Desaparelhamento da instituição aumentou exponencialmente no governo Bolsonaro e é um dos motivos para o aumento da violência e ameaças contra indígenas e servidores do órgão, como o indigenista Bruno Pereira
O assassinato do indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips no Vale do Javari, Oeste do Amazonas escancara a política de desmonte da Fundação Nacional do Índio (Funai) para beneficiar garimpeiros, madeireiros, narcotraficantes, pescadores e caçadores, que se sentem respaldados pelo governo brasileiro.
Bolsonaro, questionado pela imprensa, afirmou que “duas pessoas em um barco, numa região daquela, completamente selvagem, é uma aventura que não é recomendável que se faça.” Parece querer atribuir às vítimas a culpa pelo seu desaparecimento.
Porém é do Estado brasileiro, por meio das forças de segurança, a responsabilidade de proteger as terras indígenas e quem nelas está, como era o caso de Bruno e Dom.
A região do Vale do Javari há anos vem sendo alvo de disputas de facções criminosas e atividades clandestinas, seja por garimpo, ou extração ilegal de madeira.
Cabe à Fundação Nacional do Índio (Funai) a coordenação e implementação das políticas de proteção à terra e aos grupos indígenas em isolamento voluntário e recente contato, como é o caso dos que vivem no Vale do Javari.
Porém, o desaparecimento do indigenista e do jornalista evidenciou o desmonte que o órgão vem sofrendo durante o governo Bolsonaro e antes dele também.
A Funai tem sofrido na última década com reduções orçamentárias, demissão de servidores e falta de equipamentos. O desmonte da instituição aumentou exponencialmente no governo Bolsonaro e é um dos motivos para o aumento da violência e ameaças contra indígenas e servidores do órgão, como o indigenista Bruno.
Vale lembrar que Bolsonaro, logo após o primeiro turno das eleições de 2018 foi taxativo. “Vamos botar ponto final em todos ativismos do Brasil”.
O enfraquecimento da Funai, segundo funcionários que há anos atuam no órgão, aumentou muito. Dois meses após Michel Temer assumir a Presidência, em 2016, a fundação teve 37% do seu orçamento reduzido. Em março do ano seguinte, 51 Coordenações Técnicas Locais em territórios remotos da Amazônia, com a presença de indígenas isolados, foram extintas, entre elas a que existia no Vale do Javari, região que concentra o maior número de tribos isoladas do planeta.
Este cenário não mudou com a melhora recente nos números, causada pela contratação de servidores temporários por ordem judicial ou um leve aumento no orçamento do último ano devido às operações contra a pandemia.
A medida aumentou a pressão de garimpeiros, madeireiros e outros grupos interessados em explorar recursos naturais em áreas de indígenas.
“Isso vem desde o governo Temer. E no governo Bolsonaro há uma consolidação desse processo de enfraquecimento”, afirma Marcela Menezes, pesquisadora do Núcleo de Estudos Agrários da Universidade de Brasília (UnB).
PERSEGUIÇÃO A SERVIDORES
Bruno Pereira que é servidor de carreira da Funai e foi exonerado do cargo de coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato em 2019, meses após Bolsonaro assumir. Sua saída foi atribuída na época à pressão de setores ruralistas próximos ao atual governo. Desde então, licenciou-se do órgão para atuar em uma associação indígena.
Nos últimos meses, o indigenista estava sendo constantemente ameaçado por parte de pescadores que praticam de maneira ilegal a retirada diária de toneladas de peixe pirarucu e tracajás, espécie de cágado muito cobiçado nos rios da Amazônia.
Além de Bruno, no último mês, outros três funcionários da Funai, que tinham posição de comando, deixaram seus cargos. A baixa mais recente foi de César Augusto Martinez, que dirigia a Diretoria de Proteção Territorial. Oscar Romero de Lima Marsico, que era coordenador-geral de Promoção dos Direitos Sociais e cuidava de operações de entrega de cestas básicas a indígenas, além do coordenador de Gestão Estratégica da Funai, João Francisco Goulart dos Santos, pediram para sair.
Segundo Márcio Santilli, sócio-fundador do Instituto Sócio Ambiental (ISA) e ex-presidente da Funai, o contingente de servidores que hoje compõem o quadro da instituição é insuficiente para fiscalizar os mais de 1 milhão de quilômetros quadrados de terras indígenas do país.
“Quando vemos a situação concreta nos locais, é uma coisa assustadora. Estive em São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, três semanas atrás, onde vive 10% da população em aldeias no país. Nos anos 90 eram 86 funcionários lá. Agora são 17. O contingente que havia no passado já deixava a desejar em relação à demanda, e hoje é um quinto do que era 25 anos atrás”, afirmou Márcio.
No ano passado, apenas 5% das despesas da Funai foram com a assistência aos povos indígenas, segundo o Portal da Transparência. A maior parte dos recursos do órgão serviu para quitar despesas administrativas.
De acordo com levantamento realizado por pesquisadores do Núcleo de Estudos Agrários da Universidade de Brasília, o governo Bolsonaro diminuiu as verbas destinadas a políticas públicas para povos indígenas em 21% no seu primeiro ano de governo, passando de R$ 266 milhões para R$ 200 milhões, em valores corrigidos pela inflação. No orçamento aprovado em 2021, o valor aumentou para R$ 217 milhões — por causa de ações relacionadas ao enfrentamento da pandemia nas terras indígenas, segundo especialistas.
No ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) também determinou que a Funai contratasse 776 servidores temporários para a implantação de barreiras de proteção contra invasores na Amazônia. Assim, aumentou em 553 servidores o quadro da Funai entre 2021 e este ano. A Justiça ordenou a retomada de políticas públicas para povos indígenas na esteira de uma ação que investiga o atendimento pelo governo a esses brasileiros.
REGIÃO FICA REFÉM DE ATAQUES E MORTES
Após Bruno Pereira ter sido exonerado, o coordenador da frente de proteção no Vale do Javari, Francisco Gouvea, pediu demissão alegando “precarização dos meios para o atendimento de nossa missão institucional de proteção dos direitos dos povos indígenas” no Vale do Javari. Um mês antes, o servidor Maxciel Pereira dos Santos, que trabalhava com Gouvea, foi assassinado com dois tiros na cabeça em Tabatinga. A base do Vale do Javari tinha sido atacada quatro vezes naquele ano.
No último tiroteio que ocorreu em dezembro, a base da Funai na confluência dos rios Itaquaí e Ituí, perto de onde Pereira e Phillips desapareceram, foi atingida por tiros. Instalações do órgão em outras regiões também foram atacadas.
Para o sertanista Sydney Possuelo, que criou as primeiras frentes de proteção etnoambiental da Funai, em 1987, entre elas a que fiscaliza o Vale do Javari, o desaparecimento de Pereira e Phillips é resultado da negligência do governo Bolsonaro com a questão indígena:
“Essas coisas estão todas interligadas. Ataques na área Ianomâmi, invasões, agora esse caso terrível no Vale do Javari. Tudo isso não veio gratuitamente. É consequência da política anti-indígena sobre a qual Bolsonaro fala claramente desde que estava em campanha. Até hoje ele é contrário aos índios, às terras indígenas, às demarcações, a tudo o que possa preservar o meio ambiente e defender os povos indígenas”, afirma Possuelo.
Para ele, a reconstrução e mudanças na Funai e Ibama, por exemplo, só irão acontecer se houver uma mudança de mentalidade do Estado. Caso contrário, o caos continuará prevalecendo.
“Se não mudar, vai permanecer o caos que estamos vendo na região amazônica. Funai que não é Funai. Meio ambiente que não é meio ambiente. Essas coisas só acontecem por conta da proteção que o Estado dá para esses bandidos”, diz Possuelo.
O indigenista ainda fala que não adianta apenas colocar mais policiais ou oficiais do Exército no campo se não houver mudança nas “ações legais” das autoridades.
“Se não houver mudança, vai ser difícil que uma transformação chegue na ponta”, conclui.
PRESIDENTE DA FUNAI TENTOU DESABILITAR BRUNO
O presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Xavier afirmou, de forma equivocada, que a missão de Pereira e Phillips “não foi comunicada à Funai”.
“A Funai não emitiu nenhuma permissão para ingresso. É importante que as pessoas entendam que quando se vai entrar numa área dessas, existe todo um procedimento”, disse primeiramente. Depois, o presidente da Funai completou: “é muito complicado quando duas pessoas apenas decidem entrar na terra indígena sem nenhuma comunicação aos órgãos de segurança e à [Fundação]”.
Vale lembrar que Bruno Pereira e Dom Phillips não estavam na Terra Indígena (TI) Vale do Javari quando desapareceram. O indigenista levou o jornalista a um acampamento da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, a Univaja, no limite da TI, a segunda maior do Brasil.
Essa é a primeira mentira sobre o caso dita por Marcelo Xavier, um delegado bolsonarista da Polícia Federal que assumiu a presidência da Funai em meados de 2019 e que, desde então, tem falhado no papel legal e institucional de proteger e promover os direitos dos povos indígenas.
A União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (UNIVAJA) contestou Xavier, após ele afirmar que Dom Phillips e Bruno Pereira erraram em não comunicar a viagem e não pedir autorização à Funai para ingressar na terra indígena onde desapareceram.
Segundo a Univaja, Bruno Pereira era a maior autoridade no País no trabalho em campo especializado em índios isolados e estava autorizado a transitar pela região por ser integrante da Equipe de Vigilância da Univaja, formada majoritariamente por indígenas.
Após atuar numa operação que em 2019 destruiu mais de 60 balsas de garimpo ilegal na Terra Indígena Vale do Javari, Bruno passou a ser perseguido politicamente dentro da Funai, afirma a Univaja. Em seguida, ele foi exonerado do cargo de Coordenador-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato.
A Univaja afirma que convidou Bruno a participar da equipe em razão de seu “notório saber”, além da “grande confiança que desperta” nas lideranças da instituição.
“Bruno compreende pelo menos 4 das línguas dos povos do Javari e tem larga experiência no diálogo intercultural com essas populações, o que é um grande diferencial”, afirmou a Univaja, em nota.
MAÍRA CAMPOS