Ribeiro chegou a comentar o pedido com membros do MEC e também do Inep, órgão responsável pela elaboração do Enem, mas a ordem por não ter embasamento histórico, ou seja, não ser pautada em fatos, a solicitação não foi atendida. A ordem também era de censurar questões sobre igualdade e identidade de gênero, orientação sexual e racismo.
Vale destacar que, desde 2019, quando Bolsonaro assumiu o poder, mais nenhuma questão sobre a Ditadura Militar (1964-1974), tema de História bastante comum nas provas, apareceu no exame. Não curiosamente, Bolsonaro é um defensor assíduo do golpe e dos anos de chumbo. Em diversos momentos de sua carreira política, se demonstrou a favor do fechamento do Congresso, da tortura e já espalhou fake news sobre o assunto, dizendo, por exemplo, que, “graças aos militares, hoje temos democracia”.
Em 2016, quando ainda era deputado pelo Rio de Janeiro, Bolsonaro participou do Programa Pânico, da Jovem Pan, e disse que “o erro da Ditadura foi torturar e não matar”. Ele também já minimizou torturas, que historicamente são comprovadas e aconteceram durante o período militar, e homenageou figuras como o coronel Carlos Brilhante Ustra, um dos torturadores mais temidos da Ditadura brasileira.
Perguntas barradas
As tentativas de Bolsonaro de censurar o Enem não se iniciaram em 2021. A Câmara dos Deputados soube, em fevereiro deste ano, após questionar o Ministério da Educação, que uma comissão montada pelo governo Jair Bolsonaro para avaliar as questões aplicadas no Enem, em 2019, pediu a exclusão de 66 perguntas sem consultar a equipe técnica do Inep.
Na época, um parecer não apresentava o conteúdo das questões, apenas os resultados das análises. Reportagem da revista “Piauí” divulgou as justificativas dessas intervenções e mostrou diversos itens analisados e ‘barrados’ pela comissão.
As questões fazem parte do Banco Nacional de Itens (BNI). Entre elas, 18 eram itens pré-testados e 48 eram itens novos. De acordo com os avaliadores, essas perguntas apresentavam “leitura direcionada da história”, “leitura direcionada do contexto geopolítico”, e “polêmica desnecessária”. Em um dos itens, foi sugerido alterar o termo “ditadura” por “regime militar”.
De acordo com a reportagem da Piauí, a maior parte das perguntas foi censurada por provocar “polêmica desnecessária”. Ao todo, 28 perguntas foram excluídas e substituídas. Entre elas estavam questões sobre gravidez na adolescência, feminismo, religião e o contexto político e social dos últimos anos do Brasil.
Também foram excluídas seis perguntas sobre a ditadura. No parecer da comissão alegou “descontextualização histórica do texto” para a maior parte dos itens.
As informações constam documento no qual integrantes do Inep pediam a reinclusão de parte das questões censuradas. Reunidos ao longo de dez dias em março de 2019, os integrantes usaram carimbos de “sim” e “não” para aprovar ou rejeitar questões.
Discutir feminismo, por exemplo, foi proibido na prova. Uma questão de ciências humanas que mostrava uma foto de mulheres de sutiã durante uma manifestação foi barrada por gerar “polêmica desnecessária”.
Entre as questões retiradas estava uma tirinha de Mafalda, personagem de quadrinhos criada pelo cartunista argentino Quino. Em conversas com a mãe, com o pai e com os amigos de escola, a menina expressa seu inconformismo diante do mundo. Numa dessas tirinhas, publicada originalmente cinquenta anos atrás, Mafalda, prestes a entrar para o jardim de infância, nota que sua mãe está apreensiva com a nova fase na vida da filha. Por isso, Mafalda tenta tranquilizá-la: “Sabe, mamãe, eu quero ir para o jardim de infância e estudar bastante. Assim, mais tarde não vou ser uma mulher frustrada e medíocre como você!” A mãe fica desolada e Mafalda sai andando, feliz. “É tão bom confortar a mãe da gente!”
De acordo com a Piauí, esse famoso diálogo entre Mafalda e sua mãe não agradou a uma comissão montada pelo governo. “Gera polêmica desnecessária”, concluiu a comissão, ao justificar por que decidiu censurar a questão que trazia a personagem argentina.
Uma outra questão, na prova de ciências da natureza, falava sobre os cuidados com relação ao vírus HIV e afirmava que o uso de camisinha é “o meio de prevenção mais barato e eficaz” contra a Aids. “Gera polêmica desnecessária / Direcionamento do controle de saúde”, assinalou a comissão.
As justificativas constam em uma planilha de Excel, que não explicita os motivos para as escolhas, tampouco o que seria a “polêmica desnecessária”.
A comissão teria sido criada pelo então presidente do Inep, Marcus Vinícius Rodrigues, atendendo um pedido de Bolsonaro. O grupo era composto por um procurador de Justiça, um diretor do Inep e um ex-aluno de Ricardo Vélez Rodríguez, então ministro da Educação.
A cara do governo
Nesta semana, durante comitiva oficial no Oriente Médio, Bolsonaro declarou que finalmente as questões do Enem estão tendo a cara do governo, o que gerou muita desconfiança, já que a declaração foi dada após 37 servidores do Inep terem pedido demissão de seus respectivos cargos, alegando que o Governo estava interferindo nas provas e que colocaram até a presença de um policial federal no local onde o exame é elaborado, para pressionar e fiscalizar. Na sequência, Milton Ribeiro, ministro da Educação, tentou acalmar os ânimos, dizendo que as pessoas tinham incompreendido o presidente mais uma vez.
Na prática, a desorganização da prova, o desmonte e esvaziamento do Inep, fez desse Enem a cara do governo, realmente. Há uma semana do exame, tantas polêmicas envolvendo a credibilidade e seriedade da prova, traz insegurança aos mais de três milhões de inscritos, num processo seletivo que desde que surgiu se tornou referência nacional.