Cancelando Dostoiévski ou Tchaikovsky, o Ocidente não tira nada da Rússia – apenas de si

Ninguém cancela os expoentes da cultura, eles "são patrimônio do mundo", afirma a poeta Yunna (Divulgação)

YUNNA PETROVNA MORITZ*

Durante a Grande Guerra Patriótica, Goethe não foi retirado de nenhuma biblioteca soviética. Nenhuma orquestra excluiu Wagner do repertório. E hoje a Rússia também não recusa Taras Shevchenko ou Lesya Ukrainka.

Ninguém cancela Twain e Dreiser. Ninguém pensa em expulsar O’Henry das bibliotecas. Ninguém jamais cancelará William Shakespeare e Oscar Wilde, ambos ingleses, e um deles homossexual.

Nós os amamos e vamos continuar a amar. Nós os valorizamos não por causa de sua nacionalidade, orientação sexual ou atitude em relação à escravidão. Mas porque eles são mais do que britânicos ou americanos, mais do que adeptos de qualquer visão política.

Eles são patrimônio do mundo. E a nossa cultura também. Ao aceitar amostras da cultura mundial, não empobrecemos a nossa, mas a enriquecemos.

Ao cancelar Dostoiévski ou Tchaikovsky, o Ocidente não tira nada da Rússia – apenas de si mesmo.

Porque estamos falando de um patrimônio mundial para o qual contribuíram os americanos, os britânicos, os russos e representantes de muitos outros países. Tolstoi e Bulgakov não se importam como são tratados no Ocidente. Eles não podem ser menosprezados ou humilhados.

Porque os imortais não se importam com querelas politizadas. Você não os está cancelando, você está cancelando uma parte da grande cultura em si mesmo. E a Rússia nunca desistirá de Shelley, Villon ou Salinger. Não somos idiotas.

* Poeta e tradutora, nascida em Kiev, na União Soviética, de uma família judia, 83 anos. Agraciada com Prêmio Andrei Sakharov de Coragem Cívica do Escritor, concedido a personalidades vistas como ‘dissidentes’. Teve seu talento reconhecido em 1961 com ‘O Cabo do Desejo’, baseado em sua jornada a bordo de um quebra-gelo do Ártico. Conhecida também por seus livros de poesia para crianças de “5 a 500 anos”. Traduziu para o russo Federico García Lorca e Oscar Wilde. Em 1999, escreveu o poema “A Estrela da Sérvia”, em reação ao bombardeio de Belgrado pela Otan: “A guerra já está em andamento/ Não com os sérvios, mas conosco”.