CARLOS LOPES
[No dia de hoje, Claudio Campos, fundador da Hora do Povo, faria 74 anos. O texto abaixo foi escrito na noite do dia em que faleceu e publicado em nossa edição de 25 de maio de 2005. Posteriormente, foi republicado como introdução à segunda edição do livro de Claudio, A História Continua. Sua transcrição, aqui, é a nossa homenagem, neste dia.]
Claudio Campos, secretário geral do Movimento Revolucionário 8 de Outubro e fundador da Hora do Povo, permanecerá para sempre como um dos maiores revolucionários da nossa História – e, de resto, da história da humanidade.
Filho do povo brasileiro, ao qual honrou sintetizando em si as suas melhores qualidades, Claudio, do início ao fim de sua grandiosa vida, manteve inquebrantável compromisso com a libertação da humanidade e, particularmente, da pátria que tanto amou.
Foi daqueles homens cuja energia, como disse um contemporâneo de Tiradentes sobre o nosso primeiro grande herói, espanta a própria natureza. Esta energia, também em Claudio, era fruto de sua profunda identificação com os seres humanos. Ele sentia como suas as dificuldades e sofrimentos dos seus semelhantes – e, em tudo, estava voltado para encontrar os caminhos que levassem todos a superar essas dificuldades e sofrimentos.
Era, por isso mesmo, um homem de profundo humor e alegria. Sua felicidade estava, precisamente, na inabalável vontade de lutar pela justiça e pela liberdade. Na sua capacidade de ver cada ato humano como parte de um todo, como parte da grande coletividade humana. Assim, da mesma forma que dedicava a cada ser humano a consideração de um verdadeiro irmão e companheiro, foi à pátria e à humanidade que abnegadamente e sem descanso dedicou seus titânicos esforços.
Quando uma ditadura imergiu nosso país em anos de submissão ao imperialismo e tirania, Claudio foi uma das – no dizer de D. Hélder – estrelas que brilharam naquela noite escura. Ele, militante do MR8, foi um dos participantes da luta armada contra a ditadura. Preso e torturado, o então estudante Claudio Campos portou-se com a coragem, desprendimento e heroísmo que mais tarde iria aplicar decididamente na segunda fase da luta contra o regime ditatorial.
A estratégia e a tática na luta contra a ditadura seriam, após o encerramento da fase armada, o objeto de seu esforço. Ao mesmo tempo, desenvolvia uma atividade incansável na mobilização e organização do povo brasileiro – seja no movimento universitário, onde foi o principal organizador e a alma da Semana dos Direitos Humanos, primeira manifestação de peso dos estudantes desde 1968; seja no movimento comunitário, onde atuou na mobilização dos favelados do Rio de Janeiro; seja no movimento sindical da classe operária, onde defendeu a participação ativa nos sindicatos, numa época em que esta era difícil e desprezada por setores que se rendiam a esses obstáculos.
Para Claudio, na primeira metade da década de 1970, a luta popular era a chave que permitiria a derrubada da ditadura. E para isso era necessário encontrar a estrada pela qual o povo poderia caminhar. O que significava combater o doutrinarismo elitista que infectava a maior parte da esquerda naquele momento. Tratava-se, em suma, de descobrir o caminho da revolução na situação em que o país e o mundo estavam naquela época.
Foi para responder a esse problema que Claudio – sob o pseudônimo de Daniel Terra – escreveria os dois trabalhos que norteariam a luta contra a ditadura até o seu vitorioso final: em 1974 e 1975, publicados clandestinamente, saem Contra o Doutrinarismo e o Economicismo e Socialismo e Liberdades Democráticas. A influência destes dois textos não pode ser exagerada. Numa época em que parte da esquerda negava a importância da luta pela democracia, vendo contradição e antagonismo entre ela e a luta pelo socialismo, Claudio, resgatando Lênin, demonstrou, precisamente, que a luta pelo socialismo era inseparável da luta pela democracia. Que era impossível qualquer luta pelo socialismo sem lutar pela democracia.
Nas homenagens a Claudio, durante o funeral, o senador Aloízio Mercadante, que nesta mesma época era estudante em São Paulo, relembrou a influência profunda que essas duas obras teóricas tiveram sobre toda uma geração de combatentes e revolucionários. Com efeito, essas ideias rapidamente passaram a predominar na esquerda, e não somente na esquerda: o próprio MDB cresce a partir daí. Não por acaso, Claudio e o MR8, em 1974, decidiram participar das eleições daquele ano, deixando a posição anterior de boicote, e o partido da oposição esmagou a ditadura nas urnas, na primeira derrota eleitoral nacional do regime.
Estes foram os passos iniciais da obra teórica de Claudio Campos. Passos iniciais, porém gigantescos – a tal ponto que mudaram a própria luta contra a ditadura, levando-a à derrocada final. As consequências práticas da formulação teórica de Claudio foram a valorização do MDB – e, depois, do PMDB – como instrumento de luta do povo pela democracia. A unidade de todos os setores interessados na derrubada da ditadura. A possibilidade de deslocamento de setores que antes apoiavam o regime para a oposição a ele. Tudo, exatamente, confirmado pelo desdobramento posterior da luta.
A partir daí, desenvolveu intensa participação no MDB e no PMDB – do qual era delegado à Convenção Nacional estabelecendo relações pessoais, muitas vezes de amizade, e sempre de respeito mútuo, com Quércia, Ulysses, Teotonio, Itamar, Requião e outros lutadores. Ele e o presidente Lula – a quem o MR8 apoiou na última eleição presidencial – tinham uma relação verdadeiramente de estima pela democracia. Que esta última era a única escola possível da classe operária e do povo para chegar à consciência socialista e, portanto, ao próprio socialismo. E que na situação política e econômica do Brasil, a luta pelas liberdades democráticas era – e devia ser – o centro, o conteúdo, da luta popular.
Da mesma forma, Claudio lutou desde a primeira hora contra o entreguismo, velhacaria, devastação do país, do Estado, da economia e da cultura nacionais, de Fernando Henrique e outros bandidos. Os vende-pátria não gostavam dele – e ele considerava tal fato como a maior condecoração que um brasileiro e um homem honrado pode obter.
Em 1982, Claudio formularia, ainda com maior precisão, a estratégia e tática da revolução brasileira no informe que pronunciou ao 3º Congresso do MR8. Nele, definiu a etapa da revolução no Brasil como nacional e democrática – tratava-se, como ainda se trata, de libertar o Brasil da dependência, ou seja, da dominação imperialista. Esta era – como é – o entrave ao desenvolvimento do país e ao resgate de milhões de brasileiros da miséria, da ignorância e da injustiça. A independência do país é a condição para o seu progresso.
A revolução nacional e democrática, como disse Stálin, é, para os comunistas, parte do problema da revolução socialista. Seu objetivo é libertar o país da sujeição ao imperialismo, desenvolvê-lo e, nesse sentido, aproximá-lo da revolução socialista. Sobretudo no Brasil, país que já conta com uma base capitalista razoavelmente extensa, a revolução nacional e democrática e a revolução socialista tendem a aproximar-se velozmente uma da outra. Não é um caso inédito. Na Rússia, país que em 1917 tinha um desenvolvimento capitalista inferior ao do Brasil de hoje – embora não sendo um país dependente como o nosso, mas um país imperialista – apenas uns poucos meses separaram a revolução democrático-burguesa da revolução socialista.
Durante os anos seguintes, Claudio dedicou-se a uma vasta gama de temas teóricos. Desde o papel cardinal de Getúlio Vargas na História do Brasil, até às questões da construção do socialismo, do papel da luta ideológica na passagem do socialismo ao comunismo, e, inclusive, nas condições de combate ainda sob o capitalismo. Dedicou grande parte de sua atividade ao esclarecimento de questões da História da URSS e do papel de Stálin, desembaraçando-as do nó górdio de falsificações e deformações impostas por décadas do propaganda mentirosa e sem escrúpulos. Deste último esforço redundou o livro A História Continua, publicado em 1992 no Brasil e em Moscou. Nos últimos anos, Claudio voltou a este tema, e estava preparando um novo trabalho, mais desenvolvido, sobre a URSS, o socialismo e seu principal dirigente e líder, Joseph Stálin.
Os textos de Claudio refletem uma característica sua, que era evidente aos que conviveram com ele: o rigor, a precisão, em suma, a implacável busca da verdade. Era capaz de esgotar toda a literatura sobre um tema, anotando cuidadosamente cada página – quase que cada linha- para chegar a conclusões verdadeiras. Questionava rigorosamente tudo, supostas verdades estabelecidas e mesmo aquelas que não eram supostas, para verificá-las e cotejá-las com os fatos que descobria. Era discípulo de Marx, Lênin e Stálin, mas, por isso mesmo, como eles, não se contentava com os textos dos mestres. Conferia-os, escrutinava-os, e chegava a suas próprias conclusões. Poucas vezes no mundo se viu tal amor à verdade. Não media esforços para chegar a ela, e chegava.
Tal rigor é visível na sua grande obra de publicista, precisamente o nosso jornal, a Hora do Povo. Era esse esforço pela verdade que exigia, muito justamente, dos companheiros que junto com ele faziam o nosso jornal – e somos imensamente gratos a ele por ter-nos inspirado e desenvolvido esse espírito. Foi em 1979, ainda sob a ditadura, que ele fundou a Hora do Povo. Era uma revolução na imprensa. Os brigadistas da Hora do Povo ficaram rapidamente conhecidos e estimados em todo o país pelo destemor com que enfrentavam a ditadura nas praças e nas ruas. E, novamente, a alma desse trabalho que quebrou o medo e acuou o regime, chamava-se Claudio Campos.
Desde essa época, ele praticamente participou de cada edição, das milhares que já realizamos. Não se interessava somente pelo eixo político geral que norteava nosso trabalho jornalístico. Nisto, era diferente de Lênin, e mesmo de Stálin. Sua participação ia da manchete até pequenas chamadas, nas quais soube concentrar a luta ideológica, e, inclusive, à seção de cartas, às quais muitas vezes respondeu pessoalmente. Tinha também atenção por cada companheiro, pelo crescimento político, ideológico e emocional de cada membro da redação, assim como de cada membro do Movimento Revolucionário 8 de Outubro.
Era, sem dúvida, intransigente com a mentira, com a farsa, com a patifaria, com a falta de caráter, com a traição aos destinos do povo e do país. Como Cristo, vergastava os vendilhões do templo, e nada o fez recuar de sua luta, nada odiava mais do que o servilismo e a canalhice, exatamente porque, como disse o Che, era, como todos os revolucionários, governado por grandes sentimentos de amor – pelos seres humanos e pela coletividade humana. Nada valorizava mais do que a consciência, e tudo o que fez tinha precisamente este objetivo: contribuir para desenvolver nos seus semelhantes a consciência. Por isso tanto se esforçava por desenvolver em si próprio a consciência dos problemas coletivos e de suas soluções.
Esse compromisso inquebrantável com o coletivo, essa solidariedade para com o próximo na sua expressão mais alta – a humanidade – foi a sua contribuição maior, sua contribuição gigantesca para a História.
Ele se identificava a tal ponto com os outros que esses também se identificavam profundamente com ele. Assim, ele soube transmitir – não somente aos que conviveram com ele, mas ao povo do qual fazia parte, e, de forma geral, à humanidade – um legado imperecível. Ao completar a sua vida, deixou algo imortal aqui na Terra: a incorporação nos corações de todos de um compromisso com a verdade e com os demais que é exatamente o que precisamos para levar sua obra e sua luta à frente, até a vitória. Até a libertação do país e ao socialismo, vale dizer, até a libertação da humanidade. E até lá nós iremos, seguindo o caminho traçado e percorrido por Claudio Campos.