Mais dois novos estudos, um efetuado na França e outro na China, concluíram pela ineficácia da hidroxicloroquina, uma droga derivada da cloroquina, para combater a pandemia de Covid-19, tanto nos casos graves quanto nos mais leves.
“Tomados em conjunto, esses resultados não apoiam o uso da hidroxicloroquina como tratamento de rotina para pacientes com Covid-19”, afirmou em um comunicado a revista médica britânica BMJ [British Medical Journal], que publicou os dois estudos.
As duas pesquisas reforçam outras realizadas em vários locais do mundo, como EUA e Brasil, que concluíram desfavoravelmente ao uso do medicamento contra o novo coronavírus.
A cloroquina, e seu derivado, a hidroxicloroquina, ficaram sob holofotes após terem sido entusiasticamente abençoadas pelo presidente norte-americano Donald Trump, o que logo em seguida foi papagueado pelo presidente brasileiro Jair Messias Bolsonaro.
Tradicionalmente, a cloroquina tem uso comprovado contra a malária e ainda em doenças autoimunes, como o lúpus.
Tanto nos EUA quanto no Brasil houve demissões por causa da discordância dos médicos com a prescrição de medicamentos de parte de quem nada entende do assunto. Nos EUA, Richard Bright, diretor de vacinas do governo norte-americano, foi demitido após se pronunciar contra o uso do medicamento sem comprovação.
Em março, Trump chegou exaltar, pelo Twitter, a combinação de hidroxicloroquina e azitromicina. “Tomados juntos, [esses medicamentos] têm uma chance real de virar o jogo na história da medicina. A FDA [agência de controle de medicamentos e segurança alimentar dos EUA] moveu montanhas – obrigado! Espero que os DOIS (…) sejam usados IMEDIATAMENTE”.
Na verdade, a FDA só autorizara uso emergencial, em ambiente hospitalar e em ensaios clínicos, e o principal infectologista dos EUA, Anthony Fauci, classificara de “anedótica e não comprovada em laboratório” o alegado poder de cura da cloroquina.
No Brasil, o ministro da Saúde, Nelson Teich, o segundo titular da pasta em plena pandemia em um mês, se demitiu, após Bolsonaro anunciar que ou está com ele e a cloroquina, ou está fora, quem manda sou eu. Bolsonaro queria mudar protocolo médico do Ministério da Saúde para liberar geral a cloroquina, enquanto Teich havia se manifestado publicamente sobre o risco dos efeitos colaterais da droga.
Embora não tenha sido o motivo central na demissão do ministro anterior, Luis Henrique Mandetta, foi o tempo todo um ponto de atrito.
Ultimamente, Trump anda calado sobre o tema, depois que estudo preliminar de uma universidade norte-americana com 368 veteranos do exército constatou que, com a cloroquina, a mortalidade tinha sido maior (28%) do que com o tratamento padrão (11%). A pesquisa foi publicada no New England Journal of Medicine no final de abril.
Em compensação, Trump não se furtou a instruir o público a injetar água sanitária ou álcool isopropílico no pulmão dos doentes.
Mas, afinal, o que teria levado duas figuras tão avessas à ciência a pontificarem sobre a cloroquina?
Serve para abanar, para seus fanáticos, e aos incautos, que não é tão grave assim a pandemia, é só se entupir de cloroquina quando sentir qualquer coisa, e estão todos liberados para ir trabalhar e se contaminar.
O que foi recentemente retratado em um meme do gabinete do ódio, contra a imprensa brasileira e a cobertura sobre a pandemia: “se mostrar a cura, acaba a histeria”.
INÓCUA NOS CASOS GRAVES
O primeiro estudo, de pesquisadores franceses, com 181 pacientes adultos, concluiu que o derivado da cloroquina não reduz significativamente a probabilidade de um infectado precisar de tratamento intensivo, ou de ir a óbito, em pacientes hospitalizados com a pneumonia decorrente da infecção.
O uso da hidroxicloroquina não alterou a evolução da doença: deram entrada nos serviços de reanimação 21 dias depois de contraída a pneumonia 76% dos tratados com a droga, contra 75% do grupo de controle.
Quanto à taxa de sobrevivência no 21° dia, foi de respectivamente 89% e 91%.
Os pacientes haviam sido internados necessitando administração de oxigênio. Um grupo de 84 pacientes recebeu hidroxicloroquina menos de dois dias depois de sua hospitalização. Os outros 97 seguiram os protocolos clássicos.
RISCO DE ARRITMIA CARDÍACA
O estudo chinês analisou o efeito do uso da hidroxicloroquina nos casos leves ou moderados de Covid-19.
A conclusão é de que não melhorou em nada a superação da doença em comparação com tratamentos padrão, mas teve significativos efeitos colaterais.
O estudo abrangeu 150 adultos hospitalizados com formas leves ou moderadas, dividido em dois grupos, com a metade recebendo hidroxicloroquina e a outra metade (grupo de controle), não, durante quatro semanas.
Se, quanto à superação da Covid-19 não houve alteração discernível, quanto aos efeitos colaterais, o resultado da hidroxicloroquina foi bem pior comparado com o tratamento padrão. 30% dos tratados com hidroxicloroquina tiveram diarréia, contra apenas 9% do grupo de controle.
Mas como é amplamente sabido – é uma droga conhecida -, o problema colateral maior é cardíaco, podendo matar por arritmia.
ESTATISTICAMENTE INSIGNIFICANTE
Estudo publicado dois dias antes na revista médica JAMA (iniciais de Journal of the American Medical Association) concluíra analogamente que a taxa de mortalidade entre os pacientes tratados com hidroxicloroquina fora semelhante à observada nos que não tomaram o medicamento, assim como à das pessoas que receberam hidroxicloroquina combinada com o antibiótico azitromicina.
O estudo foi encabeçado pelo Dr. Eli Rosenberg, da Universidade Albany, de Nova Iorque – estado que tem sido o epicentro da pandemia nos EUA – para verificar se havia alguma associação entre o uso da hidroxicloquina, com ou sem azitromicina, e a mortalidade em hospitais.
Envolveu 1.438 pacientes selecionados de 25 hospitais, a partir de um levantamento que compreendia 88,2% de todos os pacientes hospitalizados na região no período. Participaram da pesquisa 6 epidemiologistas e 12 enfermeiras, com os pacientes divididos em quatro grupos: 1 – que recebeu hidroxicloroquina mais azitromicina; 2 – só hidroxicloroquina; 3 – só azitromicina; e 4 – nenhuma das duas drogas.
A pesquisa foi suscitada por estudo favorável à cloroquina realizado na França, mas concluiu que em nenhum dos casos houve mudanças “estatisticamente significantes”, isto é, não se verificou mortalidade hospitalar significativamente mais baixa com uso da hidroxicloroquina, associada ou não com azitromicina.
Quanto aos efeitos colaterais, o estudo constatou em média o dobro de ocorrências relacionadas a problemas cardíacos no caso do uso da hidroxicloroquina, em relação aos que não o fizeram, e ainda casos de diarréia, convulsões e hipoglicemia.
CANCELADO
No Brasil, uma pesquisa foi cancelada depois que 11 pacientes com o coronavírus que receberam uma dose elevada de cloroquina morreram em Manaus até o sexto dia de tratamento, como registrou o New York Times.
O grupo sob observação era de 81 pacientes de Covid-19, com cerca da metade recebendo uma dose de 450 mg duas vezes ao dia, por cinco dias, e a outra parte, uma dose mais elevada, 600 mg, por dez dias.
Em três dias, os pesquisadores começaram a notar arritmia cardíaca em um quarto dos pacientes que receberam a dose mais alta. A pesquisa foi postada no mês passado na medRxiv, uma plataforma de artigos médicos.
OBSESSÃO DE TRUMP EM BAIXA
Enquanto Bolsonaro segue aferrado à cloroquina, a mídia norte-americana registrou que Trump anda se distanciando, sutilmente, da apologia aberta da droga, assim como a Fox News. “Ascensão e queda da obsessão de Trump com a hidroxicloroquina”, ironizou o Washington Post.
Por sua vez a Fox, as exortações à cloroquina caíram de 87 no período de cinco dias (11-15 de abril) para apenas 20, no período imediatamente posterior, segundo uma ong que monitora a desinformação nos EUA, a Media Matters. A Fox vivia exibindo relatos de pacientes que acreditavam piamente de que tinham ficado curados pela cloroquina e seus apresentadores não se cansavam de enfatizar os efeitos milagrosos da droga.
Segundo o New York Times, o consumo de cloroquina nos EUA cresceu mais de 46 vezes depois que Trump foi à TV, em março, convocar a população a se intoxicar com a droga. Duas pessoas morreram após se automedicarem atendendo à recomendação do chefe da Casa Branca.
Não que Trump tenha aberto mão das fake news. Com seu novo slogan da reeleição de “Reabrir a América de Novo”, parece que Trump arrumou uma encenação melhor para engrupir seu eleitorado: a vacina que fica pronta “em meses”, quem sabe, antes do fim do final do ano. Na pressa, parte do eleitorado dele anda fazendo festas só para se contaminar: são os adeptos da imunização de rebanho.