Dando continuidade à série de programas de debate ao vivo, no Meia Noite de Pequim desta semana, da TV Grabois, o pesquisador e escritor Elias Jabbour dialoga com a economista Simone Does, da Unicamp, sobre o “financiamento do desenvolvimento chinês à luz da MMT”, a Teoria Monetária Moderna, que apresenta uma abordagem inovadora sobre como efetivamente opera o sistema monetário e que contesta muitas dos mitos rotineiramente repetidos na mídia sobre como chegar ao desenvolvimento econômico, sobre gasto público, papel dos impostos, inflação.
E desvenda que, na criação de moeda, “95% é depósito à vista”, é criação privada de moeda, e só 5% é moeda estatal. “Sem a moeda estatal que está no topo”, que precisa do gasto do governo, precisa desse mo que é ativado pelo Tesouro Nacional, BC, “essa outra parte complica”.
Jabbour: Qual é o papel da criação de moeda no desenvolvimento econômico?
Simone: Se existe uma economia em que há uma restrição absurda à criação de liquidez, seu crescimento econômico é manietado. Precisamos poder gastar para o crescimento. Não precisamos de poupança para o crescimento, mas precisamos financiar esse gasto de alguma forma. Precisamos de liquidez para o crescimento.
Se você impõe uma bobagem de um teto de gastos, você não cresce. Se você não tem um sistema de financiamento do crescimento, você não pode crescer.
Se você não tem um sistema financeiro adequado para o crescimento, não cresce. Então esse sistema desde lá de cima, passando pelo sistema bancário, por um sistema bancário que possa financiar esse desenvolvimento mais a longo prazo, ele tem que ser funcional, tem que ter um design.
Jabbour, provocativamente: Tem que arrecadar para gastar, ou tem que gastar para arrecadar, como é esse negócio?
Simone: Isso é uma coisa muito linda, é o corolário da demanda efetiva! O gasto determina a renda.
Jabbour: E a renda determina a poupança.
Simone: E a renda determina a arrecadação. Então, necessariamente você tem que gastar primeiro, para depois arrecadar.
Jabbour: Não existe esse ‘não pode gastar mais do que arrecada’. Como você vê o desenvolvimento da China sob a ótica da MMT?
Simone: O que a China fez rapidamente, concentradamente, da segunda metade do século 20, foi criar moeda. A partir do PBOC (BC chinês), criou seus bancos comerciais, depois criou seus bancos de desenvolvimento, e foi sendo capaz de irrigar de liquidez, de financiar o crescimento dessa economia. Sem isso não há crescimento possível.
Quanto ao papel da poupança, ela observa que “a poupança ex-post é o resultado do crescimento – é toda aquela parcela da renda que não foi consumida. Essencialmente a poupança é igual ao investimento”.
Elias: A economia da China basicamente é composta por um núcleo estatal – 96 conglomerados estatais e cerca de 30 bancos de desenvolvimento. Desde 2008, esses 30 bancos criam moeda para que essas 96 empresas estatais executem centenas ou milhares de projetos simultaneamente, ou seja, os bancos vão lá, criam moeda, criam dívida pública. É isso mesmo? Na semana retrasada [os chineses] criaram US$ 1 trilhão para um pacote fiscal para poder enfrentar o problema do desemprego urbano. É isso mesmo, é uma engenharia financeira e vai ao contrário de tudo que nos ensinam aqui no Brasil, para aquele país andar pra frente?
Simone: Esse é o meu entendimento também. É uma engenharia financeira muito interessante porque a China não usa só o seu orçamento fiscal. Ela usa o seu sistema de bancos públicos para criar moeda também. Diferentemente de outros países, os Estados Unidos não tem sistema de bancos públicos. Os bancos públicos, caso do Brasil, vão por dentro, podem funcionar como agências de desenvolvimento econômico, conhecendo pessoas, estruturando negócios. Você não precisa só usar o orçamento fiscal, você usa outro tipo, outra forma, de criar moeda, que é via seu sistema financeiro.
Elias: Fala-se muito que emissão monetária causa inflação, é verdade ou mentira isso? E por que na China, apesar de ter uma relação alta Débito/PIB, 130%, tem uma baixa inflação? A China não estaria também quebrando esse mito?
Simone: Essa ideia é a maior mamadeira de piroca da história. Porque essa correlação, que é lida como uma causalidade, que vai da moeda para a inflação, quando existe, ela é o contrário. Porque houve inflação é que a quantidade de moeda cresceu.
Mas no caso da China, não aconteceu inflação e a quantidade de moeda cresceu. Porque a moeda é endógena, a quantidade de moeda cresce para acompanhar o ritmo de crescimento da economia.
Não tem como crescer com a mesma quantidade de moeda. Você não tem como fazer uma fábrica nova com a mesma quantidade de moeda.
Você vai aumentar a quantidade de gasto, vai contratar mais gente. A moeda é endógena, ela se expande automaticamente com o aumento da capacidade, com o aumento da economia.
Elias: Um dado que usei na minha dissertação de Mestrado e que atualizei agora, o Metrô de Xangai em 96 tinha zero linhas e hoje é o maior do mundo. E 56% do seu financiamento foi feito por um banco público municipal. Isso não é uma evidência da MMT surgindo até como um instrumento mental de libertação em relação à economia?
Simone: Eu queria separar as coisas. Banco público e MMT são duas coisas que conversam, apesar da literatura de MMT não tratar muito de banco público. Ela está mais focada na questão do orçamento fiscal. Eu quero dizer que essas discussões podem ser conectadas e aí a MMT vai ser mais explosiva, mais revolucionária, mas podem até ficar mais separadinhas. Agora, que ela é muito potente, é uma arma mental e política, eu não tenho dúvida.
Elias: O texto do Kalecki voltado a construir uma economia monetária socialista, uma teoria do desenvolvimento socialista, que é uma das maiores maravilhas do século 20, Consequências Políticas do Desemprego. A China poderia ter uma taxa de desemprego artificial de 15% e reduziria seus custos de produção absurdamente, mas decidiu que deve restringir o desemprego a uma circunstância estrita do capitalismo, o que coloca a exigência de ter uma taxa de desemprego de pleno emprego (4-5%). Isso só é possível se tivermos uma abordagem da MMT, ou não? Isso é o x da questão. Qual é a importância da MMT para a libertação da sociedade da necessidade do desemprego?
Simone: É total e eu acho que é uma obrigação dos economistas progressistas com uma economia de pleno emprego, socialmente inclusiva e ambientalmente sustentável. Esse é o nosso papel, nosso objetivo.
Na introdução, Simone Deos assinalou que a MMT é desenvolvida a partir de uma profunda apreensão de como funciona o sistema monetário financeiro, como os BCs fazem e como o sistema bancário realmente concede crédito. Apropriar-se da realidade tal como funciona e por meio da teoria dar sentido a ela. 95% é descrição. Tem a teoria, senão é o caos. Do ponto de vista teórico, tem pouca novidade, porque sobe no ombro de gigantes. Apropria-se de Keynes e Kalecki, o princípio da demanda efetiva está no coração da MMT. Também insights de Knapp, Lerner, Wynne e Minsky. Essa fusão dessas ideias com uma análise muito apurada dos sistemas monetários contemporâneos, de como funciona o Fed e o sistema americano, depois de pesquisas sobre como funcionam outros sistemas monetários e financeiros, inclusive o brasileiro, é a MMT.
Elias Jabbour é professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ.
Simone Deos é professora Associada do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisadora do Centro de Estudos de Relações Internacionais (CERI) e do Grupo de Estudos China-Brasil.