“A China vai quebrar?” é a questão que o pesquisador e escritor Elias Jabbour coloca em debate no Meia Noite em Pequim desta semana da TV Grabois, a partir de uma matéria no Valor Econômico que apontou que sua dívida pública alcançou um nível recorde de 205%.
É evidente – ele observa – que esse tipo de matéria tenta mostrar para quem lê que a China passa por um processo em que as bases da sua economia estão muito frágeis. Aliás, ele acrescenta, há mais de 25 anos que ouço falar que ‘a China vai quebrar’, seja por um motivo ou por outro.
Aqui no Ocidente a ortodoxia usa a métrica da dívida pública para dizer se um país é frágil ou não. Isso para a periferia, é claro, ninguém fala do Japão que tem uma dívida mais de 200%.
Durante muito tempo esteve em voga a ‘questão dos bancos estatais chineses. Que seriam uma caixa preta, e que a solução para isso seria a liberalização do sistema financeiro chinês e a privatização. Aí, sim, as pessoas iram saber o que acontece nesses bancos.
Agregavam ainda a acusação da ‘ineficiência’ e, portanto, esse alto endividamento público chinês. Um Estado que faz tudo e que inclusive o sistema financeiro é público, isso não pode dar certo em lugar nenhum.
No fundo – enfatiza Jabbour – o que eles querem é que a China abra o sistema financeiro público para os bancos privados internacionais comprarem. Falam mal, mas querem aquilo lá. Isso é um fato.
É possível a China quebrar?, reitera o pesquisador. Primeiro, a dívida da China não é em dólar, ela não tem um risco de insolvência externa. Ainda, a China tem reservas de três trilhões de dólares.
Quanto à natureza da dívida, o pesquisador destaca que se trata de uma dívida que a própria China emite para honrar os seus compromissos, para criar demanda efetiva para uma economia que está passando por problemas, então vai aumentar a dívida pública.
Dívida que é em moeda nacional e quem faz essa operação são os bancos públicos – então, qual o temor de quebrar a economia a priori, ou de que há ‘uma dívida pública explodindo na China’, o que implicaria em um ‘risco sistêmico global’?
O nível de guerra semiótica a que a China está submetida chega ao ponto em que a The Economist fez uma capa com ‘The Covid Failure in China’, em suma a falha da política da Covid Zero.
Só que se a gente olhar o número de mortes por Covid nos EUA [1 milhão]e na China [menos de 6 mil] mostra exatamente o contrário: quem falhou no enfrentamento da Covid foi os EUA e não a China. É a esse ponto que chegamos.
Vem então aquela questão que o Felipe Durante colocou, qual foi a notícia boa que você recebeu sobre a China nos últimos anos? Nenhuma, nem a eliminação da pobreza extrema nem outra coisa.
Dito isso, a China não vai quebrar, é banco público operando com moeda pública que o próprio Estado emite para honrar seus compromissos, emissão monetária que tem muitas vezes como contrapartida a criação de bens e serviços. Tem 3 trilhões de reservas, é diferente da Argentina que tem, sim, um problema de insolvência externa porque não tem dólares.
O fato é que a China não vai quebrar por conta dessas questões. Por que então essa obsessão com a dívida pública dos economistas neoliberais, pelos neoclássicos e pelos próprios liberais? A resposta, sublinha Jabbour, é que existe muita difusão, principalmente aqui no Brasil, de que a moeda é um bem privado, no máximo híbrido. É claro que eles não escrevem isso, mas a visão é bem essa.
Em que sentido é um bem privado? Trata-se de que o Estado deve cumprir com as suas obrigações para com os rentistas. Num exemplo brasileiro: tem um Teto de Gastos em que investimentos em educação, saúde, ciência e tecnologia, infraestrutura, são praticamente congelados, ao lado de um não-Teto de Gastos para obrigações financeiras.
As pessoas que definem o preço da moeda são aquelas à frente do Banco Central, elas vêm do sistema financeiro e voltam para o sistema financeiro após os seus mandatos no BC. Os maiores interessados nas altas taxas de juros no Brasil são os bancos, a taxa de lucro do sistema financeiro brasileiro é baseada em títulos da dívida pública.
Ou seja, como ressalta o pesquisador, nesse sentido a moeda no Brasil é privada e essa noção de que não pode gastar mais que arrecada é um instrumento ideológico para que nós não tenhamos noção do papel de uma moeda voltada para outros interesses. Porque o Teto de Gastos impede a intervenção do Estado na economia.
E como se encara a moeda no Brasil e como se encara a moeda na China é uma discussão que precisa ser feita.
A moeda tem que ser um bem público, tem que estar voltada aos interesses da sociedade. É por isso que na China a dívida pública é tão alta, porque os interesses da sociedade fazem com que o Estado gaste, que o Estado construa, que o Estado invista no Estado de Bem-Estar Social capaz de ser o maior do mundo nos próximos 10 anos e isso não vai cair do céu.
Até porque a dívida pública tem várias faces, uma delas é uma arma política, que foi inaugurada pela Inglaterra na Revolução Industrial para a construção de uma grande máquina de guerra, a dívida pública foi utilizada para isso e, nos EUA, nem se fala.
Na China hoje a dívida pública é um instrumento em que se usa a moeda como bem público planificado e de Estado. Então o debate que interessa não é se a China vai quebrar ou não. É qual que é o papel da moeda na China e em um país como o Brasil, reitera Jabbour.
Isso é uma questão que enquanto nação temos que debater, se nossa moeda continuará sendo privada apesar de ter um caráter público, ou se vai ser um bem público como é na China, ele conclui.
Elias Jabbour é professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ