de uma “gripe comum” e, mais tarde, até prometendo “reabrir os negócios” até a Páscoa.
O NYT relatou, ainda, que os conselheiros científicos estiveram perto de serem recebidos por Trump, mas este acabou desmarcando a reunião. À inércia, se somou a incompetência de seu governo em conseguir fabricar um teste, depois de esnobar o oferecido pela OMS. Sem testes e sem medidas de distanciamento social, a pandemia saiu de controle, enquanto Trump exalava xenofobia sobre o “vírus chinês”.
“NÃO É COMO ACENDER UMA LÂMPADA”
Sobre o levantamento das medidas de contenção, na entrevista, Fauci reiterou que “não será como [apertar] um interruptor de luz”, dependerá da situação em cada área do país e tem de ser “gradual”. “Esperamos que até o final do mês possamos ver o que está acontecendo e se os elementos nos permitem reiniciar a atividade com segurança”, disse o Dr. Anthony Fauci, à CNN. “Caso contrário, continuaremos a isolar”, acrescentou.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), na semana passada, emitiu orientação sobre a retomada da economia e decorrente afrouxamento das medidas de quarentena, advertindo sobre os cuidados necessários com relação às únicas ações efetivas em uma situação na qual não há vacina nem tratamento, e onde o achatamento da curva de contágio é imprescindível para evitar que o sistema hospitalar (e os cemitérios) entrem em colapso, como tem sido presenciado de forma dramática na Itália.
“Em primeiro lugar, que a transmissão [do coronavírus] esteja controlada; em segundo, que estejam disponíveis serviços de saúde pública e médicos suficientes; terceiro, que os riscos de surtos em localizações especiais com abrigos de idosos estejam minimizados; que medidas preventivas sejam colocadas nos locais de trabalho, escolas e outros lugares onde as pessoas precisam ir”.
Como já estaria na hora de colocar em pauta a reabertura da economia com “um big bang”, quando os EUA estão em plena pandemia de Covid-19 e, para quase 600 mil contágios, há apenas 43 mil altas e os mortos são mais de 23 mil? Nas últimas 24 horas, foram registrados quase 26 mil novos casos de covid-19 e quase 1.500 mortos.
“NÃO É HORA DE BAIXAR A GUARDA”
A OMS tem sido insistente em que é preciso manter a política de distanciamento entre as pessoas, para conter a disseminação da doença, achatar a curva de contágio e evitar o colapso das UTIs, bem como “testar, testar e testar” para isolar e tratar os enfermos.
Na semana passada, o diretor regional da OMS para a Europa, Hans Kluge, afirmou peremptoriamente que “não está na hora de relaxar medidas … não é hora de baixar a guarda”, advertindo sobre o perigo de uma ressurgência da pandemia. Como visto na ‘gripe espanhola’ de 1918-1919, que matou milhões.
O chefe do CDC – o órgão federal de combate às epidemias -, Dr. Robert Redfield, ressaltou que para a reabertura da economia os EUA precisam primeiro “aumentar substancialmente” a capacidade do sistema de saúde pública de “identificar cedo” os casos de contágio, de realizar o “isolamento dos doentes” e de “rastrear” seus contatos.
O governador do estado de Nova Iorque, Andrew Cuomo, cujo estado foi mais afetado do que qualquer outro dos EUA pela Covid-19, disse que o número de mortes estava “se estabilizando a uma taxa horrenda”, entre 777 e 799 nos últimos dias. “As pessoas estão perguntando quando isso vai acabar” e pedindo “alguma certeza, algum controle da sua vida de volta”, descreveu.
“IRREALISTA”, DIZ WASHINGTON POST
Trump, na verdade, só parou de praticar roleta russa com a vida e a saúde de 300 milhões de norte-americanos e fez meia-volta admitindo o “fique em casa”, após Nova Iorque já estar rumo ao colapso e Wall Street quase quebrar em março.
Passada a aprovação do megapacote que resgatou Wall Street, Trump está de volta à sua idéia fixa de desmanche do distanciamento social a duras penas instituído no país, ainda que precário.
O embate já está posto nos principais jornais norte-americanos. O Wall Street Journal endossou Trump com sua manchete “EUA pondera quando reiniciar a economia” – embora notando que autoridades no país e por toda a parte “manifestaram preocupação de que movimentos para aliviar o fechamento que devastou a economia global possa desencadear novos surtos da doença”.
O Washington Post estampou: “Reabrir a economia em 1º de Maio pode ser irrealista, dizem experts, inclusive alguns do governo”.
Como notou o portal Axios, o Fed tem sido muito eficaz quando se trata de salvar Wall Street e lerdo, muito lerdo, para resgatar ‘Main Street’, a economia produtiva. Muitos trabalhadores não vão ver o cheque emergencial antes de setembro, os uberizados estão sendo escanteados na ajuda, as pequenas empresas foram largadas na dependência dos bancos particulares, que são os operadores dos US$ 350 bilhões que foram destinados para o setor.
GOVERNADORES E PREFEITOS
Sem dúvida, o pano de fundo da disputa é a reeleição – ou não – de novembro. Já há, entre os correligionários do trumpismo, quem ache que o presidente bilionário está se desgastando com o talk show diário da Covid-19, onde não diz coisa com coisa.
Na sexta-feira Trump voltou a dizer que “certamente ouvirá” as recomendações dos especialistas de saúde sobre o que chamou de “mais difícil” decisão que já fez, e que poderá levantar as ordens de ficar em casa em diferentes partes dos EUA, embora dizendo que o distanciamento será mantido nos focos da doença.
O fato de, há décadas, nenhum presidente dos EUA ter sido reeleito com a economia sob recessão, deve ser uma motivação muito forte para a campanha de Trump da “reabertura com um big bang”.
Na semana passada, uma empresa de processamento de carne teve de fechar, após centenas de trabalhadores contagiados com a Covid-19. O que dá uma dimensão dos empecilhos para esse tipo de “reabertura”.
Enquanto Trump marcha nesse descaminho, governadores democratas e inclusive alguns republicanos têm estendido a data da quarentena, caso do Connecticut, Michigan, Ohio, Virginia e Nova Jersei.
Há ainda a questão de que o contágio está se estendendo a mais áreas e modelagens da epidemia supõem que Estados como Flórida, Texas, Arizona, Geórgia e Iowa viverão seus piores momentos após abril.
“Devemos trabalhar para achatar a curva – juntos como uma comunidade. Continue ficando em casa. Mantenha o distanciamento”, postou o governador Ned Lamont após estender a quarentena até pelo menos 20 de maio. “Não é hora agora de tirar o pé do acelerador”.
A governadora do Michigan, Gretchen Whitmer, que dirige um Estado que tem o terceiro maior número de casos da Covid-19 no país, disse que o Estado se defronta com “níveis perigosamente baixos” de medicamentos e ventiladores e esticou a ordem de ‘ficar em casa’ até 30 de abril.
“Não é tempo de recuar”, disse a governadora. “Depende de cada um de nós fazer a sua parte. Salvaremos vidas aqui em Michigan”.
O prefeito democrata de Nova Iorque, Bill de Blasio, anunciou no sábado que fecharia as escolas até o fim do ano letivo [até julho].
Indagado sobre as expectativas de Trump de reabertura da economia, o governador da Virginia, o democrata Ralph Northam, que estendeu o “fique em casa” até 10 de junho, observou que há uma tensão entre “aspirações” e sua sustentação “pela ciência”.
“Ninguém lá fora quer que nos voltemos à nossa vida normal mais do que eu, mas também temos que lidar com a realidade”. “Eu sou médico. Eu compreendo a importância de manter as pessoas saudáveis. Então, estou de olho nos dados … meu trabalho como governador é manter os virginianos seguros”.
Advertências similares partem dos governadores republicanos. O governador de Ohio, Mike DeWine, que estendeu a quarentena até 1º de maio, afirmou que “temos que continuar fazendo isso”. Ele acrescentou que “testagem robusta” deveria ser “absolutamente necessária para colocar as pessoas de volta ao trabalho”. “Estamos indo bem, mas não podemos deixar esse monstro crescer”.
Quando perguntado quem faria o chamado para reabrir a economia, DeWine disse que “historicamente, questões de saúde como esta são manejadas pelos governadores, pelos prefeitos, e eu acho que é isso que geralmente o povo espera”.
Na sexta-feira, após Massachusetts ter seu pior dia em número de contágios, o governador republicano Charlie Baker alertou que o Estado “estava ainda na encosta de subida” e “prestes a entrar no mais difícil período que iremos fazer frente”. Ele estendeu a orientação de quarentena até o dia 4 de maio.
A alegação de Trump de que controla sozinho o processo de reabertura da economia também foi contestada por Eric Garcetti, prefeito democrata de Los Angeles, cidade que estendeu a quarentena até pelo menos 15 de maio.
Ele ressaltou que a decisão – que será tomada na região em consulta com outras cidades, condados e governo estadual – depende de que se saiba que porcentagem da população adoeceu ou é portadora da Covid-19, com base em testes de anticorpos e outros testes.
Garcetti acrescentou que, antes que as cidades possam retomar as atividades não essenciais, é preciso que o governo federal aja rápido e conceda uma ajuda maior”, o que já veio “não é o bastante”, nem chegou “rápido o bastante”.
PROFISSIONAIS DA SAÚDE SEM PROTEÇÃO
Na sexta-feira, em uma entrevista Trump tentou negar que haja escassez de equipamentos de proteção e ventiladores nos hospitais dos EUA: “fake news”. Foi contrariado pelo governador republicano de Maryland , Larry Hogan, que encabeça a Associação Nacional de Governadores: “o problema número 1 que nós temos é a falta dos equipamentos de proteção”.
Com mais de 58 mil casos de Covid-19 – só fica atrás de Nova Iorque – Nova Jersey, segundo seu secretário de saúde, só tinha uma reserva de 61 ventiladores nos estoques do estado. “Estamos literalmente no fio da navalha”, disse o governador, o democrata Phil Murphy.
O que os governadores relataram ganha contornos mais dramáticos nas vozes do pessoal da saúde. Máscaras N95 usadas ininterruptamente durante cinco plantões; enfermeiros obrigados a retornar ao serviço sem saberem se estão contaminados com a Covid-19, depois de só sete dias em casa, por falta de testes; plásticos improvisados como aventais. Num hospital de Detroit, acabaram os sacos de corpos.
Estudo da Universidade Loyola Marymount assinalou ao “Mr. Presidente, Congresso, prefeitos”, que se vocês querem reabrir a economia “façam o trabalho de obter os profissionais de saúde pública que possam monitorar e detectar [a Covid-19], consigam os testes para que saibamos quem é imune e quem não é, e então a população que não estiver imunizada poderá potencialmente trabalhar em ambientes sob novas regras.”
Para o governador Cuomo, do jeito que está, o debate sobre reabrir a economia “mais cedo ou mais tarde” tornou-se “corrosivo”. Não haverá uma verdadeira retomada da economia sem o estado de Nova Iorque. “Você acha que vai reabrir a economia sem o motor da área metropolitana de Nova Iorque? Você está de brincadeira consigo mesmo”. A mesma coisa poderia ser dita sobre a Califórnia.
Cuomo também citou Winston Churchill para descrever onde ele acha que os EUA estão agora em relação à pandemia: “não é o fim. Não é nem mesmo o começo do fim, mas é, talvez, o fim do começo”.