O Vietnã, nação de 100 milhões de habitantes – ou seja, quase a metade da população brasileira –, país que faz fronteira com a China, apresenta uma das mais bem sucedidas superações da pandemia provocada pelo Covid-19. Por quê?
No artigo “Hanói vence outra vez”, Wagner Lacerda Dantas, brasileiro que está na cidade vietnamita de Hai Du’o’ng há três meses, ressalta que “a resposta pode ser encontrada tanto nas ações rápidas do governo quanto na história e na cultura do país.”
“O Vietnã foi palco de muitas guerras durante o século XX e saiu vitorioso do principal conflito, no qual enfrentou os Estados Unidos. Dessas lutas, os vietnamitas tiraram inúmeras lições. Uma delas é que, para vencer, é preciso estar unido”, assinala Wagner e disse que se sente “no lugar mais protegido do mundo”.
E não é por acaso. Na sexta-feira, 12, a Universidade Johns Hopkins, entidade que faz um dos levantamentos internacionais sobre a doença mais rigorosos, registrou um total de 332 casos confirmados de Covid-19 e nenhum morto no país.
“O Vietnã começa agora a retomar a vida normal. Mas tudo é feito com cuidado, passo a passo. O uso da máscara ainda é obrigatório”, relata o brasileiro.
A seguir a íntegra do artigo publicado originalmente na revista Piauí:
HANÓI VENCE OUTRA VEZ
Uma das batalhas mais bem-sucedidas do mundo contra o novo coronavírus
WAGNER LACERDA DANTAS de Hai Du’o’ng
Deixei Wuhan, na China, epicentro inicial da Covid-19, uma semana antes de isolarem a cidade, no final de janeiro. Eu tinha planejado passar o feriado do Ano-Novo Chinês, no dia 25 daquele mês, em Hai Du’o’ng, no Vietnã, na casa da minha namorada, que é vietnamita. Meu plano inicial era ficar apenas duas semanas e voltar para Wuhan, onde faço um curso de mandarim avançado na Universidade de Hubei.
Estou em Hai D’o’ng há mais de três meses, e aqui me sinto no lugar mais protegido do mundo. Até 28 de maio, ninguém havia morrido por causa do novo coronavírus no Vietnã, onde o número de casos de contágio (até a mesma data) era assombrosamente pequeno: 327.
Por que essa nação de 100 milhões de habitantes – ou seja, quase a metade da população brasileira –, encostada na China, não foi atingida pela tragédia provocada pela Covid-19? A resposta pode ser encontrada tanto nas ações rápidas do governo quanto na história e na cultura do país.
O Vietnã foi palco de muitas guerras durante o século XX e saiu vitorioso do principal conflito, no qual enfrentou os Estados Unidos. Dessas lutas, os vietnamitas tiraram inúmeras lições. Uma delas é que, para vencer, é preciso estar unido. Aqui, as pessoas atribuem um alto valor à coesão social e estão inclinadas a seguir as determinações do governo socialista, que tem conseguido fazer o país crescer à taxa de 5% ao ano, em média.
No início de fevereiro, quando o novo coronavírus começou a se espalhar pelo mundo, o governo do Vietnã logo tratou de fechar a fronteira de cerca de 1.200 km com a China e suspender os voos para lá, apesar dos prejuízos que traria a suspensão parcial dos laços com um de seus maiores parceiros comerciais.
O governo também fechou as escolas, passou a medir a temperatura das pessoas nos locais públicos e tornou obrigatório o uso de máscara, que começou a produzir em grande escala e a distribuir gratuitamente. Em lugares estratégicos, instalou cabines de desinfecção que lançam nas pessoas uma fumaça de ozônio capaz de matar 90% dos vírus e bactérias, segundo especialistas. Para identificar rapidamente os casos positivos de contágio, criou um aplicativo no qual cada casa cadastrava o estado de saúde dos seus moradores.
No início, os vietnamitas, como todos os povos, ficaram apreensivos e com medo. Uma de suas primeiras reações foi correr aos supermercados e estocar alimentos. Mas, em mensagens transmitidas a todos os celulares do país, o presidente Nguyễn Phú Trọng e o ministro da Saúde, Nguyễn Trương Sơn, garantiram que não haveria desabastecimento e pediram calma à população. A situação nos supermercados, pouco a pouco, voltou ao normal e, de fato, não houve escassez de produtos.
Em março, as autoridades fecharam várias lojas e centros comerciais e pontos turísticos. O Exército foi convocado para distribuir alimentos aos mais necessitados, que também receberam um auxílio financeiro distribuído pelo Estado e doações da população e de empresas. Como as coisas seguiram um bom caminho no Vietnã, o governo acabou doando máscaras e equipamentos para vários países do mundo, inclusive para os Estados Unidos.
Vivo atualmente num sítio na zona rural de Hai D’o’ng, cidade a cerca de uma hora e meia de carro da capital Hanói. Passei a quarentena estudando pela internet, escrevendo um romance, fazendo vídeos para meu canal no YouTube (Vavalingrado) e ajudando minha namorada, Hue D’o’ng, a cuidar da plantação de goiaba no sítio de sua família. Às vezes, vamos ao centro da cidade para fazer compras.
Como não falo vietnamita, minha namorada é minha intérprete no país (nos comunicamos em chinês). É ela quem me conta o que está sendo transmitido pelos vários alto-falantes instalados nos postes das ruas, um sistema antigo de comunicação, da época da Guerra do Vietnã (1955-75), quando teve papel fundamental na luta contra os invasores norte-americanos. Até hoje serve para transmitir à população os avisos e notícias oficiais. E o faz de maneira muito eficiente, porque as pessoas não podem desligá-lo, como fariam com uma tevê, nem deletar a mensagem sem tomar conhecimento, como no celular. Quando o país implantou as medidas de proteção contra a Covid-19, era pelos alto-falantes que o governo alertava, por exemplo, sobre o uso obrigatório de máscara e a multa em caso de desobediência.
Em 12 de março, tive que viajar para fora do Vietnã, a fim de renovar meu visto, que tinha duração de apenas um mês. Escolhi a Tailândia, onde brasileiros não precisam de visto e eu tenho amigos. Ao retornar, fui obrigado a permanecer catorze dias isolado num apartamento do governo perto da entrada de Hai Du’o’ng.
Ao voltar para a casa da minha namorada na zona rural, encontrei o pai dela tomando chá ao lado de um policial, que esperava para conferir a minha temperatura e saber como eu estava. Os dois já sabiam que eu estava prestes a chegar, graças a um aplicativo chamado Zalo, parecido com o WhatsApp, por meio do qual a polícia notifica os habitantes sobre novidades na região, como a chegada de um estrangeiro.
O pai da minha namorada, Du’o’ng Van Manh, me ensinou um bonito poema de Ho Chí Minh, o líder revolucionário comunista que faria 130 anos em 2020 e foi responsável pela criação do Vietnã moderno (ele ficaria orgulhoso de seu país atual). O poema tem muito a dizer sobre os dias que correm: Tudo muda, a roda/da grande lei gira sem pausa./Depois da chuva, bom tempo./Em um piscar de olhos,/o Universo retira suas roupas sujas./Por dez mil milhas,/a paisagem se estende como/um precioso brocado./Luz do sol delicada./Brisa leve. Flores sorridentes/pairam nas árvores,/entre as folhas cintilantes,/todos os pássaros cantam./Homens e animais renascem./O que pode ser mais natural?/Depois da dor vem a alegria.
O Vietnã começa agora a retomar a vida normal. As escolas já reabriram, assim como os bares, restaurantes e lojas. Mas tudo é feito com cuidado, passo a passo. O uso da máscara ainda é obrigatório.
Não sei quando poderei voltar a Wuhan para o meu curso de mandarim, porque a China suspendeu os vistos de estrangeiros. Por enquanto, assisto às aulas online. Na maior parte do tempo livre, sigo vivendo como um camponês vietnamita e cuidando das goiabeiras, que estão cada vez mais vistosas.
Para mais detalhes sobre medidas do governo vietnamita contra a Covid-19 veja também matéria que publicamos no HP:
A história de luta dos vietnamitas é emocionantes, parabéns tudo de bom para este povo. abraços…