MAMEDE SAID MAIA (*)
Lucidez nem sempre escolhe lado. Hoje, li entrevistas muito lúcidas de dois intelectuais que, longe de se situarem à esquerda do espectro político, têm em comum a constatação de que o Governo Bolsonaro pode ser considerado um desastre sem precedentes. A primeira entrevista é do filósofo Denis Rosenfield, professor da UFRGS e um dos fundadores do Instituto Millenium, entidade criada em 2005 para disseminar uma visão de “direita moderna”. A segunda entrevista é de Roberto Romano, filósofo e professor aposentado da Unicamp, tradicional apoiador do PSDB.
Em sua entrevista, Rosenfield, que anunciou apoio e voto em Bolsonaro em 2018, declara: “O bolsonarismo está contaminando as instituições democráticas e está contaminando a pauta das reformas. (…) Este primeiro ano do governo se caracterizou basicamente por uma política de enfrentamento. A concepção que o novo presidente, a sua família e seu grupo mais próximo puseram em marcha foi uma política de confronto. De confronto com os adversários, de confronto as instituições.”
Para Denis Rosenfield, “o governo Bolsonaro terminou insistindo no enfrentamento. Considera como inimigo todo aquele que não concorda com ele, mesmo o PSL. Rachou o PSL porque ele quer o partido absolutamente dele. A política democrática implica na negociação e articulação. Então aí foi um retrocesso. O segundo retrocesso é o seguinte: ao privilegiar a pauta conservadora, a pauta dos costumes, ele está terminando por conferir a essa pauta um peso que não corresponde a posições majoritárias da sociedade brasileira. Termina se confinando a um nicho, um nicho conservador e religioso.”
Quanto a Roberto Romano, sua avaliação é ainda mais rigorosa: “Na medida em que persistir esse modus operandi, nós chegaremos antes do final do governo Bolsonaro àquele estágio que o sociólogo Émile Durkheim chamava de anomia [ausência de lei ou regras]. Estabeleceu-se como prática política a separação de amigo e inimigo, que é uma tese autoritária que já fez muito mal ao Brasil e foi ideada pelo [jurista e filósofo alemão] Carl Schmitt. Esse ponto me parece o mais brutal: você não aceitar a existência da plena democracia e da divergência de opinião.”
Para Roberto Romano, Bolsonaro exerce uma “Presidência subversiva. Não vejo outro nome. A direita sempre foi da lei e da ordem. No entanto, você tem essa coisa inédita: uma Presidência que procura subverter todo o aparato constitucional e legal do país.” Indagado se esperava que o Governo Bolsonaro tivesse um peso ideológico tão grande, Romano responde: “Não esperava que a carga fosse tão forte. Eu esperava um pensamento conservador, de direita, próximo de um saudosismo do período militar porque o candidato Bolsonaro nunca fez segredo disso. Agora, com essa violência, eu não esperava. Essa virulência da fala e dos atos do presidente botam fogo num rastilho de pólvora.”
De forma sucinta, Romano resume bem o que foi o primeiro ano do Governo Bolsonaro: “esse primeiro ano foi uma espécie de pedagogia do inferno. Foi um péssimo governo. Um governo que não prima pelo exemplo do respeito à Constituição, às leis e aos costumes éticos corretos.”
(*) Diretor da Faculdade de Direito da UNB