Em café da manhã com alguns jornalistas, na quinta-feira, Bolsonaro disse que o Brasil necessita “fazer uma economia” de R$ 800 bilhões com a Previdência em 10 anos, porque seu ministro da Economia, Paulo Guedes, lhe garantiu que essa economia seria um “ponto de inflexão” para o país.
Seria, talvez, um ponto de inflexão para o abismo sem fim.
Mas é pouco provável que Bolsonaro saiba o que quer dizer, realmente, “ponto de inflexão”.
Durante o café da manhã, o ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), contestou que o governo esteja paralisado. O problema é que as pessoas não entendem o caráter do governo: “Estamos mais desfazendo do que fazendo”, explicou Heleno.
Quanto ao vice-presidente, Hamilton Mourão, no momento engalfinhado com os filhos de Bolsonaro (ou vice-versa), disse este último que “como um excelente casamento, se todo mundo disser sim, não vai dar certo. A gente continua dormindo junto. O problema é quem vai lavar a louça no final do dia. Ou cortar a grama”.
Quanto a Paulo Guedes, disse Bolsonaro que ele é a sua “rainha do tabuleiro de xadrez” (ninguém avisou Bolsonaro que, no Brasil, a peça do jogo de xadrez que os americanos denominam “queen” tem o nome de “dama”).
Então, voltemos aos R$ 800 bilhões.
Comecemos pelo mais evidente: se o governo tivesse que fazer alguma “economia”, porque esta teria que ser através de matar aposentados de fome ou impedir que trabalhadores se aposentem?
Como se pode admitir que haja uma discussão onde alguns querem tirar R$ 1 trilhão da Previdência – isto é, das aposentadorias e outros benefícios sociais – e outros se “conformam” em tirar R$ 800 bilhões?
E que outros, ainda, comecem a discutir se a “economia”, de que fala Guedes, é verdadeira ou falsa?
Sem entrar no fato de que, para crescer, precisamos ampliar a capacidade de consumo – isto é, aumentar os salários e aposentadorias, não diminuí-los – por que é da Previdência que eles querem tirar esse dinheiro?
Sempre se poderia responder: porque é lá que há dinheiro, o que expõe a falsidade de Guedes, ao dizer que quer tornar “sustentável” a Previdência.
O que Guedes quer fazer é acabar com a Previdência.
Mas a questão que queremos examinar é outra.
Não é admissível que se faça “economia” exatamente em cima daqueles que trabalharam anos a fio para sustentar este país.
Há certas coisas com que uma sociedade civilizada não pode conviver: por exemplo, ladrões de pirulitos de criança, estupradores de mulheres (ou de homens) e assassinos de idosos.
Por que, então, seria admissível falar-se em “economia” às custas das aposentadorias?
Pois a Previdência não é um ralo, por onde escorre dinheiro público.
A Previdência é o sistema de aposentadoria e proteção social dos que, no Brasil, trabalham. Ela tem uma série de fontes específicas de financiamento, estabelecidas pelas Constituição de 1988. O dinheiro da Previdência não se destina ao Orçamento em geral – e esta é a razão pela qual a Constituição determina que o orçamento previdenciário e da seguridade social seja separado do Orçamento fiscal (aquele que tem por base os impostos, que, por definição – e ao contrário das “contribuições” – não têm finalidade específica).
Então, se o governo quisesse fazer “economia”, a Previdência seria o último lugar a pensar em tirar dinheiro, pois tirar dinheiro daí é matar brasileiros – ou escravizá-los até à morte, por impossibilidade de aposentar-se.
Aliás, seria fácil – se a política fosse, realmente, “economizar” – extrair esse dinheiro de outro lugar.
Nos 10 anos que vão de 2008 até 2018, o setor público transferiu ao setor financeiro, sob a forma de juros, R$ 3 trilhões, 231 bilhões e 483 milhões.
O que é mais de três vezes a “economia” de R$ 1 trilhão que Guedes quer tirar da Previdência nos próximos 10 anos para… dar ao mesmo setor financeiro, esse que já recebeu mais que o triplo disso nos 10 anos anteriores.
Mas essa é uma soma de valores a preços correntes – isto é, sem correção pela inflação.
Corrigidos esses 10 anos (2008-2018) a preços de dezembro de 2018, essa quantia se eleva a R$ 4 trilhões, 96 bilhões e 145 milhões.
Portanto, mais de quatro vezes a “economia” que Guedes quer roubar da Previdência.
No entanto, ele quer tirar da Previdência para dar a quem recebeu quatro vezes mais nos 10 anos anteriores…
É óbvio, por sinal, que o setor financeiro não se contentará com o R$ 1 trilhão que Guedes – ou os R$ 800 bilhões que Bolsonaro – quer lhe proporcionar.
Aliás, ele sabe disso.
REBAIXAMENTO
Há três semanas, Guedes declarou que R$ 1 trilhão era o mínimo, e que, sem isso, o mundo ia acabar (“Eu preciso é do 1 trilhão de reais” ou “Abaixo de de R$ 1 trilhão, você já começa a comprometer”).
Repetiu a mesma coisa diante de uma plateia de Wall Street, nos EUA, faz apenas 15 dias.
Agora, Bolsonaro diz que Guedes “aceita” R$ 800 bilhões.
Como a diferença entre uma coisa e outra são R$ 200 bilhões (na verdade, menos R$ 272 bilhões em relação ao que consta na “exposição de motivos” de Guedes, no seu ataque à Previdência), cabe perguntar:
Que conta de padaria é essa em que R$ 200 bilhões a menos não fazem a menor diferença?
Pois, R$ 272 bilhões é quatro vezes a previsão (não o gasto efetivo, mas a previsão, que é mais alta) do Orçamento federal para as despesas com Ensino, durante um ano (cf. STN, RREO fev/2019, p. 26).
Ou seja, equivalem a quatro anos de verbas federais para o ensino.
Não é pouca coisa, portanto, para ser salivada em um café da manhã, como se nada fosse.
Mas é injusto chamar isso de conta de padaria, pois os padeiros podem fazer contas improvisadas, mas não são, em geral, desonestos – e, mesmo aqueles que o são, não chegam a esse ponto.
Logo, o problema de Guedes e Bolsonaro não é fazer qualquer “economia”, mas arrancarem o quanto puderem da Previdência.
Se não puderem, como não podem, arrancar R$ 1 trilhão e 72 bilhões da Previdência – tal como está na “exposição de motivos” de Guedes – eles se “contentam” com R$ 800 bilhões.
Deve ser porque são muito generosos…
Mas, voltemos à questão: para que arrancar esse dinheiro da Previdência?
Para “pagar” a dívida pública, diz o próprio Guedes, com seu estilo vigarista: para “reduzir o endividamento primário” (v. a “exposição de motivos”, p. 43).
A dívida pública é alta, no Brasil, porque sucessivos governos mantiveram altos os juros básicos – e, por consequência, os juros de toda a economia.
Mas, diz Guedes – sem nenhuma originalidade – que os juros são altos porque os aposentados recebem demais.
Daí, as aposentadorias por tempo de contribuição têm que ser proibidas.
A aposentadoria antes dos 65 anos (62 para as mulheres) tem que ser proibida.
O trabalhador ou a trabalhadora, para perceber apenas 60% da média de suas contribuições, teria que ter, além de 65/62 anos, 20 anos de contribuição.
Para obter 100% da média das contribuições, o trabalhador teria que ter, além da idade mínima de 65 ou 62 anos, nada menos do que 40 anos de contribuição.
O tempo de contribuição, portanto, seria inútil para obter a aposentadoria, mas serviria para dificultar, retardar e rebaixar a aposentadoria.
PRIORIDADE
Da mesma forma, a média das contribuições passaria a ser uma forma de diminuir o valor da aposentadoria, ao incluir no cálculo aquelas contribuições do início da vida de trabalho, contribuições menores, porque correspondem a um salário menor.
Além disso, temos aqui, outra vez, um exemplo de como o roubo precede qualquer fundamentação. Aliás, precede até a matemática elementar:
“Em todas as simulações, pessoas que contribuíram além do mínimo necessário pela nova proposta, mas com salários menores, tiveram o valor de seus benefícios reduzidos mesmo tendo recolhido mais para a Previdência.
“A falha foi detectada por Márcio Carvalho, analista financeiro, doutor em matemática aplicada pela Universidade do Colorado (EUA). Além de Márcio, o Correio ouviu também o financista Fábio Gallo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), que confirmou a distorção.
“Em uma das simulações do matemático (…) ele imagina duas mulheres que nasceram no mesmo ano, mas uma delas começa a trabalhar aos 18 anos, recebendo salário mínimo mensal por cinco anos, enquanto cursa faculdade.
“A segunda mulher começa a trabalhar depois de formada.
“A partir daí, ambas trabalham durante 33 anos, contribuindo pelo teto.
“A moça do primeiro exemplo terá um benefício menor ao se aposentar, a despeito de ter contribuído mais.
“O exemplo de Carvalho derruba o argumento que vem sendo defendido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, segundo o qual, a reforma penaliza as classes mais favorecidas.
“Em outro exemplo simulado por Carvalho, uma pessoa que contribuiu por 20 anos sobre um salário de R$ 4 mil até completar 65 anos terá direito a 60% da média de todas as suas contribuições, logo, seu benefício mensal será de R$ 2,4 mil.
“Por outro lado, alguém que tenha contribuído por 25 anos até completar 65 anos da seguinte forma: 20 anos sobre um salário mensal de R$ 4 mil e mais cinco anos sobre um salário mensal de R$ 1 mil, terá uma situação diferente. Ao se aposentar, terá direito a receber 70% da média de todos os salários de contribuição. Isso porque a PEC propõe adicional de 2% para cada ano trabalhado além dos 20 anos básicos. Logo, seu benefício mensal será de R$ 2.380.
“A situação do último exemplo não é justa, nem coerente”, afirma Carvalho” (v. Cláudia Dianni, Reforma da Previdência é melhor para quem contribui menos, Correio Braziliense, 07/04/2019).
A situação, tanto desses exemplos, como, de resto, em toda a “reforma” de Bolsonaro, somente poderia ser comparada a uma tentativa de roubo com o extermínio das vítimas.
Guedes e Bolsonaro não são os primeiros que tentam algo assim, no Brasil.
São apenas os mais irresponsáveis, os mais sem escrúpulos e os mais opostos à Nação, isto é, ao povo brasileiro.
Não é à toa que nem os seus apoiadores conseguem se entender.
C.L.
Boa noite, sou um leitor do HP e achei um erro no texto, de 1998 a 2018 são 20 anos não 10.
Obrigado, leitor. Foi um lapso. O certo é 2008 a 2018. Já corrigimos.