“Há uma lentidão e uma indisposição do governo em acelerar o processo”, denuncia o presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Renato Kfouri
Desde julho, crianças abaixo de cinco anos passaram a responder por duas de cada cinco internações por Covid-19 no Brasil. Entre janeiro e junho, o grupo representava três em cada 50 internados devido a complicações da doença.O levantamento foi feito pela Fiocruz e a Unifase, a Faculdade de Medicina de Petrópolis, que é responsável por informar dados sobre a saúde de crianças nesta faixa etária.
Somente entre 14 de agosto e 10 de setembro, 678 bebês e crianças menores de cinco anos foram hospitalizados com Covid-19 no país. O número é quase o dobro dos 387 maiores de 60 anos internados no mesmo período. Já no primeiro semestre, o país registrou um total de 7.809 internações de menores de cinco anos e 90.206 de maiores de 60.
Com o avanço da vacinação entre adolescentes, adultos e idosos, os índices de hospitalização e mortalidade caíram em todas as faixas etárias. No entanto, entre as crianças, a queda se revela mais lenta, aponta o estudo.
Mesmo com a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária do uso emergencial da Coronavac para crianças de 3 e 4 anos, até 23 de setembro apenas 2,5% da população com essa idade havia recebido as duas doses da vacina.
Apesar dos dados divulgados sobre a baixa adesão à vacina pelas crianças e o elevado número de internações, o governo de Jair Bolsonaro protela a compra do imunizante da Pfizer, aprovado pela Anvisa para ser aplicada nas crianças dessa faixa etária, e dificulta os trâmites para utilização dos 35 milhões de doses já adquiridas.
Até o momento, o Ministério da Saúde não tem previsão de quando vai utilizar a vacina em crianças a partir de seis meses de idade. Apesar da aprovação do órgão sanitário, a pasta pretende realizar uma reunião com técnicos sobre o tema. O encontro ocorreria nesta sexta-feira (30), mas foi desmarcado.
A demora na inclusão da vacina repete o que ocorreu com a liberação das doses para a faixa de 5 a 11 anos: à época, o ministro Marcelo Queiroga (Saúde) convocou uma audiência e uma consulta pública para discutir a imunização infantil.
O governo dispõe de 35 milhões de doses para receber da Pfizer e precisa de ao menos 21 milhões para iniciar a aplicação no público-alvo.
A situação é semelhante ao que aconteceu com a CoronaVac. Para protelar a compra do imunizante, à época, o ministro Marcelo Queiroga (Saúde)usou de vários subterfúgios como convocação de audiência, consulta pública, sob o pretexto de discutir a vacinação infantil, entre outras desculpas.
Enquanto Jair Bolsonaro atrasava a compra do imunizante chinês, seus ministros atuavam para desestimular à vacinação infantil. Inclusive com a produção de documentos oficiais com mentiras sobre os efeitos da vacina. Um dos documentos partiu do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado à época por Damares Alves.
A nota, assinada por quatro técnicos, afirmou na ocasião que, como a vacina contra Covid não estava na lista de vacinação básica da Caderneta da Criança, não era obrigatória, e os pais ou responsáveis, por conseguinte, teriam autonomia sobre a decisão de aplicá-la ou não em seus filhos ou tutelados.
O documento alegava “apresentar fundamentos técnicos e jurídicos sobre a violação de direitos humanos decorrentes da obrigatoriedade de apresentação do Certificado Nacional de Vacinação e sobre a não obrigatoriedade de vacinação infantil contra Covid-19, enquanto medidas indispensáveis para o usufruto de direitos humanos e fundamentais”.
O próprio Bolsonaro Jair Bolsonaro atacou a vacinação infantil contra Covid e espalhou mentiras sobre mortes de crianças. Em uma entrevista a uma emissora de TV no Nordeste, o presidente anticiência também minimizou o número de mortes pela doença entre o público infantil, dizendo que era quase zero. No entanto, o Ministério da Saúde já contabilizava 308 mortes de crianças entre 5 e 11 anos à época.
A outra nota técnica foi divulgada pelo próprio Ministério da Saúde, subscrita pela secretária extraordinária de Enfrentamento à Covid, Rosana Melo, e pelo diretor Danilo de Souza Vasconcelos, e visava reforçar que a imunização de crianças de 5 a 11 anos não era obrigatória porque não está no Plano Nacional de Imunização (PIN), e sim, no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação (PNO).
PROPAGANDA CONTRA A VACINA
Para o presidente do Departamento Científico da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Renato Kfouri, um dos fatores determinantes para a baixa adesão à vacinação infantil contra a Covidi é “sem dúvida, a propaganda contra (a vacinação)”.
“Foram muitas fake news e tanta propaganda, muitas vezes oficial do governo, colocando receio nos pais no sentido de defender que a vacina não fosse obrigatória, que precisasse de receita, que se deveria ouvir o contraditório”, avalia.
“Teve ministro citando efeito colateral como se fosse da vacina para comemorar… Tudo isso veio do órgão oficial. E é esquizofrênico porque ele compra a vacina e, ao invés de ter uma propaganda estimuladora da vacinação, faz uma propaganda inibidora. Isso, infelizmente, deixa muitos pais hesitando, e atrapalha”, avalia Kfouri.
A atual etapa de análises sobre vacina da Pfizer está a cargo da Câmara Técnica de Assessoramento em Imunização da Covid-19 (CTAI). Com o adiamento da inclusão do assunto na reunião da CTAI e a indefinição de uma data para isso acontecer, o país segue sem previsão de quando começa a usar uma “sobra” de 35 milhões de doses que tem junto a Pfizer graças a um contrato já assinado com a fabricante.
“Há uma lentidão e uma indisposição do governo em acelerar o processo. As negociações com a Pfizer já deveriam estar acontecendo. Porque o grande gargalo do processo é abrir negociação com o fabricante”, ressaltou Renato Kfouri.
“Esse processo deveria ser feito o mais rápido possível. O que temos visto é que as crianças são acometidas, sim, com números consideráveis de óbitos nessa faixa etária, afirma o pediatra Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
13 MILHÕES DE CRIANÇAS
São necessárias cerca de 39 milhões de doses para vacinar as crianças brasileiras de 6 meses a 4 anos. O esquema vacinal previsto é de três doses.
Dados do IBGE informam que o Brasil possui cerca de 13 milhões de crianças entre 6 meses e 4 anos. Excluindo a faixa etária de 3 e 4 anos, que também pode ser vacinada com a Coronavac, o número de doses necessárias é menor, um cálculo próximo de 21 milhões.
Com base nesse recorte, o governo federal teria doses da Pfizer suficientes para vacinar apenas as crianças de 6 meses até 2 anos e 11 meses. A aplicação das doses da Coronavac em crianças a partir dos 3 anos também não é garantida pelo governo. Ocorre de forma isolada pelo país e depende dos estoques em cada localidade desde a aprovação da Anvisa, em julho deste ano.
No último dia 22, crianças ficaram sem a segunda dose em Natal (RN) por falta da vacina nas unidades de saúde. Recentemente, o Ministério da Saúde negociou a compra de 1 milhão de doses com o Instituto Butantan.
Números do SIVEP-Gripe, sistema do Ministério da Saúde levantados pelo InfoGripe, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), grupo que monitora casos e óbitos de doenças respiratórias no Brasil, mostram que mais de 30,1 mil casos graves de Covid-19 em bebês e crianças de zero a quatro anos foram reportados desde o início da pandemia até o dia 3 de setembro de 2022.
Em relação às mortes pela doença nessa faixa etária, foram 1,6 mil desde 2020. Só em agosto deste ano, foram 554 casos graves e 27 óbitos.
Especialistas defendem que a vacinação das crianças mais novas comece o quanto antes. Essa parcela da população é considerada, no momento, a mais vulnerável e exposto à covid-19, justamente pela falta de vacina.
“A gente nunca viu uma doença imunoprevenível matar tanto as crianças como a covid-19. Se eu sei que tenho esse cenário, é mais do que natural que eu queira a prevenção das crianças”, defendeu a médica Rosana Richtmann, da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
Rosana levantou outra preocupação com relação à saúde do público pediátrico: o aumento das ocorrências de gripes nos últimos dias. “A circulação intensa de vírus influenza já lotou as UTIs de novo e os serviços de pediatria. Os estudos mostram que, quando você tem a circulação de dois vírus em uma criança, o risco de uma doença grave pode aumentar”, alertou.