Nada é tão repulsivo quanto o servilismo. A manifestação do empresário agropecuário argentino Gustavo Grobocopatel sobre o recente “acordo de associação estratégica” Mercosul-União Europeia fala por si: “Devemos permitir que haja setores que desapareçam”, afirmou o denominado “Rei da soja”, assentindo com a eliminação de toda e qualquer barreira de proteção à desova de produtos estrangeiros.
Para o dono da firma Los Grobo, é preciso “tratar de ser cada vez mais Europa”, permitindo que sobrevivam tão somente as empresas nacionais “se são competitivas”. A receita para conseguir aumentar a “competitividade”, esclarece o fiel escudeiro de Maurício Macri: baixar impostos e realizar “reformas nas leis trabalhista e de seguridade social”. Ou seja, reduzir a capacidade do Estado, arrochar salários e suprimir direitos dos trabalhadores para impulsionar a exportação de produtos com baixíssimo valor agregado.
De acordo com o empresário, um dos três maiores produtores de trigo e de soja argentinos, é preciso focar nos setores em que os países do bloco (Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai) têm capacidade de disputa. “Em vez de vender trigo, vamos poder vender massas. Em vez de azeite cru, uma latinha com marca”. O horizonte de uma servil percepção agroexportadora, de reprimarização e desindustrialização é a latinha com marca.
Sendo assim, por que no caso brasileiro pensar o nióbio para a produção de foguetes ou de ligas supercondutoras, se podemos inundar a Europa de bijuterias?
Nas palavras de um opositor à política de submissão impulsionada entusiasticamente por Bolsonaro e Macri, a postura explicitada por Grobocopatel nada é mais do que a expressão de um setor do capital financeiro que se dedicou a semear soja como parte de seus negócios. “O dia que diminua a rentabilidade destas commodities, esta gente passará de novo, e plenamente, a dedicar-se à especulação. Incorporaram até o tutano a lógica de que o grande come o pequeno, como se as atividades humanas se parecessem às animais. Se um setor morre pela competição (e os subsídios estatais) dos países mais ricos, pouco importa, não é a vida deles, que têm assegurado seu futuro nas cavernas fiscais do Caribe. Não estão ligados à terra, como muitos trabalhadores rurais. Estão ligados ao lucro fácil, como único bem possível. Isso não é novidade, por isso é preciso que lhes imponhamos limites. Nisso jogamos a nossa existência e a das próximas gerações”.
Colocada a denúncia, reproduzimos o artigo do renomado jornalista e economista argentino Alfredo Zait, publicado no site Página 12, esmiuçando a falsidade do acordo UE-Mercosul e a grosseira manipulação, no caso do país vizinho, para tentar inflar a subserviente candidatura de Macri.
Leonardo Severo
“O acordo UE-Mercosul é fake”
ALFREDO ZAIAT
As letras miúdas do acordo Mercosul-União Europeia não são conhecidas. Os principais afetados, a favor e contra, não foram consultados. As autoridades do governo dizem que agora se reunirão com eles para dizer o que está sendo assinado em Bruxelas. Um governo que se orgulha da abertura ao diálogo e ao consenso avançou em uma negociação, dominada pelo sigilo, que pode definir a matriz produtiva do país, ignorando a opinião de industriais e trabalhadores de setores sensíveis.
Este comportamento se entende na firme convicção do presidente Mauricio Macri de que a indústria argentina é antiga, como se disse a vários dos principais donos de grandes empresas fabricantes de manufaturas e, portanto, não merece ser considerada como prioritária. Um desprezo que mistura ignorância sobre como os países se desenvolveram e uma rivalidade não resolvida com seu pai industrial. Franco faleceu; agora é a vez de acabar com a indústria e será mais reconfortante para ele se em primeiro lugar se encontra a empresa automotiva onde o grupo Macri foi um de seus protagonistas com Sevel (Franco expulsou o filho Mauricio dessa empresa por causa da escassa capacidade demonstrada na administração do negócio). Por enquanto, esse objetivo já o está cumprindo porque o setor está sendo destruído em seus anos de governo.
Outro motivo para explicar este acordo é que a administração macrista responde aos interesses dos maiores atores do agronegócio, que parecem ser inicialmente beneficiados do acordo com a UE. Um dos principais representantes dessa atividade, Gustavo Grobocopatel, atuou como porta-voz desse grupo com uma militância fanática a favor do macrismo.
Devemos acrescentar uma razão mais rústica e de curtíssimo prazo: aplicar um golpe de marketing político com o objetivo de ter algo para mostrar nesses meses de eleições em uma frente que acumulou uma sucessão de fiascos estrepitosos nesses três anos e meio de economia macrista. Este último tem sido tão evidente que resulta grosseiro repetir slogans disseminados pela rede de propaganda pública e privada acerca do caráter histórico de um acordo que não foi assinado.
O rebanho de economistas liberais deveria ser mais prudente para celebrar o anúncio do governo se depois não quiser ser associado ao fracasso do outro experimento neoliberal, como aconteceu durante a administração de Alfredo Martinez de Hoz na última ditadura militar e de Domingo Cavallo durante o menemismo. Se é pela bandeira ideológica do livre comércio, isso lhes servirá para um debate econômico que atrasa um século; mas se eles têm a expectativa de que existe um acordo já selado, se chocarão novamente contra o muro do marketing político do oficialismo.
O macrismo, sendo fiel à sua essência, apresentou uma instância da negociação como se fosse um marco histórico, quando na verdade o acordo não foi assinado, mas definidas linhas gerais. Condições que, respondendo também à natureza da Alianza Cambiemos, beneficiam excessivamente à contraparte (os europeus) com a ilusória esperança de conseguir a simpatia de capitais estrangeiros para investir no país.
Um dos negociadores do acordo Mercosul-União Europeia no governo anterior, Carlos Bianco, ex-secretário de Relações Econômicas da Chancelaria, ilustrou com um exemplo “o desastre” – como o qualificou – do pactado, na rádio El Destape. Em 2004, o Mercosul solicitou que a União Europeia autorizasse a entrada de 400 mil toneladas de carne; a contra-oferta foi 100 mil toneladas. Em 2010, sem progresso nesse ponto, definiu-se que nenhuma oferta europeia posterior poderia ser inferior a essas 100 mil toneladas. De acordo com o que foi divulgado, agora o Mercosul passou a aceitar 99 mil toneladas. Não somente não subiram a cota, mas também estão abaixo do mínimo já estabelecido. Bianco revelou que falou com um dos negociadores argentinos e que ele disse que o acordo tinha que ser fechado porque “dizem isso de cima (se referindo a Macri) para fazer o anúncio” para as eleições.
As “fake news” são emitidas com a intenção deliberada de enganar, induzir ao erro, manipular, desprestigiar para obter um retorno econômico ou político. O anúncio do acordo Mercosul-UE feito pelo macrismo enquadra-se na definição de fake: algo falso que não é o que aparenta. Não é um acordo final; a letra miúda não se definiu; o que avançou se mantém em segredo; é um anúncio político em tempos de campanha eleitoral; não tem benefícios gerais para a economia argentina; aumentarão as importações e as exportações diminuirão porque se perderá o mercado brasileiro nas mãos dos europeus. A celebração oficial do acordo Mercosul-UE é fake.