
Para o coordenador de resgate do Aquarius, Aloys Vimard, a Europa abdicou de salvar vidas no Mar e não hesita em encurralar imigrantes na Líbia, onde há mercado de escravos.
O “acordo sobre imigração”, recém anunciado pela União Europeia, após reunião de seus líderes em Bruxelas, que entrou pela madrugada de sexta-feira (29), não passa de um pacto para “bloquear as pessoas às portas da Europa”, afirmou a diretora de situações de emergência da entidade Médicos Sem Fronteiras (MSF), Karline Kleijer. Esta semana, navios lotados de refugiados, salvos das águas do Mediterrâneo, vagaram dias a fio sem poder aportar onde quer que fosse, quase numa antecipação do resultado da cúpula.
“Os únicos componentes nos quais os Estados europeus parecem ter-se posto de acordo são, por um lado, o bloqueio de pessoas às portas da Europa, qualquer que sejam sua vulnerabilidade e os horrores dos quais fogem e, de outro, a demonização das operações não governamentais de busca e resgate”, disse Kleijer à France Presse.
Nos pontos centrais do acordo, a solidariedade com os imigrantes e refugiados será “voluntária”, ou seja, ninguém está obrigado a nada; quem for resgatado em “águas europeias” irá para “centros controlados de imigrantes em solo europeu” – leia-se campos de concentração -, e conforme expõe o documento da reunião, deve-se “explorar rapidamente o conceito de plataformas regionais de desembarque”, cínica forma de se referir a campos de concentração em solo africano. Nessas plataformas e centros, se procederia à “diferenciação dos imigrantes, respeitando plenamente a lei internacional”.
Para disfarçar que estão estendendo a outros locais os campos de concentração que já estão funcionando na Líbia, e onde é comum o tráfico de escravos, a cúpula insistiu em que essas “plataformas de desembarque” seriam feitas em cooperação com “terceiros países, a agência da ONU para Refugiados (Acnur) e a Organização Internacional para as Migrações (OIM)”.
Marrocos já se pronunciou contra tais “plataformas”. Leonard Doyle, da Organização Internacional para Migração da ONU, recusou a ideia de “centros de processamento externos, esse é o ponto-chave”. Ele acrescentou que os centros de desembarque “precisam ser na Europa” e não podem ser na Líbia “devido à insegurança”.
O frágil consenso que emergiu de Bruxelas tenta se passar por preocupação com os refugiados e as “perigosas travessias do Mediterrâneo”, mas a questão decisiva é parar o êxodo para a Europa, provocado pelas guerras que foram as próprias potências imperialistas que insuflaram, como contra a Líbia e a Síria, e a miséria desencadeada pelas malsinadas políticas econômicas neoliberais e o neocolonialismo. Como disse o Papa Francisco, a independência foi só do solo para cima, não incluiu o subsolo, e depois reclamam que “os africanos famintos” acorram a cruzar o Mediterrâneo.
O presidente francês Emmanuel Macron disse que esses “centros controlados” – aqueles destinados aos que chegarem a águas europeias – funcionarão sobre uma “base voluntária nos países na linha de frente”. Ele descartou que um desses seja aberto na França. A principal função desses centros seria fazer a triagem de quem chega, para acelerar a deportação. Ou, como se refere a proposta, “selecionar aqueles que poderão pedir asilo e os que serão devolvidos a seus países de origem”.
A primeira-ministra alemã, Ângela Merkel, estava sob enorme pressão, com seu ministro do Interior ameaçando rompimento caso não se chegasse a um acordo para fechar as portas da Europa aos refugiados e imigrantes. O novo primeiro-ministro espanhol, Pedro Sanchez, que abriu a Espanha aos refugiados do barco Aquarius, admitiu que “não é o melhor dos acordos”.
Giuseppe Conte, o novo primeiro-ministro italiano da coalizão Liga-5 Estrelas, ameaçou vetar a declaração final da cúpula, se não fosse considerada a gravidade com que a crise de imigração atinge a Itália, que em geral é o primeiro ponto da Europa a ser alcançado pelos sobreviventes da travessia do Mediterrâneo. Comemorou: “hoje a Itália não está mais sozinha”. O novo governo italiano fez da imigração um dos principais fatores para sua vitória nas recentes eleições.
O presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, disse que ainda é “muito cedo” para classificar como bem-sucedido o acordo firmado pela cúpula sobre imigração, advertindo que aplicá-lo na prática é “a parte mais difícil”.
Tusk fez questão em vestir a carapuça mostrada pelas entidades que salvam vidas de refugiados no Mediterrâneo e agora estão sendo perseguidas de forma descarada. “Também queremos enviar uma mensagem clara a todos os barcos, incluindo os das ONGs que patrulham no Mediterrâneo, que devem respeitar a lei, e não obstaculizar as operações da Guarda Costeira líbia”, afirmou. Como se a mesma Guarda Costeira não fosse a principal fornecedora de carne humana para o tráfico de escravos que o bombardeio da Otan e destruição da Líbia proporcionou.
Pelo Twitter, Macron descreveu sucintamente o monstrengo parido em Bruxelas: “uma abordagem europeia foi confirmada, uma agenda completa acordada (ação externa, proteção de fronteiras, responsabilidade pela solidariedade europeia)”.
Poucas horas após o término da cúpula europeia, mais 100 pessoas morreram em um naufrágio nas costas líbias, inclusive três bebês. Apenas 16 pessoas foram resgatadas. Barcos humanitários na região, que poderiam ter enviado lanchas rápidas capazes de chegar lá em “um par de horas”, não foram acionados pelo centro de controle de Roma.
Como denunciou o coordenador do resgate a bordo do Aquarius, Aloys Vimard, “a União Europei abdicou de assumir sua responsabilidade de salvar vidas no mar. Estão condenando as pessoas a suportar uma situação desumana na Líbia ou a morrer no Mar. Há dois meses esses mesmos governos europeus condenavam que houvesse mercados de escravos na Líbia, mas agora parece que não hesitam em deixar encurralada toda essa gente na Líbia”.
ANTONIO PIMENTA