Tarifas ainda são o principal instrumento de qualquer política industrial bem-sucedida
Em carta ao vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, o professor emérito da Fundação Getulio Vargas e ex-ministro da Fazenda (1987) e de Ciência e Tecnologia (1999) destaca o projeto de uma nova política industrial que a equipe do atual governo está prestes a concluir, ressaltando que as tarifas aduaneiras “continuam ou devem continuar a ser o principal instrumento de qualquer política industrial bem-sucedida”. “Estou propondo que você as considere no seu projeto de política industrial”, defende Bresser-Pereira., na Carta a Geraldo Alckmin, publicado na Folha de S.Paulo, que reproduzimos a seguir.
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA*
Meu caro vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, escrevo-lhe esta carta para lhe falar de política industrial e de tarifas aduaneiras. Sim, tarifas aduaneiras. Li hoje uma excelente reportagem na revista CartaCapital sobre o projeto de política industrial que você e sua equipe estão prestes a concluir. Como seus assessores observam, é realmente uma nova política industrial.
Nova porque ela não se estrutura por setores, mas por missões: construir cadeias industriais sustentáveis, consolidar o complexo industrial da saúde, desenvolver a infraestrutura, promover a transformação digital, desenvolver a bioeconomia, desenvolver tecnologias estratégicas. Para cada missão haverá um grupo de trabalho a cuidar da implantação e da supervisão das políticas industriais. Parece-me tudo ótimo. Não tenho nada a acrescentar.
Quero, porém, discutir os instrumentos. Curiosamente, a expressão “política industrial” só passou a ser regularmente utilizada depois da “virada neoliberal” de 1980. Antes, os países em desenvolvimento praticavam a política industrial, mas não usavam esse nome, e, sim, política de substituição de importações.
O grande instrumento de política industrial que era então usado eram as tarifas aduaneiras. O neoliberalismo naturalmente criticou violentamente a política de substituição de importações, chamando as tarifas de “protecionistas”. Tiveram êxito porque, a partir dos anos 1980, o neoliberalismo se tornou dominante em toda parte e porque o modelo de substituição de importações já estava dando sinais de relativo esgotamento.
O que sobrou para o mundo subdesenvolvido, para nós, foi a política industrial, que também era criticada pela nova “verdade”, mas com menos ênfase. Porque estava baseada em subsídios fiscais e creditícios que o Império sabia serem limitados porque caros. Mesmo, portanto, que usássemos política industrial, não iríamos longe.
Na periferia do capitalismo, nos países em desenvolvimento, nós, economistas desenvolvimentistas, aceitamos docemente a nova ordem das coisas. Criticávamos duramente o neoliberalismo, mas esquecemos as tarifas, como se elas houvessem perdido sentido.
Meu caro Alckmin, as tarifas não perderam sentido. Elas continuam ou devem continuar a ser o principal instrumento de qualquer política industrial bem-sucedida. Estou propondo que você as considere no seu projeto de política industrial.
Estaria eu sugerindo que voltemos à política de industrialização por substituição de importações? Não, a indústria brasileira já não é uma indústria infante. Pode sê-lo em novos setores, mas isso não legitima voltarmos a essa política. Ela foi fundamental no início da industrialização, mas essa fase está superada.
Como justificar, então, que voltemos a usar tarifas? As tarifas elevadas que tivemos até 1990 –o ano da desastrosa liberalização comercial– não se justificavam apenas pelo argumento da indústria infante (que não era mais aplicável), mas também pelo argumento da neutralização da doença holandesa. Como esse segundo fato não foi considerado, a liberalização comercial desencadeou um violento processo de desindustrialização.
Mas há uma justificação mais geral. Os dois argumentos anteriores —o da indústria infante e o da neutralização da doença holandesa– supõem que, não existindo os dois problemas, o mercado internacional garantirá que os recursos econômicos serão aplicados pelos países de forma ótima. Ora, sabemos que essa é a tese da ortodoxia neoliberal –que sempre se mostrou falsa quando aplicada.
Não estou propondo que voltemos às tarifas elevadas adotadas no período de grande desenvolvimento do Brasil (1950-1980) e ainda na crise dos anos 1980. Devemos, porém, usar tarifas aduaneiras sistematicamente. Usá-las como instrumento de política industrial ao lado dos subsídios.
Mas, poderão alguns arguir, o sistema tarifário brasileiro tem problemas –especialmente o fato de protegermos mais os insumos do que os bens acabados. Isso é verdade, mas daí não segue que devamos, primeiro, fazer uma reforma tarifária e depois usar as tarifas como instrumento de política industrial. Reduzir as tarifas de importação de insumos básicos envolve um processo difícil e demorado; usar tarifas aduaneiras no quadro da nova política industrial é algo que pode ser feito imediatamente.
Luiz Carlos Bresser-Pereira – Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)
Artigo reproduzido da Folha de São Paulo, edição impressa de 27 de dezembro de 2023