O ex-conselheiro de segurança nacional dos EUA, John Bolton, a menos de cinco meses das eleições disparou contra o presidente Donald Trump um míssil a queima roupa, um livro em que conta desde que o bilionário é “ignorante e errático”, até que sequer sabia que a Grã Bretanha era “potência nuclear” ou que a Finlândia “não era” parte da Rússia.
E que Trump achava “legal” invadir a Venezuela, que seria “parte dos EUA”, além de, num jantar de cúpula do G-20, ter pedido ao presidente chinês Xi Jinping que o ajudasse na reeleição, comprando muita soja e trigo, para contentar seus eleitores agricultores.
Bolton, que diz abertamente que tudo que Trump faz é pensando na reeleição, chamou o livro de “A Sala em Que Tudo Aconteceu”, quem sabe uma referência àquela conversa mole de que faltavam “adultos na sala” na Casa Branca.
Para arrematar, Bolton diz que as ações de Trump “formaram um padrão de comportamento fundamentalmente inaceitável que corroeu a própria legitimidade da presidência”. Ele atuou como conselheiro da Casa Branca de abril de 2018 a setembro de 2019.
“REPUGNANTE”
“Se essas contas são verdadeiras, não é apenas moralmente repugnante, é uma violação do dever sagrado de Donald Trump para com o povo americano”, manifestou-se o candidato presumido democrata à presidência, Joe Biden. O livro de Bolton, acrescentou, mostrou que Trump “vendeu o povo americano para proteger seu futuro político”.
Tais afirmações fizeram com que Trump corresse para sua torre nas redes sociais para tuitar que o livro de Bolton era “extremamente tedioso” e só tinha “mentiras e fake news”.
Sobre o ex-conselheiro, ele postou que “[Bolton] dizia tudo de bom sobre mim na imprensa até o dia que o demiti. Um desajustado que só queria ir à guerra. Nunca teve uma dica, ficou no ostracismo e felizmente foi despejado. Que imbecil!”
Em se tratando de um maníaco de guerra de quatro costados, Bolton, conhecido por querer resolver tudo com uma invasão ou bombardeio, e de Trump, um presidente racista e xenófobo, de ideia fixa em um muro na fronteira e em Wall Street, reza a experiência que, no fundo, não é que os dois têm razão?
“INFORMAÇÕES CLASSIFICADAS”
Assim, a nova dor de cabeça de Trump é censurar o livro de 577 páginas de seu ex-chefe da segurança nacional. Como não dá para assumir publicamente que o problema é que a lavagem de roupa suja atrapalha seus planos reeleitoreiros, Trump vem alegando que as ‘memórias de Bolton’ representam “uma ameaça à segurança nacional dos EUA” por conter “informações classificadas”.
Não chega a ser propriamente uma informação classificada que Trump seja “ignorante e errático”. Afinal, não foi uma discussão desse tipo que o levou a se autodefinir como um “gênio muito estável”?
Mas os detalhes relatados por Bolton encaixam certinho no perfil do bilionário sem noção e sem limite.
Sobre o pedido de Trump a Xi Jinping no G20, nada ficaria mais conveniente à “arte da negociação” de que o presidente tanto se gaba, do que ele falar em como umas comprinhas bilionárias poderiam surtir efeito sobre os atribulados agricultores norte-americanos, à míngua desde que a Casa Branca decretou guerra tarifária a Pequim.
“As conversas de Trump com Xi refletiram não apenas a incoerência em sua política comercial, mas também a confluência na mente de Trump de seus próprios interesses políticos e dos interesses nacionais dos EUA”, enfatizou o ex-conselheiro.
A China não confirmou o relato de Bolton, nem desconfirmou, só disse que não interfere nas eleições dos EUA.
Bolton diz que foi isso que ele ouviu e o subsecretário de comércio, Robert Lighthizer, o desmente. Se Trump não disse, deve ter pensado em voz bem alta.
EXERCÍCIO FRÍVOLO
O Departamento de Justiça entrou com pedido nos tribunais para brecar o inconveniente livro, que já foi distribuído para o mundo inteiro, de acordo com a editora Simon & Schuster. Em comunicado, a editora classificou a liminar de “exercício frívolo e politicamente motivado de futilidade.”
Assevera o livro de Bolton que, na mesma cúpula do G20, Trump e Xi Jiping teriam conversado sobre “a construção de campos de concentração em Xingiang”, na China, e o presidente norte-americano teria dito que deveria continuar, pois era “exatamente a coisa certa a fazer”. Alegação – que inclui a suposta detenção de 1 milhão de uigures nesses campos – veementemente negada pela China.
Coincidência ou álibi, Trump na quarta-feira assinou uma lei decretando sanções contra ‘funcionários chineses responsáveis pela repressão de muçulmanos em Xingiang’. Medida prontamente repelida por Pequim.
Ainda de acordo com o livro de Bolton, Trump expressou várias vezes sua vontade de interromper investigações em curso nos EUA “para oferecer, de fato, favores pessoais aos ditadores que ele gostava”.
OBSTRUÇÃO DA JUSTIÇA
“Como os da China e da Turquia, o que pode ser obstrução da justiça”, ele citou. No caso da Turquia, se tratava de um banco turco, que estava sendo punido por realizar transações com o Irã, o que violava as sanções dos EUA (mas não as leis turcas).
Em relação à Venezuela, Bolton relatou que em 2018 Trump repetiu seu desejo de tirar Maduro do poder e, embora houvesse aceitado sua proposta de reconhecer Guaidó como presidente, quase imediatamente ele se preocupou com o fato de o oponente parecer um “cara” fraco contra o “duro” Maduro.
O livro do ex-conselheiro deixou Trump mordido. Ao apresentador da Fox News Sean Hannity, Trump disse que Bolton “estava arruinado”. “Eu dei uma chance a ele. Ele não pôde ser confirmado pelo Senado, então eu lhe dei uma posição não confirmada pelo Senado para que eu pudesse colocá-lo lá e ver como ele trabalhava. Eu não estava muito entusiasmado”.
Trump lembrou na entrevista o papel que Bolton teve para a invasão do Iraque. “Ele foi um dos grandes defensores de ir para o Iraque. Isso não funcionou muito bem e eu fui contra isso há muito tempo, bem antes de pensar em fazer o que estou fazendo agora”.
Antes de se dedicar à literatura, Bolton ficou marcado como um dos mais extremados falcões dos EUA desde Reagan, passando pelo governo de W. Bush, até seus 17 meses no governo Trump. Teve papel decisivo para a invasão do Iraque e do Afeganistão, assim como no desmonte da arquitetura internacional de prevenção da guerra nuclear. No governo Trump, dedicou-se especialmente a sabotar qualquer possibilidade de acordo com a Coreia Popular. Agora, quem sabe, acabe prestando um bem à humanidade com seu livro sobre Trump.