Dois anos e meio após o crime bárbaro, militares que dispararam 257 tiros de fuzil contra carro em Guadalupe, matando Evaldo Rosa e o catador de recicláveis Luciano Macedo, foram condenados a mais de 28 anos de prisão
A Justiça Militar da União (JMU) condenou oito militares do Exército pelos homicídios do músico Evaldo Rosa e do catador Luciano Macedo, em Guadalupe, na Zona Norte do Rio, dois anos e meio após o crime que aconteceu em 7 de abril de 2019.
A condenação de oito dos 12 militares envolvidos foi aceita após pedido do Ministério Público Militar (MPM). O julgamento durou mais de 15 horas, tendo começado às 9h de quarta-feira (13) e terminado por volta da meia-noite desta quinta-feira e foi marcado por um clima tenso. A viúva de Evaldo, Luciana dos Santos Nogueira, chegou a passar mal durante a audiência.
O episódio ficou conhecido como caso dos “80 tiros“, em referência ao número de balas que atingiu o carro em que estava Evaldo e a família dele.
Edvaldo foi morto a caminho de um chá de bebê com a família quando teve o carro atingido por mais de 80 tiros na Estrada do Camboatá, em Guadalupe. O grupamento militar teria, supostamente, confundido o carro do artista com o de criminosos. O laudo da perícia aponta que teriam sido disparados 257 tiros pelos militares.
À época, Jair Bolsonaro demorou seis dias para se pronunciar sobre o crime, que ele qualificou como um “incidente”.
Além de Evaldo e do sogro Sérgio Gonçalves de Araújo, que foi atingido por uma bala, mas sobreviveu, também estavam no veículo o filho de sete anos do músico, a esposa dele e uma amiga da família – que não foram atingidos pelos disparos.
Evaldo morreu na hora, mas seus parentes conseguiram escapar. Luciano, que estava nas proximidades e tentou ajudar a família, acabou sendo também baleado e morreu dias depois.
“Hoje vou chegar em casa, tomar um banho e vou conseguir dormir. Vou agarrar o meu filho e contar tudo para ele. Hoje o Davi estaria aqui, mas passou mal e achou melhor não vir. Quero dizer para ele que mamãe foi guerreira, sempre se manteve de pé por mim e por você, te amo. Como seu pai dizia, ele era nosso alicerce, nossa base, mas hoje minha base é você. Infelizmente você não vai ter um pai velhinho, mas eu quero te dizer que todos os dias eu dobro meus joelhos e peço a Deus para que ele possa te dar a oportunidade de te dar uma mãe velhinha”, desabafou a viúva de Evaldo.
“Enquanto eu existir, você não estará só. Eu vou fazer o papel do seu pai se ele estivesse aqui faria. Ele sempre falava ‘o meu filho vai ser um homem de bem’, então eu vou honrar e onde o Duda estiver, ele vai ficar feliz de nós”, disse Luciana em homenagem ao filho Davi de 9 anos que viu o próprio pai ser morto pelos militares.
Dayana Fernandes, companheira de Luciano Macedo, acompanhou o julgamento acompanhada da sua filha de dois anos – que o pai não chegou a conhecer. Ela estava emocionada com a decisão: “Estou muito satisfeita, aliviada. Achei muito justa a decisão da juíza, mas meu sentimento agora é alívio e tristeza, de ficar lembrando de tudo isso de novo”, disse a viúva. Com a Ayla no colo e uma blusa estampando a foto do marido, Dayana seguiu para o ponto de ônibus para retornar para casa.
A pena
O chefe da operação, o tenente Ítalo da Silva Nunes, recebeu a maior pena e foi condenado a 31 anos e seis meses por duplo homicídio e tentativa de homicídio, já que havia outras pessoas dentro do veículo. Nunes foi responsável pela maior parte dos 82 tiros que atingiram o carro de Evaldo. De acordo com laudo pericial, 652 partículas de pólvora foram encontradas em sua mão. Ele também foi o primeiro a atirar.
Outros sete militares receberam pena de 28 anos pelos mesmos crimes. São eles: o sargento Fábio Henrique Souza Braz; o cabo Leonardo Oliveira; o soldado Gabriel Christian Honorato; o soldado Matheus Sant’Ana; o soldado Marlon Conceição; o soldado João Lucas Costa Gonçalo; e o soldado Gabriel da Silva de Barros.
Quatro militares julgados foram absolvidos porque, segundo as investigações, não efetuaram nenhum disparo contra o carro de Evaldo. São eles: Vitor Borges Barros; William Patrick Nascimento, motorista da viatura; Paulo Henrique Araújo, responsável pela segurança da retaguarda; e Leonardo Delfino Costa, rádio operador.
Luciana não demonstrou insatisfação com a absolvição dos militares que não atiraram. “Acho que não é justo os que não fizeram pagarem pelo erro dos outros”, comentou.
Os acusados continuam em liberdade até a decisão final do Superior Tribunal Militar (STM).
Defesa dos militares tentou responsabilizar as vítimas
A defesa dos acusados apresentou até mesmo durante o julgamento diversas versões para justificar a ação dos militares. Desde a de que o carro de Evaldo teria sido confundindo com o de traficantes, até a de que a segunda vítima, o catador Luciano, seria um bandido e que teria atirado contra a guarnição do Exército.
O advogado Paulo Henrique Pinto Melo, quis justificar que os 12 militares estavam sobre forte tensão da violência, em Guadalupe.
“Os militares não são algozes, eles são seres humanos, como todos os seres humanos. Saindo do quartel, eles vivem dia a dia a violência urbana por todos enfrentada”, alegou o advogado. “Ao condenar esses militares, os senhores vão estar chancelando a condenação da própria Força e nós não estamos aqui simplesmente a buscar uma simples absolvição. Estamos aqui porque vamos demonstrar que esses militares agiram no limite da legalidade”, afirmou o advogado de defesa.
Ele também alegou que os militares haviam livrado dois moradores de uma tentativa de assalto e não teriam disparado contra o músico intencionalmente (267 tiros foram disparados, 82 atingiram o carro de Evaldo).
Nas alegações finais do processo entregues à Justiça Militar em março deste ano, a defesa dos militares argumentou que os réus atuaram em “legítima defesa” e que trafegar pelas ruas do Rio, “naquela época e atualmente, são verdadeiras ‘roletas russas’”.
O advogado disse, na fase final de suas alegações, que o catador de recicláveis teria ainda usado o carro de Evaldo como escudo para atirar contra os militares. “Depois que ele cai, os tiros cessam. Só seria homicídio doloso se os tiros continuassem, mas não foi o caso. O carro foi um artefato de proteção para Luciano fugir. Eu duvido que se ele tivesse levantado os braços para se render, que estaria morto agora”, disse o advogado de defesa.
O advogado também pontuou que Evaldo teria morrido em decorrência de um primeiro disparo, sendo este isolado dos demais vindo dos traficantes. Para isso, a defesa trouxe trechos do depoimento de Sérgio Gonçalves de Araújo, sogro do músico, que estava no banco do carona do carro e também foi baleado, mas sobreviveu, e de um morador do condomínio Minhocão que alegou ter ouvido o tiro e só em seguida ter visto a aproximação da tropa dos militares.
A defesa ainda sugeriu que o carro usado por Evaldo poderia ter sido confundido pelos traficantes locais com um veículo de policiais militares à paisana.
Segundo o advogado dos acusados, o músico passou “por todas as barreiras dos traficantes em dia de guerra na favela” e opinou que, “infelizmente, ele [Evaldo] se coloca em risco juntamente com todos os que estão consigo nessa situação”.
O advogado da defesa também levantou a possibilidade de ‘criminosos de contenção’ da comunidade poderiam ser os autores dos disparos, mesmo sem provas disso.
“O Ministério Público não trouxe nenhuma prova de que o tiro que mata ou pega no carro, tem origem dos militares”, pontuou o advogado de defesa dos militares.
Segundo a defesa dos réus, o músico passou “por todas as barreiras dos traficantes em dia de guerra na favela” e opinou que, “infelizmente, ele [Evaldo] se coloca em risco juntamente com todos os que estão consigo nessa situação”.
Promotoria contestou advogado
A promotoria criticou a linha de defesa, de tentar qualificar as vítimas como criminosos utilizada pelo advogado.
O promotor do Ministério Público Militar (MPM), Luciano Moreira Gorrilhas destacou que o advogado “não enfrenta, em momento nenhum esse fato principal, ele cria um espantalho ataca e demoniza. Totalmente falacioso. A defesa limitou-se a trazer testemunhas que não presenciaram nada. Aquelas sem relevância jurídica, do tipo: ‘ouviu dizer’. A defesa procura desacreditar o acusador. Não enfrenta o fato principal, os tiros deflagrados contra o carro”.
Segundo ele, o advogado de defesa também dá a entender que a denúncia do MP imputa a todo Exército culpa pela ação dos oito militares.
“Quem aqui imputou ao Exército algum fato criminoso? Ninguém. Ela usa o apelo para emocionalmente embaraçar a mente dos senhores juízes militares. Os senhores estão condenando 8 acusados que violaram o código penal”, disse o promotor, que conclui: “A defesa não ataca o fato principal e coloca o Exército no banco dos réus”.
“O Ministério público trabalha com laudo técnicos não com suposições”, disse.
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