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“O parlamento, que tem sido pouco respeitado na nossa tradição contemporânea, tem sido um fator muito importante de contenção do Jair Bolsonaro dentro dos limites da democracia”
O ex-governador e ex-ministro Ciro Gomes (PDT), que concorreu à Presidência da República em 2018, afirmou na segunda-feira (30), em entrevista à Deutsche Welle, emissora internacional da Alemanha, que Bolsonaro “é um desastre, sem preparo para lidar com as dificuldades do ato de governar em si, sobretudo no Brasil, e em meio a uma severa crise econômica”.
O pedetista falou sobre a democracia brasileira. “Ela nunca foi uma realidade profunda, no sentido verdadeiro do termo. Infelizmente, a história do Brasil é autoritária, de rupturas, com baixíssimo respeito à institucionalidade democrática, mesmo sob o ponto de vista liberal. Entretanto, da Constituição de 88 em diante, nós vínhamos nos esforçando para melhorar o conteúdo dessa democracia formal anunciada naquele momento”, afirmou Ciro.
“Do Bolsonaro para cá, as coisas têm se deteriorado muito. Ainda não é razoável dizer que ele transgrediu o rito da institucionalidade democrática. Mas a qualidade da democracia brasileira tem se deteriorado muito”, avaliou. “A ideia de que uma agência de cinema vai segregar a autorização para o financiamento dependendo do mérito do roteiro; a ideia de invadir a autonomia das universidades sem qualquer discussão. São elementos que vão tateando o limite, que precisamos vigiar, de chegar na véspera da transgressão da própria ordem democrática”, advertiu.
“Felizmente, para o Brasil”, avaliou Ciro, “o parlamento, que tem sido pouco respeitado na nossa tradição contemporânea, tem sido um fator muito importante de contenção do Jair Bolsonaro dentro dos limites da democracia”.
“NÓS TEMOS QUE VIGIAR“
“Nós temos que vigiar. Por exemplo, o Brasil experimentou um atentado com características de terrorismo, baseado nesse encontro macabro de fundamentalismo religioso e fascismo. Exigi que o ministro da Justiça entregue essas bestas fascistas à Justiça, sob pena de prevaricação. Na medida em que você tem uma prática que nunca existiu no Brasil após a redemocratização, isso só está acontecendo por conta do Bolsonaro”, denunciou.
Ciro falou também sobre a possibilidade de Bolsonaro não terminar o mandato. Ele cita razões para se avaliar essa possibilidade. “Na nossa história moderna, só três presidentes terminaram o mandato: Fernando Henrique, Lula e Juscelino Kubitschek”, lembrou.
“Os três passaram por mal bocados e tentativas de golpe só para manter a regra, mas conseguiram escapar. Todos os outros tiveram seus mandatos interrompidos. A segunda razão é o desastre que é o Bolsonaro, pessoalmente, sem o mínimo preparo para arbitrar as gravíssimas contradições do ato de governar em si, sobretudo no Brasil, no epicentro da pior crise econômica da nossa história”, afirmou o ex-governador.
LOTEAMENTO DO GOVERNO
“Ele loteou o governo entre o grupo do Paulo Guedes, que tem uma racionalidade estúpida, mas dá para conversar”, avaliou Ciro, acrescentando que “há um núcleo de militares, cada vez mais degradado com a saída dos melhores nomes, e esse núcleo de lunáticos que controla coisas importantes, como as relações exteriores, a política de direitos humanos e a educação, para ficar com três exemplos de onde está sediada a tragédia mais grave do governo Bolsonaro”.
“Temos esse encontro da pior crise econômica da nossa história e a incapacidade absoluta do Bolsonaro de compreender os problemas e mediar os conflitos e soluções com um governo completamente heterogêneo. Não vejo como isso possa terminar”, apontou o líder do PDT.
Ciro analisou a atuação subalterna de Bolsonaro e disse que ela desmascara onde está realmente o centro do poder.
“O Bolsonaro estabelece uma caricatura para um fenômeno que não é propriamente recente. Ele apenas desmascara e dá um conteúdo caricato ao deslocamento do poder real do mundo político para o baronato financeiro. Esse processo ocorria com um certo disfarce desde que o Fernando Henrique fez o Proer, Lula assinou a Carta aos Brasileiros e Dilma nomeou Joaquim Levy ministro da Fazenda”, lembrou Ciro.
“Com o Bolsonaro, isso tudo é despudoradamente caricato. Você tem um presidente da República que votou contra todas as propostas de reforma da Previdência, nos 30 anos em que esse debate aconteceu no Congresso. Ele tem ainda declarações violentas, como a de que Fernando Henrique merecia ser fuzilado por privatizar uma mineradora, como a Vale do Rio Doce, e falou com clareza contra a privatização do sistema Eletrobras. No entanto, está fazendo o oposto do que disse”, prosseguiu o ex-ministro do governo Itamar Franco.
TÍTERE DO PODER REAL
Ou seja, para Ciro, Bolsonaro “é um mero títere do poder real. Só que, desta vez, despudoradamente, o poder real está formalmente com a maioria do Congresso. É mínima a probabilidade de haver uma reforma tributária progressiva, uma necessidade óbvia e oportunidade que o Brasil tem, visto que sobretaxa patrimônio e renda de forma absolutamente exótica. É o único país, ao lado da Estônia, que não cobra tributos sobre lucros e dividendos empresariais. É um país que cobra 4% de imposto sobre grandes heranças, um absurdo completo. Nada disso será corrigido”.
Questionado sobre os pontos em comum com Rodrigo Maia, Ciro disse que percebeu que “a derrota do campo progressista brasileiro foi tão extensa e grave, que significou um três a um no parlamento”.
“Nós não perdemos a presidência da República, mas o quórum qualificado até para tomar iniciativa parlamentar. Nós ficamos com um para quatro, 25% do parlamento, somando todos os progressistas juntos. É uma derrota absolutamente inédita na história do Brasil. Quando isso aconteceu, eu percebi que era necessário estabelecer uma tentativa de aliança, dentro do ambiente parlamentar, para potencializar nossa força minoritária”.
“Nessa relação, consegui duas coisas”, disse Ciro. “Uma já comentei: obrigar o Bolsonaro a jogar dentro dos limites da regra democrática, o que não é trivial. Enquanto o PT enganava o Freixo sobre sua candidatura à presidência da Câmara, eu dizia que iria apoiar o Rodrigo Maia, com as forças do PDT, porque obtive dele esse compromisso de obrigar o Bolsonaro a se comportar dentro da regra democrática”.
“A segunda era conter danos dessa agenda. Não podia pedir a ele que mudasse de ideia, mas a garantia de espaços de contenções de danos, como participação nas comissões, de que nossos requerimentos e emendas tivessem sua consideração. E ele cumpriu religiosamente o acordado lá de trás. Então, isso se aprofundou. A confiança pessoal virou institucional, orgânica, e estamos conversando cada vez mais”, destacou.
ALIANÇAS ELEITORAIS
Sobre a possibilidade de alianças eleitorais com Maia, Ciro Gomes avaliou como possíveis, mas difíceis. “Evidentemente, eu respeito muito a ideia dele, e não concordo de forma nenhuma. Mas ele tem a mesma relação conosco do PDT, tem profundo respeito por nós mas discorda das nossas ideias. Até aqui, ele é maioria. Nós, minoria. Portanto, a probabilidade de uma aliança eleitoral no futuro é mínima”, avaliou.
“É claro que todo mundo especula, e eu não tenho nenhuma razão para dizer que não ficaria honrado com uma aliança dessas. Mas, para que aconteça, teríamos que aprofundar um debate programático que partiria de campos muito distintos. Não é uma distinção trivial”, afirmou.
Sobre a atuação do campo progressista, Ciro disse que ele precisa ser mais humilde para poder se aproximar da população.
“Eu cultivo muito a humildade. Esta é uma tarefa muito difícil, porque demanda conteúdo e meio. Temos um gravíssimo problema de conteúdo no campo progressista brasileiro, porque o lulopetismo corrompido aceitou o ideário neoliberal e imaginou o caminho de humanizá-lo de forma clientelista, com uma rede de proteção social baseada em políticas compensatórias, mas garantindo o essencial do modelo. E monopolizou a adjetivação ‘de esquerda’. Esse problema é grave, porque a velha esquerda morreu, e não se trata de um fenômeno brasileiro”, avaliou.
Ciro fez uma avaliação de que manteve por muito tempo pontes com o lulismo que deveria ter rompido a mais tempo.
“As pessoas não são obrigadas a conhecer minha história, mas eu conheço. Ali em 2010, quando acabou o segundo mandato do Lula, eu era o candidato natural do PSB, tinha passado quatro anos ajudando o PSB a montar um esquema. O Lula resolveu impor a Dilma. Fiquei quieto e apoiei. Em 2014, a Dilma já tinha revelado o governo desastroso que fazia e foi candidata á reeleição. Engoli, fiz as críticas todas internamente, já recebendo críticas públicas, e engoli de novo”, afirmou.
SE ENGULO, SOU CÚMPLICE
“Se engulo agora, depois de tudo isso, não sou mais conivente, sou cúmplice. Se tem um brasileiro que sabe que o Lula é responsável, tanto sob o ponto de vista moral, pelo desastre de corrupção que aconteceu no país, quanto sob o ponto de vista do do desastre econômico, esta pessoa sou eu”, contou.
“Se o petista fanático não quer saber, é preciso que alguém faça uma pergunta simples: seria o bolsonarismo boçal se não fosse o lulopetismo corrupto? Para quem não for apaixonado, vamos raciocinar juntos. Sem falar em perguntas mais constrangedoras: qual foi o faturamento do filho do Lula antes e depois do governo do Lula? Não estou falando sobre o acerto com o Eduardo Cunha para entregar Furnas, sobre o qual fui conversar com o Lula, alertando que ele iria roubar, comprar maioria e ser presidente da Câmara. O Lula disse que não ia nomear, o que fez no dia seguinte”.
“Ele deu ao Eunício Oliveira R$ 1 bilhão em contratos sem licitação da Petrobrás. Eu denunciei a ele e publicamente, o nome da empresa é Manchester. O Lula entregou ao Renan Calheiros e ao Romero Jucá a Transpetro, com o Sergio Machado, que é cearense. Era um empresário falido, e a gente viu os filhos virarem banqueiros em Londres. Todo mundo sabia, eu cansei de avisar ao Lula”, acrescentou.
“Se o petista fanático quiser fazer de conta que o Lula é um santo, fique à vontade. Mas eu, Ciro Gomes, estou dizendo o que sei. A decência, que é uma virtude do campo progressistas, ficou na mão do Bolsonaro, um pilantra da velha guarda da fisiologia da corrupção brasileira. Ninguém pode nem falar da ladroeira do filho do Bolsonaro que os caras perguntam, na mesma hora, do filho do Lula. O que eu tenho com isso? Aguentei 20 anos, dali para frente era cumplicidade. Já tem muita gente que não me perdoa”, assinalou o ex-governador.
Para Ciro, “o governo continuará se desmoralizando com muita força. Isso amplia o espaço desde que a oposição compreenda a necessidade de responder à questão de conteúdo e não se conformar com os meios tradicionais. Portanto, vai exigir muita luta, muito exemplo, porque conversa fiada o povo brasileiro não vai mais querer ouvir”, completou Ciro, provável candidato pelo PDT a presidente em 2022.