Linha do tempo organizada pela equipe que assessora o relator da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), senador Renan Calheiros (MDB-AL), já levantou mais de 200 momentos em que o presidente Jair Bolsonaro propagou discurso negacionista na pandemia, de janeiro de 2020 a janeiro de 2021. E continua. Bolsonaro sempre tem dobrado e redobrado suas apostas políticas em relação à Covid-19.
A compilação, amplamente divulgada, inclui frases do presidente em que ele critica o isolamento social, propagandeia o uso da hidroxicloroquina contra a Covid-19 e minimiza o coronavírus, chegando a chamá-lo de “gripezinha”.
O discurso do mandatário será um dos alvos da CPI. O objetivo é usar declarações e ações para eventualmente imputar crimes ao presidente ao fim dos trabalhos. Advogados avaliam que há ao menos quatro que podem ser atribuídos aos discursos.
LINHAS DE INVESTIGAÇÕES
O plano de trabalho apresentado, na última quinta-feira (29), por Renan elenca seis linhas de investigações que serão conduzidas pelos membros da comissão, sendo a primeira dessas as ações do governo no enfrentamento da pandemia.
O tópico tem potencial para atingir o governo Jair Bolsonaro, já que aborda medidas consideradas mais polêmicas por envolverem discursos negacionistas.
A comissão vai investigar, por exemplo, as medidas tomadas para promover o isolamento social — do qual o presidente é crítico — e para a aquisição e distribuição de vacinas e insumos, que tardaram a serem comprados e entregues no Brasil.
Senadores querem entender se Bolsonaro deliberadamente agiu para que o vírus circulasse no País na tentativa de provocar a “imunidade de rebanho”. Os dados serão explorados nos depoimentos, na próxima semana, quando três ex-ministros da Saúde serão ouvidos — Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello —, assim como o atual, Marcelo Queiroga.
A PRIMEIRA DECLARAÇÃO NINGUÉM ESQUECE
A primeira declaração de Bolsonaro sobre a pandemia identificada no levantamento da CPI tem data de 26 de janeiro de 2020. A OMS (Organização Mundial de Saúde) ainda não havia decretado a pandemia, mas já alertava os países para os perigos da disseminação do vírus.
“Estamos preocupados, obviamente, mas não é uma situação alarmante”, disse o presidente naquele dia.
O primeiro caso de coronavírus no Brasil foi registrado em 27 de fevereiro. Dias depois, em 9 de março, Bolsonaro voltou a minimizar os efeitos do coronavírus: “Tem a questão do coronavírus também que, no meu entender, está superdimensionado, o poder destruidor desse vírus”.
No final de fevereiro, Bolsonaro chegou a enviar vídeos a aliados e convocou a população a participar de protestos em favor de seu governo.
Alertado sobre os perigos de provocar aglomerações, o presidente ainda ensaiou uma moderação do tom depois da pressão de aliados e disse, num pronunciamento em cadeia de rádio e TV, que os atos, embora “legítimos”, deveriam ser repensados em razão da pandemia.
As manifestações, porém, ocorreram e Bolsonaro saiu do isolamento e foi à frente do Palácio do Planalto cumprimentar apoiadores.
PROSELITISMO PARA JUSTIFICAR NEGACIONISMO
Em 18 de março, um dia após a primeira morte por Covid-19 no país, o presidente negou que tenha causado aglomeração e justificou a atitude: “Eu como chefe do Executivo, o líder maior da Nação brasileira, tenho que estar na [sic] frente, junto do meu povo. Não se surpreenda se você me ver, nos próximos dias, entrando no metrô lotado em São Paulo (SP), entrando numa barcaça na travessia Rio-Niterói em horário de pico; ou num ônibus em Belo Horizonte (MG). Longe de demagogia e de populismo. É uma demonstração de que eu estou do lado do povo, na alegria e na tristeza”, escreveu o presidente.
A partir de então, Bolsonaro aumentou o tom das críticas a governadores e prefeitos que decretavam medidas de distanciamento social e promoviam o monitoramento de aeroportos e estradas.
Foi também em março que o mandatário passou a propagar fortemente o uso da hidroxicloroquina como tratamento para a Covid-19.
CLOROQUINA: OBSESSÃO DE BOLSONARO
“Agora há pouco, os profissionais do hospital Alberto [sic] Einstein me informaram que iniciaram protocolo de pesquisa para avaliar a eficácia da cloroquina nos pacientes com Covid-19. (…) Tenhamos fé que em breve ficaremos livres desse vírus”, afirmou, em 21 de março do ano passado, segundo registro da CPI.
As atitudes do governo nos primeiros meses da pandemia são consideradas por parlamentares como cruciais para a alta de casos que foi registrada a seguir. Por isso, os senadores consideram relevante o depoimento que Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, vai prestar na próxima terça-feira (4).
Ainda naquele mês, no dia 24, Bolsonaro fez novo pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV no qual menosprezou a doença.
“Nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho”, disse o presidente.
Semanas depois, em 12 de abril, o Brasil registrava 22.169 casos confirmados da doença e 1.233 óbitos.
Naquele dia, Bolsonaro afirmou que a pandemia estava amainando. “Quarenta dias depois, parece que está começando a ir embora a questão do vírus, mas está chegando e batendo forte a questão do desemprego”, afirmou em 12 de abril do ano passado numa “live” com religiosos. Naquele momento, como mostrou o jornal Folha de S.Paulo à época, a declaração do presidente contrariava a projeção de especialistas.
ESTÍMULOS AOS ERROS
O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), suplente na CPI, confirma que a retórica do presidente vai ser um dos alvos da investigação.
“É preciso materializar todas as condutas referentes à atuação do governo federal em face da pandemia, independente do autor da conduta”, afirmou.
O professor da Faculdade de Direito da USP, Rafael Mafei, afirma que Bolsonaro pode ser responsabilizado de duas formas, sendo que uma dessas está diretamente ligada ao seu comportamento. Em primeiro lugar, afirma que ele pode ser acusado de atentar contra o direito à saúde dos brasileiros, o que configuraria um crime de responsabilidade.
“O outro crime é a quebra de decoro: o presidente ultrapassa os limites que deveria guardar em seu comportamento em suas palavras. Ele tem muito poder e capacidade de influenciar as pessoas, então, ao falar que foi salvo pela cloroquina, ele pode estar cometendo crime”, afirma o professor.
“A retórica pessoal do presidente é nitidamente a quebra de decoro”, completa. Ambos os crimes citados são de responsabilidade e podem ensejar processos de impeachment.
M. V.
Com informações do portal UOL