Após o imenso desgaste provocado pelas desaforadas declarações de gente de Merkel contra o “governo populista” na Itália e pela fracassada indicação de FMI-boy Carlo Cottarelli, para um governo-tampão, o presidente Sergio Mattarella e os líderes da coalizão Liga-5 Estrelas acabaram se encontrando no meio do caminho, com o jurista Giuseppe Conte afinal como novo primeiro-ministro e o mais palatável Giovanni Atria na direção da economia. Os líderes das duas agremiações, Luigi Di Maio (M5S) e Matteo Salvini (L), serão vice-primeiros-ministros.
O quase desconhecido Conte já prestou juramento perante Mattarella, e seu nome será confirmado no parlamento, onde a aliança Liga-5 Estrelas detém maioria. Para superar o veto de Berlim, o enfant terrible de 81 anos, Paolo Savona, aquele que desancou a “prisão do euro” e foi acusado de “germanofobia desenfreada”, foi deslocado para ministro de Assuntos Europeus, para tristeza dos eurocratas de Bruxelas. Atria, por sua vez, tem dito que é insustentável o desequilíbrio dentro da União Europeia decorrente dos superávits comerciais da Alemanha.
Em suma, a crise foi empurrada pra frente e o pesadelo das “eleições em julho” ou da Itália mais meses sem governo efetivo, afastado. Por agora, os mercados ficam dispensados de “ensinar os italianos a votar certo”. Na terça-feira passada, o ágio sobre títulos da dívida italiana de 2 anos subiu de 0,3% para 2,7%. As perspectivas da economia italiana vão mal das pernas: PIB de 1,4% este ano e 1,1% – se tanto – em 2019, segundo a OCDE.
Mas não há como abafar a dimensão do sobressalto dos últimos dias na União Europeia e nas bolsas, com uma TV alemã falando abertamente do risco de colapso da Itália, que é a terceira maior economia da zona do euro, e ameaça de arrastar a UE.
A Liga e o M5S eram até há pouco tempo forças marginais na política italiana, que cresceram no vácuo da indignação popular contra a austeridade imposta por Berlim para salvar bancos e o estelionato eleitoral de seguidos governos. As duas agremiações são consideradas “eurocéticas” porque já chegaram a questionar a participação na União Europeia e a saída do euro, embora não haja plano para convocação de referendo.
O M5S, que se apresenta como “antissistema e anticorrupção”, surgiu na esteira do descontentamento popular com forças ditas de “centro-esquerda”, mas que aderiram entusiasticamente ao neoliberalismo “pan-europeu” e ao propinoduto.
A Liga teve origem na década de 1990 no norte rico da Itália, namorou o separatismo e atualmente busca fazer uma oposição, pela direita, à subordinação da soberania e economia italiana por Berlim, além de ferozmente anti-imigração. Nas eleições de 4 de março, esteve coligada a Berlusconi – que a liberou para a aliança com o M5S – e aos xenófobos do Fratelli di Itália.
Na última eleição, o M5S conquistou 32% dos votos e se tornou o maior partido, enquanto a Liga obteve 17% (sua coligação original, 37%). O Partido Democrático despencou para terceiro (20%), em decorrência da pérfida reforma antitrabalhista de Matteo Renzi, que facilitou demitir e arrochar, cinicamente em nome do “combate ao desemprego”.
Desde a crise do euro, pós-crash de 2008, a Itália vive aos trancos e barrancos. Foi incluída no “PIIGS” (pejorativo acrônimo que se lê, em inglês, como ‘porcos’) ao lado da Grécia, Portugal, Espanha e Irlanda. Sucessivos governos dos bancos – em especial dos bancos norte-americanos e alemães –esfolaram os italianos, cortaram direitos e fizeram o desemprego entre os jovens ultrapassar 30%. A dívida pública, inchada pelo resgate dos bancos, chegou a 132% do PIB e a banca italiana vem se safando a duras penas, no fio da navalha.
Está para ser visto em que medida a coalizão cumprirá o programa comum de governo, gestado desde pontos de vista diferentes, e que vão do corte de impostos dos ricos (taxa flat) até o cancelamento das privatizações da Alitália e da maior siderúrgica italiana. Ainda, o arremedo de revisão da reforma previdenciária e a intensificação da repressão aos imigrantes. Este, um enorme problema num país em crise e que virou porta de entrada de uma gigantesca onda de refugiados no Mediterrâneo tangidos pelas guerras e pela devastação econômica. O que serve de caldo de cultura para a intransigência e o racismo. A coalizão quer que seja redistribuído equitativamente entre todos os países da UE esse fardo.
A proposta de renda mínima universal [“Reddito di Cittadinanza”, renda-cidadã], de 780 euros, condicionada à aceitação obrigatória de emprego oferecido [direito a três propostas em dois anos] ou perda do beneficio, vem sendo denunciada como uma forma de reedição dos minijobs alemães, um dos aspectos mais deletérios das chamadas ‘leis Volkswagen’, que formalizou uma massa de trabalhadores de baixa renda e praticamente sem direitos trabalhistas na Alemanha.
Quanto à dívida, a coalizão propõe que o enfrentamento se dê pelo lado do investimento e não dos cortes, e uma medida nesse sentido é a exclusão dos investimentos do cálculo do déficit para fins da rígida lei orçamentária europeia.
Pede ainda o fortalecimento do Parlamento Europeu sobre a burocracia não-eleita de Bruxelas e a rediscussão do ‘compacto fiscal’ – pomposo nome dado ao arrocho em vigor. Quer também ampliar a punição à corrupção e é contra as sanções à Rússia.
Se o confronto aberto com Bruxelas/Berlim foi adiado, nem por isso já cessou a troca de disparos. Ministros franceses andam cobrando abertamente que Roma “cumpra com suas obrigações”. Mas a declaração mais estapafúrdia partiu do presidente da Comissão Europeia e ex-chefe da evasão fiscal via Luxemburgo, Jean-Claude Juncker. Ele disse que os italianos devem “trabalhar mais duro”, serem “menos corruptos”, “mais sérios” e pararem de “olhar para a Europa” para cuidar das “suas regiões pobres”.
O conhecido porta-malas de Merkel ainda acrescentou na cara dura que “nós vamos ajudá-los como sempre fizemos. Mas não joguem esse jogo de lançar a responsabilidade na UE. Um país é um país, uma nação é uma nação. Países primeiro, Europa em segundo”. Não estaria ele querendo dizer, se houvesse a mínima sinceridade, que Berlim primeiro, e o resto que se dane?
A.P.