“A ameaça do coronavírus deve acender a cooperação global, não uma nova guerra fria”, enfatiza o editor da Lancet, Richard Horton
“A escala da reação anti-China é desproporcional à realidade das corajosas contribuições feitas pelos cientistas chineses à nossa compreensão global desta pandemia”, afirmou Horton, editor da principal revista médica britânica, em artigo de opinião no jornal The Guardian.
Ele reiterou, ainda, que “a ameaça do coronavírus deve acender a cooperação global, não uma nova guerra fria”.
Como Horton assinalou, “foram os cientistas chineses que descreveram pela primeira vez a ameaça humana desta nova doença em 24 de janeiro. Foram os cientistas chineses que primeiro documentaram a transmissão de pessoa para pessoa”.
Ainda: “foram os cientistas chineses que primeiro sequenciaram o genoma do vírus. Foram os cientistas chineses que chamaram a atenção para a importância de aumentar o acesso a equipamentos de proteção individual, testes e quarentena. Foram os cientistas chineses que alertaram para a ameaça de uma pandemia”.
Na introdução do artigo, Horton não ignora, e registra como legítimos, os questionamentos sobre “o que as autoridades chinesas sabiam, e quando”, as pressões “sobre o médico Li Wenliang” e “porque levou um mês inteiro” para relatar o surto da nova doença à comunidade internacional. Assim como as discussões em voga sobre Xinjiang, Tibete, Hong Kong, Taiwan, Mar do Sul da China e 5G.
Também foi Horton que corrigiu o presidente norte-americano Trump quando este, para atacar a Organização Mundial de Saúde (OMS), publicou uma fake news em maio, citando explicitamente a Lancet. “Caro presidente Trump. Deixe-me corrigir os dados. A Lancet não publicou qualquer relatório no início de dezembro, sobre a disseminação de um vírus em Wuhan. Os primeiros relatórios foram dos cientistas chineses, em 24 de janeiro de 2019″.
NOVA GUERRA FRIA
O editor registrou como, utilizando em especial a questão da pandemia, “políticos ocidentais, liderados pelo governo dos EUA, intensificaram seus ataques à China, iniciando as condições para uma nova guerra fria”.
Como demonstrado pelo deputado conservador britânico Tobias Ellwood, que preside o comitê de defesa da Câmara dos Comuns, ao escrever que “qualquer noção de que a China pode ser confiável certamente deve ter sido dissipada após suas tentativas iniciais – e desastrosas – de esconder a pandemia Covid-19”.
Ele também cita um livro sobre a China, de autoria de Clive Hamilton e Mareike Ohlberg, que acusa o país asiático de “remodelar o mundo” e conclui que “as nações ocidentais precisam perceber que uma China liderada pelo PCC [comunistas] não é e nunca será sua amiga”.
“Esta abordagem para a China está profundamente equivocada”, afirma Horton.
CIENTISTAS DE CLASSE MUNDIAL
“Minha experiência de trabalhar na China, colaborar com cientistas e médicos chineses de classe mundial, e cooperar com o governo chinês sobre seus extraordinários esforços para fortalecer seus serviços de saúde, me diz que a China é uma nação complexa e que veredictos binários de culpa ou inocência não entendem suas intenções”.
O editor da Lancet conclamou a “tentar colocar-se na posição dos formuladores de políticas chinesas”, ao invés de se juntar “ao coro de críticas contra Pequim”.
A narrativa ocidental comum – ressaltou – é que, “à medida que a economia do país cresceu, também suas ambições estratégicas políticas, econômicas, diplomáticas e militares”. “China, assim diz essa narrativa, agora representa uma ameaça à liderança ocidental do mundo livre. A China transformou-se de parceira para concorrente e rival. A China tem que ser contida”.
PARA TRÁS O ‘SÉCULO DE HUMILHAÇÃO’
A perspectiva chinesa “é muito diferente”, destaca Horton, lembrando o ‘”século de humilhação”, quando a China era dominada por um ocidente colonialmente consciente e o Japão”, que só chegou ao fim com a vitória comunista na guerra civil em 1949.
Segundo a avaliação do editor da Lancet, a China “cresceu de forma errática e com erros terríveis sob Mao Tsé-Tung, que visava estabelecer fronteiras nacionais relativamente seguras. Deng Xiaoping criou as condições para a expansão econômica, tirando até 800 milhões de pessoas da pobreza”.
“Todos os líderes chineses contemporâneos, incluindo Xi Jinping, viram sua tarefa como proteger a segurança territorial conquistada por Mao e a segurança econômica alcançada por Deng”, registrou Horton. Muitos dos formuladores de políticas da China argumentarão que as ações do governo “não devem ser vistas como agressivas, mas como defensivas”.
AÇÃO DECISIVA
Para Horton, “no caso do Covid-19, os cientistas chineses agiram de forma decisiva e responsável para proteger a saúde do povo chinês”.
“Eles aconselharam o bloqueio antecipado para cortar as linhas de transmissão viral. Eles implementaram políticas rigorosas de distanciamento físico para reduzir a mistura social. E eles construíram hospitais temporários para expandir a capacidade do leito e permitir a triagem dos pacientes mais doentes para a UTI”, sublinhou.
O editor da Lancet também expôs como as autoridades médicas chinesas atuaram desta vez, “em contraste” com a maneira como haviam lidado “com o surto de Sars em 2002-03”.
Ainda segundo Horton, “apesar das incertezas sobre o que ocorreu em dezembro, médicos chineses rapidamente alertaram seu governo e seu governo alertou o mundo”.
OUVIDOS MOUCOS
“As democracias ocidentais” – enfatiza o editor da conceituada revista médica – “não ouviram esses avisos”.
“Há certamente perguntas para a China responder, mas culpar a China por essa pandemia é reescrever a história do Covid-19 e marginalizar as falhas das nações ocidentais”, apontou.
Horton sublinhou que em momentos de estresse geopolítico, “é certamente melhor intensificar, não enfraquecer, relações pessoais e institucionais. É certamente melhor construir uma melhor compreensão entre os povos”.
“SINOFOBIA RACISTA”
Ele advertiu que “a atual onda de sentimentos anti-China evoluiu agora para uma desagradável, mesmo racista, sinofobia, que ameaça a paz e a segurança internacionais”. “Os 1,4 bilhão de pessoas da China não estão imunes aos choques econômicos que estão atualmente envolvendo o mundo. Uma pandemia é um momento de solidariedade entre os povos, não de conflito entre governos”.
“Em vez de acelerar uma nova guerra fria entre o Ocidente e a China, a medicina e a ciência médica podem ajudar a estabelecer um novo pacto entre as nações”, convocou Horton.
Como ele destacou, “perguntas rigorosas ainda podem ser feitas. Invasões percebidas sobre liberdades ainda podem ser desafiadas. Mas essas questões e desafios devem ser perseguidos através de um compromisso de fortalecer a cooperação, não ameaças hostis”.
E concluiu: “uma pandemia é um momento de conciliação, respeito e honestidade entre amigos”.