Graciliano Ramos é uma unanimidade como um dos maiores escritores da nossa literatura, sobretudo como um de nossos maiores romancistas.
Mas, como já dissemos em outro artigo, o autor de São Bernardo, Angústia e Vidas Secas foi também um grande crítico literário.
O artigo abaixo foi publicado em 1934 na revista “Literatura”, do Rio de Janeiro.
O texto tem a importância de analisar a obra de outro grande escritor brasileiro e nordestino, José Lins do Rego, que, naquela época, publicara o seu segundo romance, Doidinho, após o sucesso de Menino de Engenho.
Extraímos essa crítica de Graciliano da excelente coletânea Garranchos, organizada por Thiago Mio Salla (Record, 2013).
C.L.
Um romancista do Nordeste
GRACILIANO RAMOS
O Sr. Prudente de Moraes Neto, falando sobre a nossa literatura de ficção, pobre demais, fez-me há tempo uma observação que achei curiosa. O romance brasileiro é ruim, os melhores escritores emperram neste gênero. Por que será? Impotência? Talvez o ambiente não ofereça material que preste.
Fiquei surpreendido e com desejo de contrariar uma pessoa inteligente e autorizada como o Sr. Prudente de Morais Neto. Pensei que ele tinha sido rigoroso em demasia com alguns novelistas indígenas e especialmente com o país, que deve ser como os outros países, salvo pequenas diferenças. Em todos os lugares há romances, disse comigo, o que falta às vezes é o romancista.
Liliput e Brobdingnag nunca existiram e não obstante Swift pôs lá o seu Gulliver. Um urso, uma pantera, uma cobra, um tigre, vários macacos e lobos deram a Kipling, que não viveu na floresta e de homens só utilizou um, que era quase bicho, assunto para dois livros da Jungle. Onde houver um ser dotado de imaginação há uma obra de arte em perspectiva.
É certo que as criaturas que nos rodeiam são ordinárias, mas também pode que o Raskolnikoff e a Sonia de Dostoievski fossem na realidade um assassino comum e uma prostituta vagabunda, sem nenhuma espécie de grandeza. Vendo-se impressos, talvez não se reconhecessem.
Matutei nestas coisas quando li, há alguns meses, o segundo volume da série que o Sr. José Lins do Rego iniciou com a publicação duma novela escrita em brasileiro. É um bom romancista, creio eu. E entretanto decorre num ambiente de estreiteza lastimosa. Constituem o meio físico as quatro paredes dum colégio-prisão do Nordeste, um rio, pedaços de natureza entrevistos de relance. O meio social compõe-se de cinco ou seis meninos de importância medíocre, um professor brutíssimo, a mulher e o sogro do professor, uma preta, uma vaga meretriz assanhada, mais algumas figuras que entram e saem discretamente. Muito pouco! Mas apesar disso, e talvez por isso, o Sr. José Lins do Rego fez um bom trabalho. Julgo que é um trabalho admirável.
Se o escritor dispusesse de grande número de tipos que se mexessem numa cidade, é possível que não resistisse à tentação de, como tantos outros, fornecer-nos pormenores inúteis. Jogando com elementos escassos, teve de extrair quase tudo do seu interior.
Até agora o Sr. José Lins do Rego publicou dois livros. Os críticos andaram a compará-los. Qual seria o melhor? Pensando bem, acho que a pergunta não tem cabimento: há apenas uma obra em dois volumes. Provavelmente virão outros – e teremos uma pequena Comédia Humana nordestina.
O que há é que no primeiro, o Menino de Engenho celebradíssimo, existem descrições que poderiam desaparecer sem desvantagem, uma queimada e uma enchente por exemplo, bem-feitas, mas que já foram exploradas por literatos de outras épocas, o finado José de Alencar e o finado Graça Aranha inclusive. Esta opinião não tem importância. De ordinário o que se julga melhor no romance é exatamente a parte objetiva, e é provável que essas duas tiradas, ricas em minudências, semelhantes às fotografias que Balzac e os realistas aproveitaram, hajam concorrido para tornar Menino de Engenho uma história admirada por toda a gente.
A verdade é que o Sr. Lins do Rego não precisa recorrer ao pitoresco para dar vida às suas criações. Nesse Doidinho excelente não há excesso de tintas. As coisas não nos aparecem como são (e quem sabe lá como são as coisas?), mas como o personagem principal as vê. Esse personagem, sujeito inteligente e com um parafuso frouxo, transmite-nos ampliados e interessantes os fatos mais corriqueiros.
Não sabemos como é por fora essa criança carregada de taras e cacoetes. Será loura ou morena? Terá os olhos pretos, azuis, verdes ou amarelos? E o resto? Estamos longe do tempo em que o cidadão gastava eternidades para descrever um tipo das unhas dos pés à ponta dos cabelos. Não esquecia uma ruga, não esquecia um botão da camisa. No fim de tudo apresentava um manequim.
Presumimos que o protagonista do Sr. Lins do Rego tem rugas, botões, olhos e cabelos, como todos nós, mas o autor não nos amola com semelhantes bagatelas: mostra-nos o rapaz por dentro. Surge então, vivo, bulindo, um sujeito que não é como os outros, um sujeito cheio de curiosidades e caprichos, indiferente às lições e à chatice da escola, incapaz de marcar passo e marchar na fileira, movendo-se desordenadamente e transformando, com os olhos e os ouvidos muito abertos, o mundo exterior num universo novo.
Tudo se anima. A água do rio não serve apenas para tirar-lhe a porcaria ganha no colégio imundo: lava-lhe a alma e transporta, para o sítio onde viveu, as suas tristezas de estudante maltratado. O bueiro do engenho é um amigo velho que o chama de longe. Na sua memória o avô deixa de ser o explorador da cabroeira que se esfalfa no eito: muda-se numa espécie de santo que se preocupa com a sorte dum assassino preso.
A obra do Sr. Lins do Rego tem coesão. Às vezes a de escritores grandes demais não a tem. Os livros do velho Hugo, os de Anatole France, os de Machado de Assis estão cheios de soluções de continuidade, intercalações, enxertos. Vendo esses parêntesis, somos levados a pensar que certos autores ou trabalham com interrupções, ou escrevem nas horas vagas folhas avulsas que entremeiam nas suas narrações com mais ou menos habilidade. Entre nós o comum é encontrarem-se romances arranjados com pedaços desconexos. Lemos uma página boa, em seguida vinte páginas que não são boas nem ruins, adiante uma péssima, depois uma sofrível – e o leitor tem a impressão de estar vendo um desses gráficos do serviço de estatística em que as linhas descem e sobem desesperadamente.
É possível que um olhar agudo descubra altos e baixos na obra do Sr. Lins do Rego. Não notei isso. Também não me esforcei por encontrar preciosidades. Pouco me satisfaria achar aqui um diálogo natural, ali uma descrição encaixada a propósito, acolá uma frase original. Essas descobertas só serviriam para prejudicar o conjunto, seriam como elevações numa planície. Se me recomendassem uma estátua por ter as mãos e os pés bem-feitos, eu não ficaria contente. Preferiria que nem as mãos nem os pés fossem demasiado bem-feitos, mas que estivessem em harmonia com as outras partes do corpo.
De resto esse trabalho de expor minúcias revela mão de especialista, e no romance, campo vastíssimo, o especialista, a começar pelo gramático, não ultrapassa as fronteiras do seu distrito.
O Sr. Lins do Rego não é especialista em coisa nenhuma. Nada de terminologias embaraçosas. Mostra simplicidade extraordinária, põe-se facilmente em contato com o povo ignaro, como dizia Camões. Dificuldade.
Outra dificuldade, e terrível, foi ter conseguido tornar-se interessante servindo-se desta pobre língua do Nordeste, língua bronca, incerta, de vocabulário minguado. Língua braba, que o Sr. Mário Marroquim procura domesticar. Notem que o matuto fala pouco diante de pessoas sabidas. Quando o obrigam a falar, recorre aos gestos, usa circunlóquios – e o discurso é charada. Uma só expressão, variando com o tom da cantiga que é a conversa ordinária do tabaréu, tem significações que nos atrapalham. Dialeto horrível para a linguagem escrita.
Outra coisa. Tenho estado a pensar que o Sr. Lins do Rego escreveria, se quisesse, excelentes biografias. Como as de André Maurois. Valeria a pena? Seria preferível transformar o velho Cotegipe numa espécie de Disraeli? Talvez não fosse. Onde achar personagens? Parece que estou inutilizando o que afirmei no começo deste artigo.
Mas na biografia a imaginação não poderia fazer tudo.
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